A oposição russa, sempre corrupta…
Nos início dos anos 2000, Vladimir Putin instrumentalizou a luta contra a corrupção para tomar o poder que os oligarcas da era Yeltsin acumularam durante a transição pós-soviética. Era a vez daqueles que eram próximos do novo presidente enriquecer. Quinze anos depois, malversações e extorsões continuam parte integrante do capitalismo russo
Em 6 de junho, o jornalista russo Ivan Golunov foi preso por posse de drogas. A polícia recorreu a um truque habitual: plantar “provas” com o acusado e depois em seu apartamento. Mas, dessa vez, a prisão levantou uma onda de protestos, levando às ruas centenas de manifestantes, e suscitou declarações de apoio de órgãos de imprensa russos que geralmente não criticam as autoridades. Mais surpreendente ainda: Golunov foi solto cinco dias depois.
As investigações do jornalista sobre os crimes de empresários e de burocratas não deixaram de provocar a ira de seus poderosos inimigos, notadamente o prefeito de Moscou, Sergei Sobyanin, cuja fortuna imobiliária ele revelou. Mas isso afetou apenas um público limitado. As reações à sua prisão estão menos no conteúdo de suas reportagens que na raiva largamente difundida em relação a abusos permanentes de poder por parte dos líderes russos. Elas se inserem na continuação do protesto que começou no inverno de 2011-2012, quando dezenas de milhares de russos se mobilizaram em oposição à manipulação das eleições pelo partido no poder, Rússia Unida, e ao iminente retorno de Vladimir Putin à presidência.
Se a oposição é composta de uma ampla gama de correntes políticas e ideológicas – de liberais a socialistas, passando por monarquistas e libertários –, todos concordam com a necessidade de lutar contra a corrupção – um tema que Alexei Navalny, que não para de evocá-lo desde os anos 2000, conseguiu impor ao debate. Por meio de várias plataformas, como seu blog LiveJournal, sua conta no Twitter ou operações de mídia realizadas por sua Fundação Anticorrupção (FBK), ele expõe fraudes de todo tipo, do nepotismo ao enriquecimento pessoal de funcionários públicos, passando pelo roubo em larga escala praticado por empresas estatais. Ele também revelou informações comprometedoras sobre figuras do Kremlin, começando por Dmitri Medvedev. O documentário Don’t Call Him “Dimon” [Não o chame de “Dimon”], produzido pela FBK em 2017, revelou a fortuna pessoal do ex-presidente, composta de iates e de um vasto patrimônio imobiliário tanto na Rússia como na Itália, incluindo vinhas e um castelo na Toscana.
Sem dúvida alguma, a luta contra a corrupção permitiu unir de forma eficaz a oposição, chegando a forçar o regime a abordar publicamente a questão. Este ano, durante sua tradicional conversa ao vivo com telespectadores (escolhidos a dedo), perguntaram a Putin se ele se sentia “pessoalmente responsável por esse caos”. “Claro”, ele respondeu, antes de afirmar: “O número de crimes relacionados à corrupção está diminuindo, principalmente graças à nossa ação sustentada e intransigente”.
De fato, algumas figuras de alto escalão foram presas, como o ex-ministro do Desenvolvimento Econômico, Alexei Uliukaiev, condenado em dezembro de 2017 a oito anos de prisão por ter aceitado suborno. Mas os resultados de tais esforços são suficientes para levantar suspeitas sobre sua sinceridade. Por exemplo, o ex-ministro da Defesa Anatoly Serdyukov foi demitido em 2012 após um escândalo de corrupção e depois acusado de negligência em 2013, antes de ser inocentado no ano seguinte. Ele agora ocupa uma posição importante (e sem dúvida muito bem remunerada) no Rostec, um conglomerado industrial-militar de propriedade estatal. Assim, as investigações sobre corrupção parecem refletir conflitos internos dentro da elite russa, e não um mecanismo disciplinar, e são usadas como arma contra rivais.
Campanhas oficiais contra a corrupção são pouco mais que um exercício de comunicação. Já a oposição realmente quer enfrentá-la. Para ela, trata-se de incidentes que não são inerentes ao sistema; uma vez livre dessa ferida, este poderia funcionar de maneira mais justa e racional. Isso equivale, contudo, a tomar uma característica por uma anomalia: as orgias de enriquecimento ilícito contra as quais se insurgem, com razão, Navalny e outros não são o resultado da ganância do séquito de Putin; elas fazem parte da própria arquitetura do sistema. Não são um fenômeno externo ou acidental do capitalismo russo contemporâneo: são congênitas a ele.
Para entender melhor esse emaranhamento, precisamos voltar às origens da elite pós-soviética. A mídia ocidental retrata seus membros como políticos habilidosos que fizeram fortuna quando da abertura para a economia de mercado nos anos 1990. Algumas práticas eram talvez de uma legalidade duvidosa, mas não era a própria lei um tanto difusa durante aquele período caótico? Boris Berezovsky1 encarnava bem essa oligarquia que emergiu na década de 1990. Em poucos anos, esse ex-vendedor de material de informática tornou-se proprietário de bancos, de uma empresa petrolífera, de um grande jornal e da maior rede de televisão russa. Ele chegou a ocupar um alto cargo durante a presidência de Boris Yeltsin. Os membros dessa oligarquia têm sido frequentemente comparados aos “barões ladrões” (robber barons) do final do século XIX nos Estados Unidos: homens cujo enriquecimento por meios pouco escrupulosos logo foi cercado de respeitabilidade.
Essa representação, porém, não diz nada sobre o processo que permitiu a esses oligarcas acumular tais fortunas. Longe de ser constituída no final de uma competição implacável, a nova elite russa nasceu da vontade política do Estado. Yeltsin, com pressa para desmantelar a economia soviética planejada, privatizou maciçamente os ativos públicos a partir de 1992. A operação assumiu várias formas, como os “leilões de ativos”, em que cidadãos comuns podiam adquirir ações de empresas para depois trocá-las; ou ainda as “privatizações por decreto”, pelas quais Yeltsin transferiu a propriedade de empresas inteiras para pessoas de sua escolha.
Para ser milionário em nosso país…
O conjunto dessas privatizações permitiu criar uma nova classe de oligarcas que adquiriram parcelas significativas da infraestrutura produtiva da URSS a preços ridiculamente baixos. Seu ponto em comum não era uma visão de negócios particularmente desenvolvida, mas uma capacidade de explorar suas ligações com o aparato estatal, usando sua rede para obter uma licença de exportação, por exemplo, ou prometendo apoiar Yeltsin em sua tentativa de se reeleger em 1996 em troca de uma companhia petrolífera, como aconteceu com os “empréstimos contra ações” de 1995.
“Para se tornar um milionário em nosso país”, explicou o banqueiro Piotr Aven, “não há absolutamente nenhuma necessidade de ser um chefe ou um especialista em um campo específico. Frequentemente, é suficiente ter um apoio ativo dentro do governo, do Parlamento, junto às autoridades locais e aos órgãos de segurança. Um belo dia, seu banco insignificante pode ser autorizado a, por exemplo, operar com fundos públicos. Ou, então, cotas lhe são generosamente concedidas para a exportação de petróleo, madeira e gás. Em outras palavras, você é promovido à categoria de milionário.”
Quando chegou ao poder, em 2000, Putin se comprometeu publicamente a “liquidar a classe dos oligarcas”, sugerindo que o vento havia mudado e que as grandes fortunas particulares não eram mais intocáveis. A realidade se mostrou muito diferente. Longe de reprimir os oligarcas, o presidente encorajou seu desenvolvimento. Segundo o ranking anual da revista Forbes, em 2000 a Rússia não tinha nenhum bilionário; no fim de seu segundo mandato, em 2008, eles eram 82, e onze anos depois eles são 98, apesar de uma conjuntura econômica lenta, das sanções ocidentais impostas à Rússia a partir de 2014 e da anexação da Crimeia.
O que mudou desde a chegada de Putin não é a possibilidade de enriquecimento pessoal massivo, mas a identidade daqueles que o alcançam e os vínculos que mantêm com o Estado. A maioria dos oligarcas da era Yeltsin não fazia parte do aparato estatal; eles se beneficiaram de suas disfunções. Aqueles da era Putin são sobretudo pessoas de dentro que souberam empregar o poder do Estado para tomar posse de bens. Com diferenças setoriais: na década de 1990, enquanto o preço dos recursos naturais era geralmente baixo, as maiores fortunas da Rússia estavam concentradas em bancos, no setor financeiro, em televisão e comunicação. No início dos anos 2000, o aumento dos preços do petróleo, do gás e dos metais beneficiou aqueles que detinham ações nesses setores. Entre esses magnatas estavam os próximos do Kremlin à frente de empresas públicas, que se aproveitaram do que poderia ser chamado de nepotismo capitalista de Estado.
No entanto, essa noção não reflete a similaridade dos métodos e das prioridades entre empresas públicas e privadas. Em ambos os casos, trata-se de otimizar o valor acionário da remuneração dos executivos, e não de alocar seus lucros em objetivos estratégicos nacionais (para não mencionar a redistribuição de riquezas). O resultado é mais ou menos o mesmo, apesar das diferenças formais.
Amigos e inimigos…
A natureza indefinida das fronteiras entre o Estado e o mundo dos negócios não data da era Putin, não indica que o Estado está interferindo na economia para obter o controle dela nem que indivíduos particularmente poderosos se considerem trapaceiros. Da mesma forma, como em todo o mundo, um programa político baseado principalmente na oposição à corrupção apresenta riscos e limitações. Navalny denuncia frequentemente o desperdício de dinheiro público causado pela corrupção, o que é inegável. Mas essa lógica também pode estar subjacente a uma posição mais ampla contra qualquer intervenção do Estado e a favor da economia de mercado. Isso poderia levar a justificar remédios neoliberais ainda mais brutais que aqueles já conhecidos na Rússia, sob o pretexto de que o Estado continua sendo uma fonte de pilhagem muito abundante.
A corrupção está tão enraizada no entrelaçamento do poder político e do poder econômico russos que remonta à presidência de Yeltsin e à própria formação da economia pós-soviética. Quando um empresário quer assumir uma empresa concorrente, por exemplo, ele pode pagar altos funcionários para conduzir auditorias fiscais e inspeções trabalhistas até que o proprietário concorde com ele sobre o preço de compra. Nos últimos dez anos, mais e mais funcionários públicos têm se dedicado a tais práticas, usando seu poder legal para obter os bens que cobiçam, ilustrando o provérbio: “Para os amigos, tudo. Para os inimigos, a lei”.
O deputado e seu iate
Vern Buchanan, um rico comerciante da Flórida (Estados Unidos), comprou um iate de vários milhões de dólares no mesmo dia em que votou no Congresso uma lei para reduzir as alíquotas de impostos sobre rendimentos muito altos. Desde então, esse republicano encarna a profunda corrupção de alguns políticos eleitos. Seus adversários fazem a caricatura dele com um boné de marinheiro na cabeça. O caso é contado no New York Times (“With $30 million, obscure democratic group floods the zone in House races” [Com US$ 30 milhões, obscuro grupo democrata inunda a área nas corridas à Câmara], 31 out. 2018).
Muitos líderes são comprados
Durante muito tempo, os Estados Unidos ficaram em primeiro lugar em financiamentos privados e gastos em eleições gerais. Eles foram ultrapassados pela Índia, onde as eleições legislativas de 2019 custaram US$ 8,7 bilhões, enquanto, para as últimas eleições de 2016 (presidencial e do Congresso), os candidatos norte-americanos gastaram US$ 6,5 bilhões.
Para isso serve ser rico
O bilionário Jay Robert Pritzker pagou do próprio bolso a modesta soma de US$ 170 milhões para se eleger governador de Illinois, de acordo com a The Economist (10 nov. 2018). Todos os candidatos franceses, na eleição presidencial de 2017, somaram 74,1 milhões de euros… Uma miséria.
Sem dinheiro, sem debate
Nos Estados Unidos, o Comitê Nacional Democrata (Democratic National Committee) decidiu que os candidatos às eleições primárias devem, para participar dos debates de setembro de 2019, cumprir duas condições: apresentar quatro pesquisas indicando que poderiam obter pelo menos 2% dos votos nas eleições presidenciais; e ter 130 mil doadores.
Tony Wood é escritor, membro do conselho editorial da New Left Review (Londres) e autor de Russia Without Putin: Money, Power and the Myths of the New Cold War [Rússia sem Putin: dinheiro, poder e os mitos da nova Guerra Fria], Verso, Londres, 2018.
1 Um dos oligarcas russos mais poderosos. Acusado de corrupção pela Rússia, França e Brasil, ele fugiu para Londres, onde se suicidou (segundo a versão oficial) em 2013.