A partilha do Oriente Médio
A pretensão ocidental de uma superioridade moral baseada na aplicação da democracia e do liberalismo e a necessidade de acesso ao petróleo foram os argumentos da partilha da região pelos franceses e ingleses, após a I Guerra Mundial.(Declaração britânica por ocasião da tomada de Bagdá em março de 1917
)Henry Laurens
Em 1914, as províncias árabes do império otomano encontravam-se sob a influência coletiva e multiforme das potências européias, às quais se acrescentavam os Estados Unidos. Os “Jovens Turcos”, no poder desde 1908, tentavam livrar-se dessa ingerência permanente, mas por meio de um centralismo autoritário que provocou o surgimento de um movimento autonomista árabe disposto a buscar ajuda junto aos europeus.
A França era a potência dominante na “Síria natural” graças a seus investimentos econômicos e sua influência acadêmica e cultural. Até se falava numa “França do Levante”. Os ingleses, que ocupavam o Egito desde 1882, acabaram por reconhecer – a contragosto – essa supremacia.
Repressão a elites árabes
Com a entrada na guerra, em novembro de 1914, os otomanos esperavam libertar-se de domínios estrangeiros e pôr fim aos movimentos autonomistas locais. No início de 1915, a repressão abateu-se sobre as elites árabes (enforcamentos e exílio na Anatólia). Populações inteiras seriam perseguidas (os cristãos do Monte Líbano, dizimados pela fome, o trágico destino dos armênios e outros cristãos da Anatólia deportados e massacrados). Buscando desestabilizar as duas grandes “potências muçulmanas” constituídas pelos impérios coloniais francês e britânico, os otomanos partiram para a guerra santa, o jihad. Os ingleses começaram por organizar uma barreira defensiva, próximo ao Canal do Suez, enquanto o exército anglo-indiano dava início à difícil conquista do Iraque a partir de Basra1.
Como fixar os limites entre a Arábia britânica e a Síria francesa? Foram encarregados da negociação o francês François Georges-Picot e o inglês Mark Sykes.
Mas o jihad ameaçava a África do Norte francesa, uma parte da África negra e a Índia britânica. Franceses e ingleses encontravam-se, portanto, numa posição defensiva e procuravam uma nova fórmula jurídica capaz de restabelecer seu antigo domínio. Começaram por pensar em manter um império otomano descentralizado, que seria, na prática, um protetorado. Para atacarem Dardanelos (1915), como forma de ameaçar a capital do império otomano, foram obrigados a aceitar a reivindicação russa sobre Constantinopla e a considerar, portanto, a partilha da região.
Tutela brutânica “indulgente”
A sangrenta catástrofe de Dardanelos não foi suficiente para que o princípio fosse questionado. Ao provocarem a insurreição do príncipe Hussein, emir de Meca, eles esperavam acabar com o jihad e criar uma nova frente contra os otomanos. O alto-comissário no Egito, Mac Mahon, empreendeu uma difícil correspondência com o príncipe Hussein, incitando-o à rebelião. Problemas com a tradução e mal-entendidos sobre o sentido das palavras escritas complicavam ainda mais a compreensão do texto, já ambíguo, da correspondência, resultando numa confusão cujo esclarecimento ficou para ser resolvido mais tarde.
No Cairo, um grupo de espíritos românticos – dos quais, T.E. Lawrence, o futuro “Lawrence da Arábia” foi o mais célebre – acreditava num renascimento árabe que, baseado na autenticidade dos beduínos, tomaria o lugar da corrupção otomana e do “levantismo” de língua francesa. Comandados pelos filhos de Hussein, esses beduínos, príncipes da dinastia jordaniana, aceitariam uma tutela britânica “indulgente”. Londres promete-lhes uma “Arábia” independente, porém em relação aos otomanos. Os franceses, por sua vez, pretendem expandir sua “França do Levante”, avançando sobre o interior com o objetivo de construir uma “grande Síria” de língua francesa, francófila e sob sua tutela.
Linha Sykes-Picot
Como os franceses haviam condicionado qualquer acordo territorial a uma partilha do acesso ao petróleo, as duas negociações se encaminhariam paralelamente
Como fixar os limites entre a Arábia britânica e a Síria francesa? Foram encarregados da negociação o francês François Georges-Picot e o inglês Mark Sykes. Durou vários meses – o que refletia a evolução da correlação de forças no terreno – e foi concluída em maio de 1916 por meio de uma troca de cartas entre o embaixador da França em Londres, Paul Cambon, e o secretário britânico de Relações Exteriores, Edward Grey2. Os franceses passariam a administrar diretamente um território que ia do litoral sírio até a Anatólia; a Palestina seria internacionalizada (na verdade, passaria a ser um condomínio franco-britânico); a província iraquiana de Basra e um enclave palestino em torno de Haifa seriam colocados sob a administração direta dos ingleses; os Estados independentes, até então sob a soberania da Jordânia, seriam desmembrados em duas zonas de influência e de tutela: um, ao norte, seria entregue aos franceses; o outro, ao sul, aos britânicos. A chamada “Linha Sykes-Picot”, que dividia o Oriente Médio, também deveria permitir a construção de uma estrada de ferro britânica ligando Bagdá a Haifa. Russos e italianos concordaram com esse projeto – enquanto os jordanianos foram meramente informados em termos pouco claros e confusos.
No início de 1917, os ingleses começaram a difícil conquista da Palestina. Em abril, os Estados Unidos entraram na guerra como “associados” – e não “aliados” – da França e da Grã-Bretanha, contra a Alemanha. A crescente mecanização da guerra levou franceses e ingleses a se conscientizarem de sua dependência do petróleo (em 1918, a guerra seria ganha pelos Aliados graças a uma “onda de petróleo”).
O uso do movimento sionista
O presidente Woodrow Wilson não se sentia de forma alguma vinculado por um tipo de acordo “secreto” que pudesse existir entre seus parceiros. Assumiu a posição de defensor do direito dos povos disporem de seus próprios destinos, embora não estivesse muito claro em seu espírito se isso também era válido para povos não-brancos, como os “morenos” (árabes) ou os “amarelos” – dos “negros”, era bom nem falar3.
Portanto, em fevereiro de 1919, nacionalistas árabes, pró-franceses e sionistas participariam de uma conversa da qual, na realidade, desconheciam as regras do jogo.
Os ingleses do Cairo queriam rever o acordo feito com os franceses – senão quanto ao restante da Síria, pelo menos quanto à Palestina. Naquele momento, careciam de um apoio sólido de Londres. Sabiam utilizar com sinceridade a retórica wilsoniana: sobre as ruínas do império otomano, árabes, curdos, armênios e judeus iriam cooperar conjuntamente sob a indulgente tutela britânica.
É nesse sentido que Sykes utiliza o movimento sionista, o que conduziria à Declaração Balfour de 2 de novembro de 19174, anunciando a criação, “na Palestina”, de um espaço nacional judeu. A estratégia britânica iria basear-se na ocupação do território, paralelamente ao incentivo dado no sentido de expandir a revolta à Síria (mas não à Palestina) e uma sucessão de declarações oficiais apontando para a autodeterminação. Para Londres, o direito dos povos significava o direito de optar pela tutela britânica. Quando os nacionalistas árabes radicais recusaram esse tipo de dominação, foram rebaixados à denominação difamante de “levantinos”, que passaram a partilhar com os elementos pró-franceses (em geral, cristãos).
Petróleo: questão central
Em 1918, o petróleo torna-se a questão central. Segundo o acordo, estaria sob controle francês a região de Mossul, onde se encontram importantes reservas em potencial, mas são os britânicos que detêm os direitos de concessão. Georges Clemenceau tenta atender ao grupo de pressão colonial limitando-se a uma “Síria útil” – que, embora não abrangendo a Terra Santa, permite o acesso às jazidas de petróleo. Uma extensão territorial demasiado grande implicaria pesados ônus administrativos, desproporcionais às receitas que dali pudessem ser tiradas. Representaria o abandono do projeto de uma “Síria integral” (que atualmente poderia ser chamada “Grande Síria”). Logo após o armistício, Clemenceau negociaria com Lloyd George – em conversas diretas e sem testemunhas – a partilha do Oriente Médio.
Maurice Hankey, secretário do governo britânico, anotou em seu diário, no dia 11 de dezembro de 1920: “Clemenceau e Foch atravessaram [o Canal da Mancha] após o armistício e tiveram uma grande recepção militar e pública. Lloyd George e Clemenceau foram conduzidos à embaixada da França… Quando ficaram a sós… Clemeceau disse: ?Bom, e o que deveremos discutir?? ?A Mesopotâmia e a Palestina?, respondeu Lloyd George. ?Diga-me o que vocês desejam?, disse Clemenceau. ?Quero Mossul?, disse Lloyd George. ?Você o terá?, respondeu Clemenceau, acrescentando: ?Só isso?? ?Não, também quero Jerusalém?, cotinuou Lloyd George. ?Você o terá?, disse Clemenceau “mas Pichon5 irá criar dificuldades em relação a Mossul.? Não existe qualquer anotação escrita a respeito dessa conversa. […] No entanto, apesar das pressões que sofreu por parte de seus colegas e de todos os interessados, Clemenceau, que sempre foi inflexível, jamais voltou atrás em sua palavra – e, devido à posição em que estou, posso dizer que Lloyd George também nunca deu margem a que isso acontecesse. É assim que se escreve a história6.”
“Mandatos” da Liga das Nações
Quando o nacionalismo árabe voltou fortalecido, não reconheceu a legitimidade daquela divisão e reivindicou a constituição de um Estado unitário
Como os franceses haviam condicionado qualquer acordo territorial a uma partilha do acesso ao petróleo, as duas negociações se encaminhariam paralelamente. Desde o início da Conferência de Paz, o presidente Wilson rejeitou a anexação das antigas colônias alemãs na África e no Pacífico pelos impérios francês e britânico: queria colocá-los sob a tutela da futura Liga das Nações. Com habilidade, Lloyd George manobrou, apresentando a proposta de “mandatos” da Liga das Nações que seriam confiados, a título provisório, a uma potência “civilizada” encarregada de os conduzir à independência. Discretamente, introduziu as províncias árabes do império otomano (os chamados “Mandatos A”). Em janeiro de 1919, Wilson aceitou.
Os principais interessados não foram informados e apenas foram convocados a comparecer perante o Conselho Supremo das Forças Aliadas (o chamado Conselho dos Dez). Portanto, em fevereiro de 1919, nacionalistas árabes, pró-franceses (sirianistas) e sionistas (os ingleses interceptaram uma delegação libanesa, proibindo-a de viajar para a França) participariam de uma conversa da qual, na realidade, desconheciam as regras do jogo. Lloyd George permitiu que seus representantes empreendessem uma queda de braço com os franceses. A questão era a de saber se existiria um único mandato para todo o Oriente Médio (que seria certamente confiado aos ingleses) ou se haveria dois mandatos – um francês e outro britânico. Os franceses resistiram.
Rejeição palestina ao sionismo
Irritado, Wilson decidiu que seria criada uma comissão encarregada de consultar as populações sobre quem seria a potência mandatária. Subitamente, os ingleses perceberam que os árabes da Palestina e do Iraque poderiam não pedir sua tutela. Os franceses, por sua vez, receavam que os sírios lhes pudessem ser hostis e foram forçados a aceitar a reivindicação de um Estado libanês de maioria cristã. As duas potências européias abandonaram a comissão, que passaria a ser dirigida exclusivamente pelos norte-americanos.
Após ter ouvido os árabes palestinos rejeitarem o sionismo, os libaneses cristãos aceitarem a França e os árabes sírios exigirem a independência, a comissão concluiu, em 28 de agosto de 1919, pela opção de um mandato… norte-americano! Era tarde demais: o Senado norte-americano já rejeitara o Tratado de Versalhes e os norte-americanos se retiraram de todas as conferências interaliados.
Última prova de força
Assim, franceses e ingleses encontram-se novamente frente a frente. A correlação de forças pende em favor dos franceses que, ao contrário dos ingleses – que haviam desmobilizado as tropas -, tinham fortalecido sua presença militar. A divisão em mandatos foi ratificada. Da Conferência de Deauville (setembro de 1919) à de San Remo (abril de 1920), ocorrem apenas ligeiros ajustes na linha Sykes-Picot. A fronteira palestina foi afastada alguns quilômetros para o norte e a Transjordânia passaria a ligar a Palestina ao Iraque, o que permitiria a criação de um corredor garantindo, de imediato, a passagem das linhas aéreas para a Índia e, a médio prazo, a construção de um oleoduto que transportasse o petróleo do Iraque para o Mediterrâneo (a idéia da estrada de ferro foi abandonada). Os franceses controlariam uma quarta parte (e, posteriormente, 23,75%) do consórcio encarregado de explorar esse petróleo.
A pretensão ocidental de uma superioridade moral baseada na aplicação da democracia e do liberalismo surge como uma sinistra mistificação.
Só faltava impor o regime dos mandatos por meio de uma última prova de força. Na Palestina, na Síria e no Iraque, franceses e ingleses desencadeariam operações que resultaram numa guerra para subjugar as populações nativas.
A divisão do Oriente Médio em vários Estados não era condenável em si: os jordanianos já pretendiam isso desde o início, em benefício dos filhos mais velhos do príncipe Hussein. Mas ela se deu contra a vontade das populações e por meio de uma retórica liberal que foi esvaziada de sentido pelo uso da força. Em comparação com a evolução política da última década de domínio otomano – em que a cooptação de notáveis e a criação de um sistema eleitoral que, embora imperfeito, abria caminho para uma verdadeira representação política – o autoritarismo franco-britânico constituiu uma regressão que iria perdurar.
Partilha imposta do exterior
Em termos de divisão territorial, a partilha prevaleceu – fundamentalmente porque as novas capitais e suas classes dirigentes souberam impor a autoridade sobre os novos países. Mas os acontecimentos de 1919-1920 foram considerados uma traição aos compromissos assumidos (antes de tudo, o do direito dos povos a disporem de si mesmos). E descartaram as elites locais de agir sobre seus próprios destinos. Quando o nacionalismo árabe voltou fortalecido, não reconheceu a legitimidade daquela divisão e reivindicou a constituição de um Estado unitário, a panacéia para todos os males da região. Os Estados reais seriam atingidos pela ilegitimidade e enfraquecidos de maneira permanente. A constituição do espaço nacional judeu iria significar um ciclo de conflitos que parece longe de seu fim.
Periodicamente, ressurge o espectro de um novo acordo “Sykes-Picot” ou de uma partilha do Oriente Médio, imposto a partir do exterior. A pretensão ocidental de uma superioridade moral baseada na aplicação da democracia e do liberalismo surge como uma sinistra mistificação. Talvez seja essa a conseqüência mais nefasta das opções feitas entre 1916 e 1920 e que, desde então, vêm sendo continuamente renovadas.
(Trad.: Jô Amado)
1 – Os ingleses das Índias não tinham em mente, na época, uma Arábia romântica, pois desejavam explorar o que consideravam um imenso potencial agrícola na Mesopotâmia, com o objetivo de “alimentar o mundo”. Ler, de Charles Tripp, “Leçons d?une histoire coloniale oubliée”, Le Monde diplomatique, janeiro de 2003.
2 – Em 1919, para diminuir sua importância, os ingleses chamariam essa negociação de “Acordo Sykes-Picot”.
3 – Na Conferência de Paz, os norte-americanos rechaçaram energicamente