A ordem de prisão européia
A criação, no dia 6 de dezembro de 2001, de uma ordem de prisão européia, insere-se no princípio de reconhecimento mútuo. Em vigor a partir de 1° de janeiro de 2004, dirá respeito não só a indivíduos já julgados, mas também aos que são procuradosJean-Claude Paye
Assinado em 1997, o tratado de Amsterdã faz da criação de um “espaço de liberdade, de segurança e de justiça” um dos objetivos da União Européia. Esse objetivo teria podido ser atingido de duas formas: pela harmonização progressiva das legislações dos Estados membros; e pelo reconhecimento mútuo das decisões judiciárias. As duas opções não são equivalentes e o Conselho Europeu de Tampere privilegiou a segunda solução, em outubro de 1999, fazendo dela “a pedra angular da cooperação judicial, tanto civil como penal”.
Se a harmonização das legislações fortalece o primado da lei nas relações entre Estados membros, o reconhecimento mútuo das decisões aumenta o primado atribuído aos processos sobre a lei propriamente dita. Em vez de levar à unificação dos códigos penais dos Estados membros, essa segunda via permite a instalação de um espaço judicial que permite a subsistência de desigualdades entre os sistemas penais. Além disso, as decisões aprovadas pelos quinze países da União Européia depois do dia 11 de setembro de 2001 têm como resultado estender a soberania dos países em matéria penal ao conjunto do território da União, suprimindo os diferentes controles – políticos e judiciais – da legalidade de seus atos.
Supressão de obstáculos
A ordem de prisão européia substitui o processo normal de extradição, que se baseia em uma dupla acusação: no país requisitante e no país requisitado
A criação, pelo Conselho dos Ministros da Justiça e dos Negócios do Interior, no dia 6 de dezembro de 2001, de uma ordem de prisão européia, insere-se no princípio de reconhecimento mútuo. Em vigor a partir de 1° de janeiro de 2004, dirá respeito não só a indivíduos já julgados, mas também aos que são procurados. Cada autoridade judicial reconhecerá e executará automaticamente, mediante controles mínimos, o pedido de entrega de uma pessoa formulado pela autoridade judicial de outro Estado membro. Essa ordem poderá ser emitida para infrações passíveis, no país de emissão, de uma pena de pelo menos três anos. Estabeleceu-se uma lista não exaustiva de 32 incriminações: terrorismo, cibercriminalidade, fraude, lavagem de dinheiro, corrupção, tráfico de pessoas, homicídio voluntário, racismo etc.
A ordem de prisão européia substitui o processo normal de extradição, que se baseia na exigência de uma dupla acusação: a extradição só é possível se o fato perseguido constitui um delito tanto no país requisitante da pessoa acusada quanto no país requisitado. A ordem de prisão européia deixa de lado essa condição: basta que o comportamento em questão constitua uma infração no Estado requisitante. Tal supressão decorre logicamente da aplicação do reconhecimento mútuo. Segundo a Comissão de Bruxelas, “pouco importa, conseqüentemente, que a acusação que deu lugar à emissão da ordem de prisão não exista – ou que seus elementos constitutivos sejam diferentes – no território do Estado de execução. Através desse princípio, cada Estado membro não apenas reconhece a integralidade da legislação penal dos outros Estados membros, como também aceita ajudá-los para fazer com que seja respeitada1
“.
As razões da iniciativa européia
A exigência da dupla acusação já havia sido contornada para algumas infrações. A decisão do Conselho dos Ministros de 27 de setembro de 19962
estabelece com precisão que a entrega da pessoa não pode ser recusada, mesmo se o fato perseguido não for uma infração no país solicitado, desde que o Estado requisitante o faça com base no crime de associação de malfeitores, ou de “conspiração”, e que essa infração se situe na esfera da repressão ao terrorismo, ao tráfico de drogas e outras formas de crime organizado. Essa decisão, que havia sido ratificada somente por alguns Estados membros, deixava subsistirem os mecanismos de controle próprios do processo de extradição. É ao poder político que cabe a decisão de proceder a uma extradição ou de recusá-la. A ordem de prisão suprime essa prerrogativa e o controle exercido pelas jurisdições administrativas.
Atualmente, é ao poder político que cabe a decisão de proceder a uma extradição ou de recusá-la. A ordem de prisão suprime essa prerrogativa
Num processo normal de extradição, o controle judicial incide sobre a materialidade dos fatos e a legalidade da solicitação. No que diz respeito à ordem de prisão, o controle judicial incide apenas sobre a regularidade formal do documento. É necessário ver no caráter automático da entrega e no abandono dos procedimentos de verificação as razões da iniciativa dos países da União Européia. Além disso, ao contrário da extradição, em que a pessoa entregue só pode ser perseguida pelos delitos explicitamente mencionados na solicitação, a ordem de prisão européia libera o país requisitante da qualificação do crime que forneceu na ordem.
Definições ambíguas
A emissão de uma ordem de prisão européia baseia-se num princípio de confiança mútua: admite-se, a priori, que os sistemas penais dos países da União respeitam a democracia e o Estado de direito. E a implantação do novo processo só pode ser suspensa “em caso de violação grave e reiterada pelos Estados membros dos direitos fundamentais3
“. Ora, essa exigência não resultaria mais da implantação de mecanismos de controle dos atos do poder, mas de uma pressuposta legalidade de tais atos.
A decisão conjunta sobre o terrorismo, aprovada no dia 06 de dezembro de 2001 pelo Conselho dos Ministros da Justiça e dos Negócios do Interior, suscita problemas semelhantes. Na realidade, define como infração terrorista “as ações intencionais que, por sua natureza ou seu contexto, possam atingir gravemente um país, ou uma organização internacional” quando “o autor as comete com o objetivo de intimidar gravemente uma população” ou de “obrigar indevidamente poderes públicos, ou uma organização internacional, a realizarem, ou a se absterem de realizar, qualquer ação” ou, enfim, de “desestabilizar ou destruir gravemente as estruturas fundamentais políticas, constitucionais, econômicas ou sociais de um país, ou de uma organização internacional4
“. Essas infrações podem ser “o fato de causar destruições em massa a uma instalação governamental ou pública, a um sistema de transporte, a uma infra-estrutura, a um lugar público ou uma propriedade privada, capaz de pôr em perigo vidas humanas ou produzir perdas econômicas consideráveis”.
Caráter liberticida do texto
A ordem de prisão européia baseia-se num princípio de confiança mútua: admite-se que os países respeitam a democracia e o Estado de direito
Vaga, essa definição permite interpretações muito amplas. Qualquer ação social de oposição tem por efeito intimidar uma parte mais ou menos importante da população, e tem por objetivo obrigar o poder a realizar certas ações ou a não realizá-las. Os termos “graves” e “indevidamente” são puramente subjetivos e não acrescentam nenhuma precisão objetiva para qualificar a ação. As noções de desestabilização e de destruição das estruturas econômicas ou políticas de um país permitem atacar de frente os movimentos sociais. Foi com esses argumentos que, no início da década de 80, Margaret Thatcher, primeira-ministra britânica, tentou aplicar a lei antiterrorista à greve dos mineiros. Essa definição rompe com a tradição do Estado de direito (leia, nesta edição, o artigo de John Brown).
O caráter liberticida do texto é de tal modo aparente, que se estipula, em anexo, que “nada na decisão conjunta pode ser interpretado como visando a reduzir ou a bloquear direitos ou liberdades fundamentais, como o direito de greve, a liberdade de reunião, de associação ou de expressão, inclusive o direito de, com outros, fundar sindicatos e filiar-se para a defesa de seus interesses e o direito de manifestar-se, a isso vinculado5
“. Isso não significa, entretanto, um engajamento sem força jurídica que deixa cada Estado membro livre para conduzir a política penal de sua escolha.
Práticas e regras transgressoras
O objetivo declarado dessa decisão conjunta é aproximar os códigos penais dos Estados membros em matéria de terrorismo. Seis deles já dispõem de uma legislação específica e o Terrorism Act britânico é que inspirou o texto europeu. Todas essas legislações fazem da desestabilização do poder político ou econômico um elemento especificador da infração terrorista. A título de exemplo, o artigo 4201-1 do Código Penal francês define as ações terroristas como ações que têm “por objetivo perturbar gravemente a ordem pública pela intimidação ou pelo terror”. O Código espanhol faz referência ao objetivo de subverter o sistema constitucional e atingir gravemente a ordem pública. O Código italiano fala da derrubada da ordem democrática. O Código Penal português faz referência ao fato de alterar ou de perturbar o funcionamento das instituições nacionais.
As medidas podem ser implantadas de forma “pró-ativa” (na ausência de infração). A acusação terrorista justifica a detenção preventiva e administrativa
Os outros Estados membros não criaram acusação específica. Perseguem esses delitos graças a acusações já existentes, como a noção de associação de malfeitores que, somada a uma abundante jurisprudência, permite punir não só a participação em ações terroristas, como também a simples filiação a essas organizações. Se o arsenal legislativo desses países é suficiente para perseguir tais delitos, parece que as razões da criação de uma acusação específica encontram-se na justificativa de práticas e de regras que transgridem os princípios tradicionais de procedimento penal. Trata-se de técnicas especiais de inquérito como a escuta telefônica, a vigilância permanente, a interceptação da correspondência ou a instalação de mecanismos que permitam ler e gravar todas as mensagens eletrônicas sem mandado ou autorização de um juiz.
Justificar o Estado de exceção
O conjunto dessas medidas pode ser implantado de forma “pró-ativa”, isto é, na ausência de infração. A acusação terrorista justifica igualmente medidas excepcionais de detenção preventiva ou de prisão administrativa. Na Espanha, por exemplo, uma pessoa perseguida com base na lei antiterrorista não pode escolher seu advogado6
.
A ordem de prisão européia não induz uma unificação das legislações e dos processos penais; ao contrário, permite a coexistência de profundas disparidades entre os Estados membros. O sentido real da criação de uma acusação especificando a ação terrorista reside na adoção de regras de procedimento penal que transgridem o direito comum. O mesmo ocorre com a definição aprovada pela União Européia. Menos do que unificar as legislações nacionais, trata-se de justificar a utilização, diferente em cada país, de procedimentos excepcionais.
(Trad.: Iraci D. Poleti)
1 – Proposta de decisão conjunta relativa à ordem de prisão européia e aos processos de extradição entre Estados membros, EUR – Propos