A nova democracia
Esse imaginário se funda na cultura do medo, construída pela ação violenta das polícias; pela criminalização dos pobres e dos movimentos sociais; pela política de extermínio de jovens negros e pobres.
A convivência humana se funda em valores. São eles que pautam nosso comportamento, nossas relações sociais.
Na fase atual de hegemonia do neoliberalismo, o que predomina é o individualismo, a competição, o egoísmo, a meritocracia, as discriminações, a visão de que você deve vencer os demais, no limite, eliminando-os.
Esses valores não combinam com a democracia. Requerem uma ordem autoritária, anti-humanista, em que o arbítrio e a mentira deliberada (hoje em dia, entre outros métodos, as fake news) reavivam e atualizam as tradições de ódio, discriminação e violência, expressas pelas elites e pelas classes médias brasileiras, que as disseminam na sociedade.1 Tudo é culpa do inimigo, que precisa ser combatido e, se possível, exterminado. A radicalização da direita, que não encontra correspondente entre os defensores dos direitos humanos – portanto, não se trata de polarização –, tem levado a violência para dentro da sociedade civil.
É com base nessas mentiras e na manipulação de emoções que o governo de Jair Bolsonaro identifica as oposições como inimigos e que se dá a construção de um imaginário que impulsiona a vida pública real “na direção da redução da vida política ao novo estado de guerra”.2
Esse imaginário se funda na cultura do medo, construída pela ação violenta das polícias; pela criminalização dos pobres e dos movimentos sociais; pela política de extermínio de jovens negros e pobres. A mídia controlada pelas elites oculta todas as manifestações de protesto e resistência cidadã e exalta a ação de um Estado violento e repressor, que ataca não só os cidadãos, mas também a democracia.
É preciso que se diga que todo esse processo autoritário e repressor não é uma particularidade do Brasil; ele é global e enfrenta a enorme insatisfação cidadã com as políticas públicas, o sistema político democrático liberal, os partidos políticos e seus representantes eleitos. Mas, mesmo com tamanha insatisfação e com os questionamentos ao neoliberalismo e às suas políticas de destituição de direitos e degradação ambiental, não há respostas afirmativas da parte dos defensores da democracia e dos direitos humanos.
Propor o que para substituir o neoliberalismo? Pela radicalidade desses governos autoritários que vão se espalhando pelo mundo, como também podemos ver no Brasil, não há mais espaço para negociações, ao estilo da construção de pactos sociais, como os que inspiraram a social-democracia e a construção do Estado de bem-estar social. E, se não há negociação, a alternativa é buscar a ruptura contra a opressão e a espoliação, e construir novos paradigmas, novas esperanças.
Para compor uma nova sociedade, democrática e inclusiva, é preciso criar novas formas de poder desde agora, novas formas de manifestação da vontade cidadã, novas e mais amplas redes de mobilização e defesa de direitos.
A nova democracia será fundada em buscas coletivas por formas democráticas novas, 3 inspiradas na solidariedade, na cooperação, na busca da equidade, no combate às discriminações e na afirmação das diversidades, na emancipação das dominações, na fraternidade, na autonomia dos sujeitos, na construção dos bens comuns.
A nova democracia é o espaço para discutir o futuro, em articulação com as representações coletivas da sociedade civil, com os grupos de cidadãos que se organizam para a defesa de direitos, com os movimentos sociais.
Superar a separação entre economia e política e orientar as atividades produtivas para a construção dos bens comuns são objetivos que requerem novas institucionalidades, em que o respeito aos direitos humanos e às diversidades seja um elemento central na formulação das políticas públicas.
A construção da contra-hegemonia parte da disputa pelos territórios, físicos ou identitários, e da articulação de redes emancipadoras entre eles. Por meio do reconhecimento e da valorização da cultura dos povos em cada território e de suas formas de organização é que se podem construir as teias da solidariedade.
A construção de uma perspectiva contra-hegemônica está em curso. Expressa-se nas práticas de resistência e autogoverno já presentes e cada vez mais importantes em nossa sociedade. Mas deve ir além. Como fazer dialogar as lutas identitárias e territoriais com a construção de uma proposta comum e maior?
É nesses espaços que encontramos iniciativas da maior importância, que apontam, por exemplo, para novas formas de produção e consumo: são milhares de iniciativas que abrangem o campo da economia solidária, dos circuitos curtos de produção e consumo que integram o urbano e o rural, da agricultura familiar, dos bancos comunitários, entre outros.
O que inspira essas iniciativas e lhes dá um sentido estratégico é a perspectiva de submeter a economia a um novo projeto de sociedade. Em vez de termos uma economia voltada para a lucratividade dos grandes grupos financeiros, passamos a uma sociedade em que a economia se orienta para atender às necessidades das maiorias.
Dessa perspectiva, o trabalho ganha outro sentido, oferece oportunidades para todos e torna-se uma forma de socialização direcionada para a construção de uma sociedade fundada no coletivo, na solidariedade, na sustentabilidade ambiental, na reconstrução do comum perante a apropriação privada dos bens e das riquezas naturais.
O comum é nosso novo ponto de partida. Designa uma nova forma de contestar o capitalismo, ou mesmo de considerar sua superação. Identifica um regime de práticas, lutas, instituições e pesquisas que abrem as portas para um futuro não capitalista.4
Silvio Caccia Bava é editor-chefe do Le Monde Diplomatique Brasil.
1 Jessé Souza, A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato, Leya, Rio de Janeiro, 2017.
2 Tales Ab’Sáber, Michel Temer e o fascismo comum, Hedra, São Paulo, 2018, p.45.
3 Pierre Dardot e Christian Laval, Comum: ensaio sobre a revolução do século XXI, Boitempo, São
Paulo, 2017, p.18.
4 Pierre Dardot e Christian Laval, op. cit., p.16-18.