A organização da resistência
Todas as formas da luta são boas, desde que denunciem as finalidades do sistema liberal, as múltiplas conivências que tece com a mídia, o enclausuramento de nossas vidas, a uniformização cultural e econômica do planeta e as ações dos homens que não cessam de despolitizar os cidadãos, para melhor subjugá-losFrançois Brune
A Resistência está se organizando. Não poderia ser de outra forma. Qualquer dirigente político que tenha a noção do interesse público, qualquer jornalista que deseje de fato informar, qualquer educador que queira desenvolver a consciência, qualquer humanista que tente promover a dignidade dos indivíduos, qualquer militante que trabalhe pela emancipação dos povos, ou simplesmente pela salvaguarda da cidadania, todos encontram em seu caminho o obstáculo da publicidade. Estas duas últimas décadas viram surgir muitos protestos individuais ou de categorias, sem dúvida esparsos demais para deter o vasto sistema econômico-midiático que nos cerca, mas cuja reprodução preparou a resistência coletiva que agora está emergindo.
A oposição do público sempre se manifestou, isoladamente, nas cartas indignadas da correspondência dos leitores de jornais e revistas. Submetidas a uma seleção, é claro. Deturpadas, obviamente. Mas bem presentes, e não deixando de provocar, muitas vezes, respostas constrangidas por parte dos “suportes” questionados.1
Um contra-poder indispensável
As pichações nos painéis e os cartazes rasgados, ou “grafitados”, são outras formas de revolta isolada que, embora “ilegais”, não deixam de ser respostas legítimas na medida em que os cidadãos, que pagam impostos para usufruir de um espaço público sadio, não têm, na maioria das vezes, outro meio para defender a sua paisagem a não ser rabiscando as ignóbeis produções da poluição publicitária. 2
As associações de consumidores, de maneira mais sistemática, são regularmente levadas a denunciar os desvios da publicidade. Não são poucas as edições de suas revistas que apresentam mentiras desta ou daquela campanha, ou a desinformação sobre produtos (a composição, os perigos etc.). Centrado no produto, numa melhor relação qualidade/preço, o protesto consumista fica muitas vezes preso à ideologia do consumo. É, no entanto, um contra-poder indispensável, que mostra, no dia-a-dia, as manipulações de que somos objeto, os desvios da lei e o cinismo dos comerciantes.
O papel das mulheres
Pichações e cartazes rasgados não deixam de ser respostas legítimas, na medida em que os cidadãos não têm outro meio para defender a sua paisagem
Uma outra forma de resposta é a dos profissionais da saúde, que se insurgem, há quinze anos, contra os males do condicionamento publicitário. Tiveram que deplorar o abuso de doces entre crianças, a obesidade ? em nítida progressão entre a juventude ?, as múltiplas deteriorações provocadas pelo alcoolismo e pelo tabagismo em todos os níveis, sem falar dos acidentes rodoviários, propiciados pelo culto do automóvel. Tiveram que enfrentar as articulações do lobby dos anunciantes, por ocasião da lei Evin. Tiveram que exortar os poderes públicos a não se omitir diante do imperialismo publicitário. E freqüentemente fracassaram, devido à covardia dos políticos… 3
As feministas, por sua vez, permaneceram e permanecem na linha de frente desse combate. Sua resistência manifestou-se principalmente por ocasião da lei Roudy. Determinados artigos dessa lei previam a possibilidade de processar judicialmente os responsáveis por publicidade sexista. A coalizão de interesses econômicos e midiáticos provocou a derrubada desse aspecto do projeto.4 A partir daí, a luta prosseguiu através de diversas associações, dentre as quais as recentes Chiennes de garde (Cadelas de guarda) e La Meute (A Matilha). 5 E um certo número de militantes compreendeu que é inútil denunciar as representações degradantes da mulher em determinadas publicidades se não se atacar radicalmente o sistema publicitário, cuja lógica é manipular todo e qualquer ser para fins comerciais (a mulher, claro, mas também o homem, a criança, o velho etc.).
A exaltação do american way of life
Centrado no produto, numa melhor relação qualidade/preço, o protesto das associações de consumidores fica muitas vezes preso à ideologia do consumo
Outras autoridades “morais”, ou institucionais, fazem ouvir de tempos a tempos suas vozes indignadas diante da perda ou da profanação dos “valores”, ligadas à devassidão publicitária. Estas denúncias, úteis, explodem no campo da mídia. Mas são freqüentemente prejudicadas pelas ambigüidades dos que protestam. Por exemplo, muita gente se sentiu incomodada com a ira antipublicitária do comandante Cousteau, que, por seu lado, usava a publicidade para ampliar sua fundação e sua imagem. Da mesma forma, o sofrimento público do cardeal Lustiger diante de certas apresentações cinematográficas de Cristo não pôde fazer esquecer as palavras do Vaticano legitimando o sistema publicitário com o exemplo do Salvador: “O próprio Jesus fez publicidade”.6
Mais constantes, e também mais eficazes, foram as posições dos militantes ambientalistas, confrontados com a poluição publicitária que desfigura a paisagem diária e degrada a vida da cidade numa festa de desenhos. É o caso da entidade “Paysages de France”, que há dez anos vem conseguindo, por meio de um trabalho obstinado, um certo número de vitórias locais, não sem ressaltar, aos olhos de todos, o vandalismo do poder econômico, a insuficiência da lei, e a tibieza ? e até a cumplicidade ? dos representantes da autoridade pública.7 A luta contra os prejuízos ambientais da publicidade não se limita, aliás, à presença obstrutiva de placas e cartazes: os ecologistas denunciam, de forma mais grave, a ideologia publicitária em si, uma vez que esta, exaltando por toda parte o modelo ocidental de super-consumo (o american way of life), incentiva e mascara a pilhagem de recursos do planeta, a destruição dos espaços verdes, a produção do efeito-estufa.8
Nasce a antipublicidade
As feministas, que sempre estiveram à frente da luta, criaram várias associações, como as Chiennes de garde (Cadelas de guarda) e La Meute (A Matilha)
Todas essas respostas parciais, surgidas em função dos acontecimentos, evidentemente não foram suficientes. Foi preciso que se criassem entidades e associações que atacassem de frente o imperialismo publicitário em todos os seus aspectos e em todos os seus prejuízos. Depois do Publiphobe, que apareceu em 1990, foi a vez, em 1992, da Résistance à l?Agression Publicitaire (RAP ? Resistência à Agressão Publicitária).9 Apesar do apoio de personalidades famosas, esse grupo de irredutíveis levou um certo tempo para ser reconhecido. A RAP aparece agora, no campo social, como uma rocha salutar à qual podem aderir os cidadãos conscientes da manipulação publicitária, e que se opõem à opressão da falsa felicidade do “consumo”.
Em 1999, foi a vez de publicitários, enojados com o mercantilismo e o falso prestígio de sua “arte”, abandonarem a condição de sacerdotes para denunciarem o bezerro de ouro que haviam adorado. O Comité des Créatifs contre la Publicité (CCCP ? Comitê dos Criativos contra a Publicidade) interveio com brilhantismo na rotina da mídia, lançando a revista Casseurs de Pub, apesar da censura do meio profissional.10 As relações que se criaram entre “Paysages de France”, RAP e CCCP, por mais limitados que sejam seus meios de atuação, permitem esperar uma ampliação da resistência. Contra a massa midiática do Golias publicitário, nasceu a funda da antipublicidade. Mas é preciso não subestimar as armadilhas capazes de tornar inoperante esse movimento emergente.
Uma opressão multidimensional
São inesquecíveis as palavras do Vaticano legitimando o sistema publicitário com o exemplo do Salvador: “O próprio Jesus fez publicidade”
Os resistentes têm três tipos de dificuldades pela frente. Inicialmente, a desigualdade de poder entre os cidadãos e o sistema que os escraviza: de um lado indivíduos que, mesmo reunidos, estão, antes de tudo, ocupados pela importante tarefa de viver ? e, portanto, só podem lutar esporadicamente; do outro lado, há um conjunto de profissionais da alienação, que fazem desse trabalho sua profissão em tempo integral, e dispõem, para condicionar a massa, de armas psicológicas, neuro-sensoriais, sociológicas (pesquisas) e semiológicas (técnicas de comunicação). Além disso, os opressores utilizam-se de uma estratégia de transbordamento: enquanto eu me insurjo contra o outdoor que obstrui minha rua, um anúncio de televisão enfia na cabeça de meu filho a última marca que ele vai exibir; enquanto eu protesto contra a invasão de minha caixa de correio, legiões de adolescentes aprovam o celular gratuito com conversas entrecortadas por anúncios…
Os níveis de resistência
O segundo problema está nos diversos níveis de resistência que é preciso pôr em prática simultaneamente. A opressão publicitária é multidimensional. É um risco acreditar que, marcando pontos em determinado plano, se está protegido contra os outros, Ora, a violência publicitária deve ser combatida simultaneamente:11
· no plano econômico: opondo-se incansavelmente ao condicionamento à compra, 12 às pulsões de apropriação, aos mimetismos da identificação pela marca, tudo o que é estimulado pela publicidade, principalmente entre os jovens;
Depois do Publiphobe, a RAP aparece como opção a que podem aderir cidadãos conscientes da manipulação publicitária, e que se opõem à falsa felicidade do consumo
· no plano ambiental (e mental!): desmistificando a ideologia própria da sociedade de consumo, o fetichismo do objeto, os templos do culto (as feiras/festas dos centros comerciais), os produtos lançados como eventos, que prescrevem o dever de consumir como rito de integração com a época, numa espécie de cortina de fumaça que tenta ignorar as grandes misérias do Terceiro Mundo e as ameaças contra a biosfera;
. no plano cultural/simbólico: denunciando os estereótipos recorrentes veiculados por cartazes e anúncios, os modos de felicidade convencionais, os esquemas de desejo alienantes, as formas de pensamento-reflexo e, para concluir, o famoso “estilo de comunicação” que não cessa de manipular (ou recuperar) o simbólico para vender mais, sob o pretexto de que é isso a arte de nosso tempo! Especificamente, desde que a publicidade parodiou o discurso libertário, há, para os militantes, o risco de exporem seu combate numa linguagem tão próxima do “estilo publicitário” ? acabando por celebrar, ao imitá-lo, o adversário que desejam abater.
Uma dissonância na sinfonia
Em 1999, alguns publicitários, enojados com o mercantilismo e o falso prestígio de sua “arte”, criaram o Comité des Créatifs contre la Publicité (CCCP)
Última armadilha, que não é das menores: como tornar conhecido o combate antipublicitário, para ampliá-lo? Através dos meios de comunicação, infelizmente! Ora, a visão que a mídia tem do mundo está de tal forma impregnada pela ideologia publicitária que se corre o risco de desvirtuar a revolta antipublicitária na própria maneira ? por eventos ? pela qual repercute. Mídia e publicidade, na realidade, se unem para incentivar, no âmago do ser humano moderno, uma mesma “pulsão consumidora”, que leva as pessoas a “engolirem tudo” ? quer se trate de eventos, de espetáculos, de marcas, de produtos, de “stars” ou de imagens de si próprio, a ponto de ser necessário todo dia renovar esse “consumo”. Nessa lógica, compreende-se que a mídia procure também, de tempos em tempos, divulgar protestos antipublicidade (“publífobos” de plantão, se possível originais e “arcaicos”), os quais são desarmados ao mesmo tempo que são “consumidos”, com o resto do noticiário, sem chegarem a perturbar a ordem econômico-comercial. Isso até “vacina” o grande público contra seu próprio espírito crítico. A contestação antipublicitária se insere então, como episódio ritual, na vasta “cultura publicitária” que dá o ritmo da mídia. A matilha dos “publífobos” ladra, a caravana publicitária passa, todo mundo se manifesta (estamos numa democracia, não é?) e o jogo está feito.
Nesse contexto, é arriscado para os rebeldes fazerem ouvir sua dissonância nessa sinfonia audiovisual. E ilusório acreditarem que, enfim, tenham “agido” por terem sido autorizados a, ocupando um tamborete da mídia, questionar o trono publicitário…
Um movimento amplo e coletivo
Estas observações não pretendem desmobilizar, mas conferir a verdadeira dimensão a um desafio, que não será eficaz sem a consciência de seus limites. Uma ação isolada não tem sentido, se não se articular numa estratégia de conjunto; a denúncia do sistema fica incompleta, se não perseguirmos, no fundo de nós, as conivências que esse sistema mantém com nosso psiquismo normalizado; seria inútil demolir a ideologia do consumo, se nossa relação com o mundo permanecesse do tipo da apropriação-satisfação. Todas as formas da luta ? vaiar a publicidade nas salas de cinema, distribuir bônus de não-compra na entrada das grandes lojas na época das festas de fim de ano, pichar anúncios, devolver ao remetente a propaganda que entope as caixas postais etc. ? são aceitáveis. Com a condição de se inserirem num movimento coletivo que denuncie, simultaneamente, as finalidades do sistema liberal, as múltiplas conivências que este tece com o mundo jornalístico, o enclausuramento de nossas vidas na ótica unidimensional da produção-consumo, a uniformização cultural e econômica do planeta e as ações dos homens, ou aparelhos de poder, que não cessam de despolitizar os cidadãos para melhor subjugá-los. Se não, valem tanto quanto se abster.
(Trad.: Regina Salgado Campos)
1 – A leitores indignados por causa de uma publicidade sexista publicada em suas colunas, Le Monde, por exemplo, se viu obrigado a declarar: “Uma boa parte da publicidade especula com o corpo feminino e as relações ambíguas entre os sexos. Se a direção da redação tivesse que se pronunciar a respeito de cada uma das imagens, entraria em conflito permanente com os anunciantes e acabaria por se afastar de sua função” (18 de dezembro de 2000). Qual é, então, a “função” de uma redação?
2 – Em Le Publiphobe nº 53, Ivan Gradis justifica a legitimidade dessas ações diante do poder público contrário a aplicar a lei. Michel Serres lamenta que o público não se reúna, “tomado por uma ira profética”, “para destruir e queimar esses cartazes vergonhosos e seus autores junto” (Le Monde de l?Education, setembro de 1997).
3 – Sobre este ponto, podemos nos remeter às campanhas incentivadas pelo professor Got nos anos 1986-88, e, mais adiante, contra o “patrocínio esportivo” sutilmente organizado pelos produtores de álcool, contra o tabagismo favorecido por enormes investimentos publicitários, contra o culto da velocidade das publicidades de automóveis. Apesar da palavra de ordem “Não deixem que os publicitários façam a educação de seus filhos”, e de algum sucesso parcial (o projeto de autorização das publicidades de álcool na televisão foi abandonado), o professor Got acabou por desistir diante das hesitações do governo.
4 Ler o artigo, de Simone de Beauvoir, “La femme, la pub et la haine”, Le Monde, 4 de maio de 1983. [voltar]
5 – Fundadas por Florence Montreynaud.
6 – Ler “Le Vatican absout la publicité” (“O Vaticano absolve a publicidade”), Le Monde Diplomatique, abril de 1997.
7 – “Paysages de France” obteve principalmente duas vitórias significativas: contra a proliferação anárquica de cartazes publicitários em Bordeaux (em 1997) e, mais recentemente, contra um vasto dispositivo publicitário ilegal chamado “la raquette Leclerc”, em Comboire, cuja desarticulação foi conseguida após quatro anos de luta… Ler Paysages de France, MNEI, 5, place Bir-Hakeim, 38000 Grenoble.
8 – Ler “L?Annonce faite au tiers-monde” (Le Monde Diplomatique, maio de 1988), e o nº 2 da revista L?Ecologiste, sobre a crise climática (25, rue de Fécamp, 75012 Paris). Sem esquecer a palavra de ordem da Jornada Sem Compras: “Faça um gesto a favor da Terra: pare de comprar”.
9 – A Associação conta com cerca de 600 membros, e publica a revista Rap-Echos.
10 – Casseurs de Pub surgiu em novembro, por ocasião da Jo