A nuvem da informação
A independência das pessoas, das empresas e até das nações não se mede mais somente pelos territórios, pela geografia e pelo espaço coletivo, mas também pelas relações que eles mantêm com essa nova usina de produção “imaterial”, disputada a ferro e fogo pelos grandes provedores da internet
Como se fosse um fluido vital, a informação digital está presente em todos os lugares de nossa sociedade: circula nas redes, é exibida nas telas e ouvida nos telefones celulares. Os artefatos materiais, outrora intimamente ligados às nossas práticas de acesso à informação – livros, jornais, discos, cartazes, quadros, álbuns de fotografias –, se tornaram ultrapassados diante dessas maravilhosas ferramentas eletrônicas.
As empresas também se converteram ao digital. Encomendas, notas fiscais, rastreamento de entregas, arquivamento contábil e jurídico e documentação de produtos formam agora um grande circuito informático. Fala-se de “desmaterialização” para designar essa separação entre o suporte físico e o conteúdo, mas a expressão é ilusória: todas as informações estão armazenadas em algum lugar. A grande questão é quem fará a gestão desses dados e irá divulgá-los para o mundo nesse momento de transformação do suporte material.
A era digital não se importará em localizar esses arquivos onde quer que eles estejam. Na verdade, isso já acontece: ninguém pode dizer em que disco rígido estão armazenados uma fotografia do site de imagens Flickr ou um vídeo do You Tube. Cada vez mais, esses dados deixam os personal computers (PCs) e são encaminhados para centros distantes, aos quais os usuários têm acesso pela internet banda larga.
Essa arquitetura leva o nome de “informática em nuvens”, cloud computing: os dados são distribuídos em uma nuvem de máquinas, formada por milhares de computadores dos gigantes da Web. Como as informações estão copiadas várias vezes na “nuvem”, é possível evitar os congestionamentos informáticos. Graças à cloud computing, cada profissional da área dispõe de uma capacidade de processamento muito superior à de sua própria máquina, até mesmo às de empresas e instituições. É por isso que a transcodificação de imagens do You Tube é tão rápida e o site é capaz de oferecer vários bilhões de vídeos por mês1. É também por causa dessa nuvem de servidores que o correio eletrônico pode ser lido e arquivado a distância.
Como sempre ocorre no mundo da informática, a competição está acirrada entre os pretendentes ao título de “rei das nuvens”. Google, Yahoo e outros gigantes da internet dispõem de centenas de milhares de servidores potentes e rápidos, distribuí-dos em vários centros de dados, ou terceirizados para prestadores especializados. Forma-se, assim, uma cadeia industrial em um setor em pleno desenvolvimento. Porém, essa nova concepção da informática requer força de trabalho e ferramentas adequadas. E formar uma e conceber as outras acabaram se tornando incumbências das universidades e centros de pesquisas com os quais as multinacionais da internet se empenham em estabelecer relações, com a esperança de que dali saiam programas capazes de gerenciar gigantescos agrupamentos de computadores e memórias, assim como métodos de cálculo adequados.
Com isso em mente, IBM e Google aliaram-se para oferecer uma nuvem de servidores às universidades americanas, em troca do desenvolvimento de um know-how de programação paralela2. Essa parceria atemorizou a Hewlett-Packard, rival da IBM, que decidiu comprar uma empresa de serviço e engenharia em informática, a EDS, por US$ 13,9 bilhões3. Um negócio arriscado, tendo em vista os custos elevados de integração dos funcionários: são 140 mil assalariados na EDS e 172 mil na HP. Pouco importa. Para os partidários dessa fusão, o futuro pertence aos serviços e não à venda de material.
Afinal, todo esse investimento dará rentabilidade aos capitais investidos somente com uma condição: a migração para a rede da maior parte das atividades de informática, tanto particulares como de empresas. Até pouco tempo, para funcionar, o computador precisava de programas pesados, de uma memória de elefante e de um grande poder de cálculo. “Terceirizando” esses três elementos para prestadores especializados e acessíveis por internet, o PC fica mais leve, torna-se um simples terminal. Dessa forma, quando o usuário quiser trabalhar com um texto, o programa adequado não estará instalado no seu computador, mas em um servidor localizado em algum lugar na nuvem. Fala-se de “software as a service” (SaaS, programa acessível a distância) e até de “platform as a service” para designar essa redistribuição das cartas na indústria da informática4. Essa abordagem permite descentralizar as atividades diárias através da rede, desde assuntos de escritório à organização de álbuns de fotografia. É a realidade da conexão permanente, por pacote e com banda larga, um conforto para o usuário.
Se a cloud computing foi primeiramente testada com particulares, agora é preciso que seja adotada pelas empresas. A recompensa? A terceirização pura e simples dos serviços de informática. Sempre reticentes em confiar seus dados para pessoas de fora, as empresas ainda têm a compreensão de que a gestão, o armazenamento e a disponibilidade permanente dos servidores e dos fluxos de informação estão entre os critérios de eficácia de uma profissão muito técnica. Mas também começam a perceber que esse tipo de serviço foge ao domínio dos centros servidores de pequenas dimensões.
Um problema evidente que as experiências com usuários individuais demonstraram é o risco da transformação dos acessos em um balcão de serviços, em que cada operador de nuvem tenta conservar “seus” usuários, dissuadindo-os de experimentar os serviços da concorrência. O caminho é semeado de obstáculos para quem deseja trocar de prestador de álbum fotográfico ou de correio eletrônico. Pois, para esses operadores, mais que os lucros a curto prazo oriundos da publicidade ou dos serviços pagos, é o lifetime value – o valor estimado que um usuário pode trazer para uma empresa – que representa o Santo Graal. É preciso avaliar a rentabilidade de um cliente fiel quando se multiplicam os serviços e as ofertas nos diversos aspectos de sua vida.
Assim como as propostas de serviços “gratuitos”, as alianças de empresas que propõem uma diversidade de funcionalidades encobrem armadilhas: para consultar os arquivos de correio eletrônico ou atualizar o álbum de fotografias, toda vez é preciso acessar o serviço on-line-. Atraídos por não terem de pagar, os clientes podem perder a autonomia. Se, por exemplo, o único editor de textos que se tem à disposição é oferecido por uma plataforma on-line, é necess
ário conectar-se a esse site para abrir um documento ou escrever. E, portanto, ter de se servir de caneta e papel no caso de uma falha de conexão na rede! A informática das nuvens reforça incontestavelmente a influência dos prestadores. Uma situação que abranda o entusiasmo das empresas e preocupa os governos na medida em que a quase totalidade dos atores da informática em nuvens são americanos5.
A independência das pessoas, das empresas e até das nações não se mede mais somente pelos territórios, pela geografia e pelo espaço coletivo, mas também pelas relações que eles mantêm com essas novas usinas da produção “imaterial”. Essas empresas emergentes gerenciam ao mesmo tempo os dados, as identidades dos indivíduos e suas necessidades. Também não se privam de oferecer esses perfis aos publicitários e a outros atores da indústria do marketing, como comprova o lugar preponderante que a Google conquistou em poucos anos no mercado da publicidade. Revela-se uma nova noção de “filiação”: não há mais debates entre cidadãos formando “comunidades de destino”, mas entre “usuários”, indivíduos ou empresas, membros de “comunidades de escolha” organizadas com base em seu consumo e sua dependência informacional para com os donos das nuvens.
*Hervé Le Crosnier é pesquisador da Universidade de Caen.