A música francesa e a diversidade cultural
O fenômeno da defasagem e de frieza da mídia diante da diversidade da produção musical nunca esteve tão evidente em um mundo submetido à influência massacrante de cinco gravadoras multinacionaisJean Ferrat
Não se trata de um postulado: posso tirar essas conclusões a partir do conhecimento que tenho acumulado, há vários anos, da canção francesa, das relações e dos estudos de sindicatos e organizações profissionais. Em primeiro lugar, tenho a convicção que para entender o que se passa com a música francesa é necessário considerar, antes de tudo, alguns dados incontestáveis: segundo relatório da Sociedade de autores compositores e editores de música (Sacen), publicado no final de 2002, o número de interpretes franceses ouvidos nas ondas do conjunto das rádios, entre 1996 e 2000, foi dividido por quatro! E para este um quarto restante, segundo uma pesquisa do caderno de Empresas do jornal Figaro, do dia 10 de janeiro de 2003, eis o número de passagens no rádio nos cinco primeiros, no ano de 2002:
Jean Jacques Goldman: 37200 passagens
Gérald De Palmas: 28 700 passagens
Pascal Obispo : 14 800 passagens da mesma música
Johnny Halliday: 12 900 passagens
Renaud e Axelle Red: 14 800 passagens de uma mesma música
No mesmo período, entre as cinqüenta músicas mais ouvidas, quarenta e duas se beneficiaram de campanhas publicitárias realizadas pelos produtores cujo custo chegam, muitas vezes, a milhões de francos. O número de músicas diferentes difundidas passou de 56 300 para 24 400, ou seja, houve uma redução de 60% em quatro anos. Todos esses dados significam de maneira eloqüente a influência abusiva e massacrante de cinco multinacionais1 do disco no campo da produção, da difusão e, é claro, em última instância, da distribuição. Esses dados se referem às rádios, mas a situação é certamente comparável com as televisões.
A indiferença da mídia
“Nunca a defasagem entre a diversidade da produção fonográfica e a frieza/indiferença da mídia foi tão grande”, escreve a União dos produtores fonográficos independentes (UFPI). Porém, quais as razões que levam as rádios a adotarem esse tipo de política? Em primeiro lugar, há certamente a aceleração dos fenômenos de concentrações verticais. Mas, há também o acordo entre produção e difusão por uma simples razão: mais as rádios “repetem” a mesma música, mais elas fazem sucesso. Mais elas fazem sucesso, maior é a audiência. Mais elas têm audiência, mais as rádios têm publicidade e mais elas tenham publicidade, maior é o lucro”.
É assim que alguns artistas, mantidos por estes grandes monopólios de produção, invadem a mídia com tal força (e sem que eles próprios sejam responsáveis por esse fenômeno) que não há lugar para os outros. Isto demonstra que a “livre concorrência” de mercado, quando se trata de música, leva a um empobrecimento dramático da diversidade cultural. A partir disso pode-se questionar até mesmo a existência da liberdade de expressão para a grande maioria de artistas franceses.
Falta de reconhecimento
Descobri artistas de notável talento mas que o grande público ignora totalmente porque suas músicas nunca são tocadas regularmente em alguma mídia
Gostaria de deixar de lado, por um instante, o universo dos números para explicar as razões que me levaram, nesses dois últimos anos, a me manifestar publicamente sobre esse assunto. Descobri artistas que cantam, alguns já há muito tempo, pessoas magníficas, de notável talento mas que o grande público ignora totalmente porque suas músicas nunca são tocadas regularmente em alguma mídia. Já citei os nomes de alguns: Alain Leprest, Bernard Joyet, Christian Paccoud, Phillipe Forcioli, Michael Arbatz, Michele Bernard e há dezenas de outros, todos envolvidos com o que chamarei de “Canções de Palavras” (nome do Festival de Barjac2) ou a canção artesanal, todos vítimas de uma injustiça inaceitável.
Alguns deles parecem ter se resignado com essa situação, e tive a impressão que, em seu íntimo, não imaginam nem mesmo a possibilidade de ter acesso, um dia, a um público maior. Então, eles atuam em pequenos espaços – cafés, restaurantes, cabarés, festivais – atingindo um certo tipo de público que os acompanham mas que, na maioria dos casos, não permite que vivam em condições aceitáveis, sem falar da frustração experimentada diante da falta de reconhecimento.
A eles acontece também serem obrigados a “passar o chapéu”, retomando assim, no que se refere ao exercício de seu trabalho, a mesma situação do século XIX.! Entretanto, lutamos, com meus amigos do Sindicato francês dos autores (SFA), durante anos, para que cachês mínimos sejam pagos sem contestação, em particular na mídia. Parece que hoje em dia, quando um artista é suficientemente temerário para ousar pedir a mesma coisa, é visto como se estivesse lançando injurias! Diante desta situação, resulta que a nova regulamentação para os artistas que não trabalham regularmente é especialmente injusta. Ela atinge em primeiro lugar os mais desfavorecidos. É preciso mencionar também que, mesmo nessas condições, um certo número de artistas, apesar de tudo, alcança uma grande notoriedade (quase sempre provisória). São as exceções que confirmam a regra.
Acordos verticais
Estou persuadido que os legisladores ou seus representantes são os únicos capazes de assegurar o pluralismo indispensável para o exercício da nossa democracia
Já há dois anos venho alertando os responsáveis junto à mídia. O antigo Ministro da Cultura, Jean Jacques Aillagon, escreveu-me em março de 2003: “Esta situação me preocupa tanto quando a você. Nesse sentido, me comprometi com a elaboração de um código de boa conduta entre as rádios e os produtores particulares e a criação de um observatório da diversidade musical….”
Atualmente, este “observatório” deve ainda estar por aí “observando” porque espero ainda o resultado dessas “observações”. Quanto ao “código de boa conduta”, parece que, sob a égide do Ministro da Cultura, um projeto de acordo – que tornaria a coisa oficial – teria sido redigido, provocando reações imediatas do sindicato nacional de autores e compositores (SNAC) e da União nacional dos autores compositores (UNAC): “Estamos particularmente chocados que um tal acordo possa ser assinado, pois adapta as práticas comerciais, as transformam para que lidem com situações do trabalho interino… a que nós somos absolutamente contra”.
É significativo constatar que nenhum representante dos artistas, autores e interpretes participou de sequer uma reunião. Pode-se compreender as razões disso posto que se trata de um fenômeno gravíssimo de acordos verticais – sobre os quais falei acima – entre as grandes indústrias de produção de discos aliadas àquelas da comunicação que seriam autorizadas e dariam um golpe mortal na diversidade cultural!
Pluralismo indispensável
Não entrarei aqui em detalhes sobre as medidas possíveis para remediar a situação atual. Existem numerosas delas, propostas pelas organizações profissionais. Pessoalmente, estou persuadido que os legisladores ou seus representantes são os únicos capazes de assegurar o pluralismo indispensável para o exercício da nossa democracia. E é aí que nós atingimos o nó da questão. Houve em Paris, há um ano, um importante encontro de cem organizações culturais internacionais3 sobre a necessidade de reconhecer a noção de diversidade cultural na França. E, certamente, na Europa e em outros países. Essa reunião ficará na história, porque mostrou que, no plano mundial, os profissionais reagiram vigorosamente.
Não estaríamos diante de uma grande crise ideológica entre a submissão ou a resistência ao mercado que é, portanto, política?
Foi criado um Comitê para acompanhar as resoluções. As respostas do Ministro francês da Cultura e do Presidente da República, Jacques Chirac foram, sem dúvida, totalmente favoráveis para que ficasse estabelecido do ponto de vista legal e internacional o reconhecimento desta diversidade cultural. Assim, no outono de 2003, a Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO) assumiu a questão para redigir um texto que, diante das regras da Organização Mundial do Comércio (OMC) pudesse servir de base legal. É reconfortante ver esta mobilização de pessoas ligadas à cultura para afirmar que os produtos culturais não são mercadorias e que a diversidade cultural é um dos pontos fundamentais dos Direitos Humanos e da Liberdade.
Todavia, é preciso ainda que na França, os poderes públicos adotem medidas indispensáveis para tornar isso possível. Não somente com relação à música mas também em relação a toda a área cultural. E é aí que se colocam questões fundamentais. Qual é a vontade do Ministro da Cultura quando se trata de colocar um freio ao apetite devorador de um punhado de empresas multinacionais da indústria cultural e de comunicação? Não estaríamos diante de uma grande crise ideológica entre a submissão ou a resistência ao mercado que é, portanto, política? Temo que nesse momento a situação esteja mais para submissão, reduzindo a nada a intenção colocada pelos nossos dirigentes. Estou persuadido que cabe à esquerda assumir essa questão e fazer dela um ponto importante do seu futuro programa.
(Trad.: Celeste Marcondes)
1 – UNIVERSAL, SONY, WARNER, IMI, EMG.
2 – Este Festival da Canção que será reali