A “outra campanha” zapatista
Às vésperas de uma campanha eleitoral que pode levar a esquerda ao poder pela primeira vez em décadas, o ’subcomandante’ Marcos propõe a mobilização autônoma da sociedadeFernando Matamoros Ponce
Desarmado, mas vestindo seu capuz, o sub-comandante rebelde Marcos, o mais famoso dos dirigentes do Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN), deixou seu feudo nas montanhas de Chiapas, no dia 1º de janeiro de 2006. Rebatizado como “sub-delegado zero” ele inicia, de moto, um périplo que o conduzirá, em companhia de uma delegação indígena, pelos trinta e um Estados do México, até a véspera da eleição presidencial, em junho deste ano.
Além de nos remeter ao épico circuito sul americano feito, em 1952, em seu engenho ruidoso – La poderosa – por aquele que se tornará Ernesto “Che” Guevara [1], o “sub” toma, desta forma, uma nova iniciativa política de porte nacional e internacional. Partir para “ouvir as pessoas” e desenvolver “uma outra campanha”, disse claramente, quando da primeira etapa, em San Cristobal de las Casas. Indicava o sentido que desta nova ação: “Nós definimos uma linha muito clara: uma linha de esquerda e anti-capitalista. Não de centro, não de direita moderada, não de esquerda racional e institucional. Mas de esquerda, onde se situa o coração, onde está o futuro.”
O voto “útil” para a direita, em 2000, seguido da derrota eleitoral do Partido Revolucionário Institucional (PRI), conduziu Vicente Fox (Partido de Ação Nacional- PAN) à presidência da República. Sua promessa de apresentar ao Congresso uma proposta de “lei indígena” para ser inserida na Constituição só resultou em uma decepção a mais para os zapatistas. A assinatura dos Acordos de San Andrés “sobre os direitos e a cultura indígena”, em 1996, ao fim de um diálogo com o governo de Ernesto Zedilho lhes havia, por um tempo, alimentado a esperança. Entretanto, apesar dos compromissos assumidos, Zedillo vetou o compromisso.
A chegada ao poder do PAN não mudou nada a este respeito. Na primavera de 2001, os principais partidos – PAN, PRI e também o Partido da Revolução Democrática (PRD), de centro-esquerda – votaram uma “lei indígena”. Muito distante da Carta e do espírito dos acordos de San Andrés, ela só perpetuava o paternalismo do Estado diante das populações autóctones, segundo a visão do EZLN e do Congresso Nacional Indígena. Nessa ocasião, após uma marcha de 3 mil quilômetros até a capital, os zapatistas romperam, uma vez mais, o diálogo.
“Queremos que a responsabilidade do governo não seja exclusiva de um grupo, que não haja dirigentes ’profissionais’, que o maior número possível possa fazer o aprendizado”
Em 2001, a opção pelo poder local
Em seguida, Chiapas permanece alerta. Evitando os enfrentamentos, ignorando as provocações, as comunidades zapatistas decidiram aplicar unilateralmente os acordos de 1996 nos territórios rebeldes. A partir de agosto de 2003, inspirando-se no imaginário coletivo maia, concentraram seus esforços na reconstituição de suas velhas técnicas de resistência, construindo a autonomia através de zonas batizadas de Caracoles (espirais) e dos Conselhos de Bom Governo (Juntas de buen gobierno), instâncias de coordenação das comunas autônomas em cada zona [2].
O viento de abajo, mencionado em 1994 por Marcos foi reforçado: “Este vento de baixo, o da rebelião, da dignidade, não é somente uma resposta ao vento do alto que se impõe (…) não é somente a destruição de um sistema injusto e arbitrário. É, principalmente, uma esperança: a da conversão da dignidade e da rebelião em liberdade e dignidade. Da montanha virá o vento, ele já nasce sob as árvores e conspira por um novo mundo, tão novo que é uma intuição, no coração coletivo, que o encoraja [3]…”
Novas formas de organização… As comunidades criam seus próprios programas de educação, de saúde, de comercialização, constituindo pequenas mercearias e cooperativas. Não aceitando o dinheiro nem os projetos do governo, elas definem de maneira crítica seu tempo contra a mercantilização, enfrentam o discurso da mundialização por meio das lembranças e lendas indígenas. “Os velhos contam que o Yacoñooy era um pequeno guerreiro, mas corajoso e audacioso, que não tinha medo de nada, e parecia grande e poderoso…O sol riu, confiando em seu poder e em sua força, e ignorou o pequeno homem que, após o sol, o desafiava. Yacoñooy o desafiava novamente e dizia: “A força de sua luz não me intimida, tenho como arma o tempo que amadurece em meu coração”, e esticava seu arco, apontando a flecha sobre o próprio centro do sol arrogante. O sol riu novamente e apertava então sua cintura de fogo em torno do rebelde, para torná-lo ainda menor. Mas o Yacoñooy se protegia com seu escudo. Resistiu, enquanto a manhã cedia lugar à tarde. Impotente, o sol via sua força diminuir com o decorrer do tempo e o pequeno rebelde se mantinha firme, protegido e resistente sob seu escudo, esperando o momento propício para o arco e a flecha” [4].
Os zapatistas não desejam ser os que dominam, mas querem que os circuitos do pensamento se juntem à memória, tal como, talvez, as raízes da Ceiba, árvore mítica maia, local de reunião e de discussão das comunidades [5]. É claro que esta consolidação silenciosa do poder local caminha com dificuldades. Desta forma, o movimento imaginado nas cabeças dos conselhos às vezes apresenta problemas: “Queremos”, explica Marcos, “que a responsabilidade do governo não seja exclusiva de um grupo, que não haja dirigentes `profissionais’, que o maior número possível possa fazer o aprendizado e que nos desembaracemos do princípio segundo o qual o governo só pode ser confiado a certas pessoas…Este método complica, às vezes, a realização dos projetos, mas produz, em contrapartida, uma escola de pensamento que, a longo prazo, dará seus frutos sob a forma de uma nova forma de fazer política” [6].
Se Marcos ataca vigorosamente o PRI e o PAN, ele critica também o PRD, “o partido dos erros táticos”, ao qual parece reservar seus golpes mais duros
A busca de novo oxigênio
No entanto, os tempos mudaram, desde a aparição dos zapatistas, em 1º de janeiro de 1994. Apesar de haver marcado o coração da “sociedade civil globalizada”, acumulado um grande capital moral e jogado um papel importante na transição mexicana, o EZLN não pode se transformar em força nacional. Na “4ª Declaração da Selva Lacandona”, de 1º de janeiro de 1996, Marcos lançou a idéia de uma Frente Zapatista de Libertação Nacional (FZLN), organização irmã, porém distinta, que, fundada vinte meses mais tarde na Cidade do México, procurou ser o braço político da guerrilha. A tentativa fracassou. Pouco a pouco, Marcos foi eclipsado por Andrés Manuel Lopez Obrador (“AMLO”), ex-prefeito da capital, favorito da próxima eleição presidencial. Esta eleição poderá fazer o país girar à esquerda pela primeira vez em sua história.
É neste contexto que, conscientes do esvaziamento de seu movimento, os zapatistas reaparecem repentinamente com a “6ª Declaração da Selva Lacandona”, de junho de 2005: “Um novo passo na luta indígena só é possível se ela se aliar com os operários, os camponeses, os estudantes, os professores, os funcionários – ou seja, os trabalhadores da cidade e do campo” [7]. Em busca de oxigênio, após o “suicídio” do isolamento, esta declaração é uma interpelação, uma proposição teórica e prática para organizar a ação política. Ele se pretende um incêndio, atiçado pelo “vento de baixo”.
Propondo uma aliança com as organizações populares e um acordo para a elaboração de um “programa nacional de luta anti-capitalista e de esquerda”, como contra-peso aos partidos tradicionais, o EZLN gostaria de se inscrever na renovação das resistências mundiais de que, segundo eles, os encontros de Seattle, Roma, Paris, Hong Kong, Havana, Caracas, Brasília e La Paz foram testemunhos.
Mas, em certos aspectos, o EZLN surpreende. Pois, se Marcos ataca vigorosamente o PRI e o PAN ele critica também o PRD, “o partido dos erros táticos”, ao qual parece reservar seus golpes mais duros. Uma massa imensa saiu às ruas, no dia 24 de abril de 2005, no México, para defender o direito de López Obrador ser candidato à eleição presidencial de 2006, enquanto o poder manobrava para descartá-lo. “O processo de exclusão parlamentar de Lopez Obrador foi, além de um drama tragicômico, um bom indicador do descontentamento popular”, ironiza Marcos, “mas também, e principalmente, um excelente trampolim eleitoral…para aquele que foi excluído [8]”. Em seguida, põe em ação a artilharia pesada: “Para conhecer os projetos do candidato ao poder, é preciso não considerar o que ele declara para atrair a atenção daqueles que estão em baixo, mas o que ele diz aos de cima – nas entrevistas concedidas ao New York Times, por exemplo (…) A proposta central do programa presidencial de AMLO(…) é a estabilidade econômica – isto é, sempre mais lucro para os ricos, uma miséria e uma perda de posse crescente para os pobres e uma ordem que abafe o descontentamento destes últimos.”
Não se pode explicar a “outra campanha”, construção de espaços políticos autônomos, como uma guerra pelos cargos de direção entre o EZLN e o PRD. Do ponto de vista dos zapatistas, o fato de Lopez Obrador ser da esquerda radical ou reformista de centro-esquerda não é essencial, para a compreensão daquilo que ele representa. Não se trata de um individuo ou de correntes do PRD, algumas declaradas de direita e antizapatistas, mas de milhões de mexicanos.
Os símbolos se mesclam: no imaginário popular, Lopez Obrador é associado a Marcos: ele concentra as partículas de desejo de mudança
Através de sua luta contra o afastamento do AMLO, estes homens e mulheres, zapatistas urbanos e perredistas (militantes ou simpatizantes do PRD) saíram às ruas para defender as conquistas conseguidas na cidade do México. Como Marcos, Lopez Obrador é um símbolo da vontade histórica de transformação. Não somente representa um passado de lutas como também a palavra exaltada pelos neo-zapatistas e os chilangos [9]. Os símbolos se mesclam: no imaginário popular, AMLO é associado a Marcos: ele concentra as partículas de desejo de mudança.
Garantia contra a “frustração anunciada”
A “outra campanha” vem para reforçar estes desejos, mas se coloca também como uma segurança contra a “frustração anunciada”, tanto pela prática e discursos de certas tendências do PRD contra os zapatistas como em razão da pressão das instituições financeiras do planeta. Sua existência não é o anúncio de uma contra-campanha nem um apêndice da candidatura de López Obrador — mesmo que seja desta forma que ela se apresenta nos debates nacionais e institucionais.
O EZLN foi criticado pelo fato de atrair votos e militantes de López Obrador e do PRD. Os zapatistas lembraram que suas formas de organização não são centradas nas eleições. Segundo os significados indígenas da palavra, a outra campanha constitui um escudo de reflexão diante das práticas politiqueiras e “em direção do coração do tempo, que faz jorrar fontes de rebeliões expandidas pelo vento que vem de baixo”.
Não se trata de atacar a AMLO ou o PRD, mas muito mais se posicionar no xadrez político, exigir dos governantes que digam o que eles fizeram, o que fazem e o que querem fazer. Os zapatistas lembram-se de que, em abril, de 2001 todos os partidos se puseram de acordo para votar contra os Acordos de San Andrés. Eles não se esqueceram que foram traídos por “reuniões secretas”, que zombaram dos indígenas e de suas esperanças de reconhecimento votando contra a “lei indígena”. Segundo o EZLN, tratava-se de um “cálculo político” de algumas correntes do PRD, destinado a evitar uma aparição pública e nacional de suas organizações e a mantê-los “prisioneiros” nas montanhas azuis do Chiapas.
Apesar de numerosos perredist