A ofensiva contra o serviço público
Apesar de o balanço das privatizações ter se revelado negativo para os usuários no mundo inteiro, o governo francês anuncia a venda total ou parcial das poucas empresas públicas ainda existentes, entre elas a lucrativa Air France, a “jóia da família”Bernard Cassen
Para os radicais liberais, que detêm hegemonia no Fundo Monetário Internacional, no Banco Mundial, na Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), na Comissão Européia, nas organizações patronais e nas páginas editoriais dos grandes meios de comunicação, a existência de empresas e serviços públicos constitui um motivo de indignação permanente. Para muitos deles, a hostilidade obsessiva a qualquer tipo de atividade de produção de bens ou serviços que não seja guiada pela busca do lucro e pelos mecanismos de mercado (exceto, naturalmente, as que se relacionem à manutenção da ordem social) representa um ato de fé.
No entanto, salvo raríssimas exceções, os dirigentes políticos europeus – presentes e passados – não adotam essa postura extremista. É lógico que de Anthony Blair a José María Aznar e Silvio Berlusconi, passando, na França, por alguns membros dos governos Jospin e Raffarin, todos eles só falam em “modernidade” e na eficiência do mercado; mas quando falam do setor público, é sempre para pedir, hipocritamente, sua “reforma” e para se vangloriar dos méritos da “abertura” do capital das empresas que o Estado ainda controla. Isso, sempre em nome de alianças industriais que somente essa “reforma” tornaria possíveis e de receitas financeiras que ela permitiria armazenar num período de maré baixa orçamentária.
As gigantescas vitórias liberais
Quando os políticos citam o setor público, é para pedir, hipocritamente, sua “reforma” e para lisonjear os méritos da “abertura” do capital das empresas
Por detrás desse vocabulário bem-comportado esconde-se a vontade de não se isolar de uma parte de eleitores potenciais e de não bater de frente com um sentimento que continua sendo maciçamente favorável aos serviços públicos acessíveis a toda a população. No entanto, os objetivos são os mesmos daqueles teóricos radicais: ampliar o perímetro de intervenção do capital financeiro e, paralelamente, diminuir a capacidade de resistência, por parte da sociedade, à mercantilização generalizada. Isso é possível por meio do enfraquecimento do peso dos empregados estatutariamente protegidos – os mesmos que, em dezembro de 1995, através de uma “delegação de poder” de greve concedida pelos outros assalariados, lutaram contra os projetos de “reforma” das aposentadorias do governo de Alain Juppé1. Dezembro de 1995 continua sendo um espectro que assombra Jacques Chirac e seus ministros…
Contudo, os liberais obtiveram vitórias gigantescas durante as duas últimas décadas. A OCDE avalia, por exemplo, que, entre 1984 e 2000, somente na União Européia as privatizações arrecadaram a quantia de 563 bilhões de euros2 (quase dois trilhões de reais, o dobro do orçamento da França). E se o ritmo diminuiu a partir de 2000 (passando de um pico de 110 bilhões de euros em 1998 para 22 bilhões em 2001 – respectivamente 385 e 80 bilhões de reais), isso foi simplesmente porque o volume dos ativos privatizáveis passou por um processo de fusões e a queda da Bolsa após o estouro da bolha Internet comprometeu operações no mercado. A paisagem industrial da Europa foi abalada pelo aumento vertiginoso de investidores estrangeiros – principalmente os fundos de pensões anglo-saxônicos – no capital das grandes empresas européias.
Privatizações têm balanço negativo
Entre 1984 e 2000, e somente na União Européia, as privatizações arrecadaram a quantia de 563 bilhões de euros (quase dois trilhões de reais)
Mas ocorreu uma reviravolta total da situação na virada do século: os enormes escândalos no mercado de capitais norte-americano, a falência do setor de telecomunicações e o colapso das ações por toda parte não só minaram a confiança dos investidores como, o que é mais decisivo, a fé no próprio capitalismo (leia, nesta edição, o artigo de René Passet). Portanto, o contexto em que se efetuaram as privatizações nas duas últimas décadas foi radicalmente alterado.
Principalmente pelos números que estão em jogo. O novo primeiro-ministro francês, Jean-Pierre Raffarin, não teve a sorte – se é que se pode dizê-lo – que teve seu antecessor Lionel Jospin, o maior privatizador da história da V República. Durante os cinco anos de seu mandato, o líder socialista superou o que haviam conseguido fazer os três primeiros-ministros de direita (Jacques Chirac, Edouard Balladur e Alain Juppé) que o precederam: mais de 30 bilhões de euros (105 bilhões de reais) em ativos públicos foram entregues à especulação na Bolsa. Como chegou tarde, Raffarin só dispõe – caso as cotações não continuem a despencar – de um patrimônio potencial de uns 20 bilhões de euros (70 bilhões de reais) no mercado de capitais…
Existe um segundo fator desfavorável: no mundo inteiro, o balanço das privatizações tem se revelado negativo para os usuários. Vejamos alguns exemplos: a imposição do estado de urgência na Califórnia, no verão de 2000, para enfrentar a escassez de eletricidade provocada pelas medidas de desregulamentação; o aumento brutal das contas de água e telefone – e, às vezes, fazendo-se acompanhar pela degradação dos serviços – nos países da América Latina que caíram nas mãos da Vivendi3, da Telefonica espanhola e da France Télécom; um aumento de 36% nos últimos 12 anos, em termos reais, do preço da água na Grã-Bretanha; um salto de 60% no preço dos selos, na Suécia, após a liberalização do setor postal; caos no tráfego e catástrofes contínuas (mais de 60 casos de morte) após a privatização da British Rail4 etc.
Bancos japoneses exigem estatização
Os escândalos nas Bolsas dos EUA, a falência das telecomunicações e o colapso das ações minaram a confiança dos investidores e a fé no capitalismo
A esses inconvenientes, às vezes trágicos, é necessário acrescentar a supressão maciça de empregos, a liquidação dos mecanismos de rateio de custos visando a diminuir as desigualdades e – o que pode parecer paradoxal – a quase-falência de algumas das empresas privatizadas. Diante da distribuição de dividendos suntuosos, num primeiro momento, de inadmissíveis erros administrativos e de sub-investimentos, passando pela auto-distribuição de opções sobre títulos e auto-reajustes salariais prodigiosos para os diretores, muitas dessas empresas estão em vias de fechar as portas e apelam… para o contribuinte.
Para não mencionar os bancos japoneses – que exigiram a estatização -, constata-se que na pátria do liberalismo, que é a Grã-Bretanha de Anthony Blair, a empresa Railtrack, responsável pela rede ferroviária britânica e privatizada em 1996, foi forçada a ser reassumida e recapitalizada pelo Estado devido à sua incapacidade de financiar os dispositivos de segurança cuja inexistência custou a perda de dezenas de vidas humanas; que a empresa responsável pelo controle do tráfego aéreo (National Air Traffic Control Services – NATS) também está de pires na mão, pedindo uma esmola ao governo; que a British Energy – privatizada em 1996 e que responde por 20% das necessidades do país em energia elétrica, com suas oito centrais nucleares – está ameaçada de quebrar.
Vendendo as jóias da família…
Diante de inadmissíveis erros administrativos e auto-reajustes salariais prodigiosos, muitas das empresas privatizadas estão em vias de fechar as portas
Ao anunciar seu programa de “abertura do capital”, total ou parcial, das poucas empresas públicas ainda existentes – com a Air France (companhia aérea), EDF (Electricité de France) e GDF (Gaz de France) à cabeça da lista -, Raffarin e seu ministro da Economia e Finanças, Francis Mer, não parecem estar sincronizados com a conjuntura do mercado de capitais. Por outro lado, têm interesse em permanecer bastante discretos quanto às virtudes intrínsecas das privatizações. Em princípio, portanto, não lhes resta argumento confiável algum, exceto de natureza ideológica, para apresentar à opinião pública algo que evitam fazer. Foram apanhados diante de uma lógica dupla: de um lado, agradar aos amigos e vedar, por pouco que seja, o buraco do orçamento; de outro, participar da frenética orgia liberalizante da Comissão Européia e da maioria dos governos da União Européia.
Na realidade, as privatizações são um tipo de “partilha dos despojos” que recompensa os amigos do novo poder. Primeiramente, os bancos, que recebem dezenas de milhões de euros para “preparar” o processo de cessão dos ativos patrimoniais. Agradecimentos a Francis Mer, portanto, por parte do ABN Amro, Rothschild & Cia., Clinvest, Morgan Stanley, Crédit agricole Indosuez, Lazard, BNP Paribas e Société Générale. Entre as companhias privatizáveis, uma representa lucro imediato e os setores em que foi dividida podem ser adquiridos por uma bagatela: a Air France. Com um valor avaliado em cerca de 3 bilhões de euros (10,5 bilhões de reais), sua parte estatal (57%) representa uma quantia de 1,64 bilhão de euros (5,75 bilhões de reais). É uma das empresas mais rentáveis do mundo: no primeiro trimestre de 2002, teve um faturamento líquido de 159 milhões de euros (quase 560 milhões de reais), ou seja, projetado para o restante do ano, esse faturamento seria de 600 milhões de euros (2,1 bilhões de reais), o equivalente a 20% de sua capitalização na Bolsa. Nenhum acionista com um pouco de bom senso venderia sua parte de uma empresa tão próspera.Francis Mer, entretanto, pretende vender uma quarta parte da empresa. É o que se chama vender as jóias da família…
Privatizando por antecipação
A Railtrack, empresa responsável pela rede ferroviária britânica privatizada em 1996, foi forçada a ser reassumida e recapitalizada pelo Estado
No setor aeronáutico, paira uma ameaça sobre a Direção Geral da Aviação Civil (DGAC), que administra com lucro e em condições de segurança consideradas excelentes o espaço aéreo francês, numa lógica de cooperação com os outros organismos nacionais que fazem parte da Eurocontrol. No entanto, a Comissão Européia, sob o pretexto do “céu único” europeu, pretende instaurar o princípio da concorrência num setor de que nada entende e, em sua defesa, incentiva a privatização, apesar do desastroso precedente britânico5.
Fascinados pela perspectiva de salários mirabolantes e de generosas distribuições de títulos de que se beneficiariam seus colegas dos grupos privados, os presidentes e principais dirigentes das empresas que ainda são públicas são os primeiros a exigir uma mudança de estatuto. Com o objetivo de se prepararem para essa batalha, já acionaram suas estruturas internas, procedendo a uma privatização por antecipação6. Para perda pessoal do presidente socialista do grupo La Poste, Martin Vial, que teve que ceder o lugar a um amigo do novo governo, Jean-Paul Bailly, ex-presidente da empresa ferroviária francesa e que não será menos ardoroso na defesa dos mesmos objetivos – como vem sendo o caso com François Roussely, da EDF, de Jean-Cyril Spinetta, da Air France, e, principalmente, de Pierre Gadonneix, da GDF, que baba de impaciência.
Uma engrenagem implacável
Na realidade, as privatizações são um tipo de “partilha dos despojos” que recompensa os amigos do novo poder. Primeiramente, os bancos
A lógica ultraliberal da União Européia é, portanto, o principal motor das privatizações (assim como é, às vezes, o pretexto invocado para justificá-las), embora teoricamente os tratados sejam neutros quanto à forma de propriedade das empresas. A engrenagem é implacável e pode ser esquadrinhada em quatro tempos:
– a Comissão propõe, e o Conselho aprova, medidas de “liberalização” para as empresas públicas em situação de monopólio, preferencialmente as que funcionam em rede (energia, transporte, correios e telecomunicações). Essas empresas perdem automaticamente, portanto, uma parte de seu mercado nacional em proveito de empresas estrangeiras;
– para tentar conservar seu faturamento, as empresas que ainda são públicas são levadas a se internacionalizar por meio de aquisições exteriores, muitas vezes pagas a preços que desafiam o bom senso (exemplos disso são a NTL britânica, a MobilCom alemã, a France Télécom, a Edenor Argentina e a EDF);
– diante da incapacidade total ou parcial de pagarem o preço de sua compra pela troca de ações, as empresas ficam endividadas, o que se pode dar em níveis astronômicos (74 bilhões de euros no caso da France Télécom) ou apenas muito elevados (22,2 bilhões de euros, no caso da EDF, 6,7 bilhões dos quais sendo “sobre-valores”, ou seja, sobre-custos da venda, irrecuperáveis em caso de revenda dos ativos);
– a Comissão Européia, em nome da sacrossanta concorrência, proíbe o socorro por parte do Estado com a manutenção do status público, mas o incentiva (como se deu no caso do Crédit Lyonnais e da Air France alguns anos atrás) como medida prévia à privatização que, a partir de então, se torna a única saída possível.
A Convenção de 2004
A lógica ultraliberal da União Européia é, portanto, o principal motor das privatizações (assim como é, às vezes, o pretexto invocado para justificá-las)
Essa série de passes de mágica pode ser agravada pelas políticas fiscais nacionais. Raffarin, por exemplo, após uma generosa distribuição de presentes substanciais aos contribuintes ricos e às empresas, se recusa – dizendo-se defensor da “França dos de baixo” – a permitir que a EDF aumente suas tarifas e organiza, dessa maneira, os resultados negativos da empresa para o ano de 2002. Mais um argumento para privatizá-la!
Portanto, é a lógica da atual construção européia que deve ser questionada. A ocasião para fazê-lo surgirá em 2004, quando as pessoas se deverão pronunciar diretamente (se pelo menos lhes permitirem que o façam) em relação ao tratado que vier a ser proposto pela conferência intergovernamental que se baseará no resultado dos trabalhos da Convenção para o Futuro da Europa7. Pois, até o momento, a dimensão social e a avaliação do serviço público não foram considerados dignos de figurar num futuro dispositivo constitucional europeu…
(Trad.: Jô Amado)
1 – Ler “Quand la société dit non”, Le Monde diplomatique, janeiro de 1996.
2 – Le Monde, 9 de outubro de 2002.
3 – Ler, de Franck Poupeau, “A La Paz, les dégâts de la privatisation”, Manière de voir nº 65, “La ruée vers l?eau”, setembro-outubro de 2002.
4 – Ler, de Marc Nussbaumer, “Le chaos des chemins de
Bernard Cassen é jornalista, ex-diretor geral de Le Monde Diplomatique e presidente de honra da Atacc França.