A paz fundada no direito
O acordo de Genebra, discutido por cidadãos israelenses e palestinos, representa um momento radicalmente novo de sua história comum. Mas a implementação deste projeto de paz só poderá ocorrer com a intervenção ativa da comunidade internacionalMonique Chemillier-Gendreau
Os israelenses e os palestinos chegaram a um momento radicalmente novo de sua história comum. Surge a base de uma paz possível com a iniciativa de Genebra. Toda a comunidade internacional está envolvida. Ou os dois povos obrigarão seus governantes a negociar a paz a partir dessas bases, ou continuarão sua descida ao inferno da violência1. Porém, como foi possível aproximar posições que se distanciavam cada vez mais?
Os palestinos exigem a integralidade de seus direitos, continuamente violados há meio século. Israel desenvolveu uma concepção de segurança que nega esses direitos. O projeto expressaria a derrota de um dos lados? A medida de referência que permite avaliar isso é a do direito internacional. É à luz dos princípios relativos aos direitos dos povos, aos direitos humanos, ao direito humanitário nos conflitos armados e à rejeição do uso da força que se pode apreciar o projeto de Genebra.
É perceptível que o clima da negociação foi de boa fé e de preocupação com a objetividade. Prova disso foi o recurso a uma força multinacional, dispositivo essencial a essa iniciativa, e o estabelecimento de mecanismos de conciliação e de arbitragem para regulamentar todas as questões que surgissem de sua aplicação.
Igualdade de soberania
Com este documento, a Palestina é, desde o início, declarada um Estado soberano. Então, livremente, decide sobre uma série de medidas que são o preço da paz
O acordo de Genebra baseia-se numa solução para dois Estados (“two state solution”: artigo 2º, parágrafo 1), respeitando assim o direito dos povos de dispor de si próprios e a igualdade da soberania dos Estados. Estipula ainda que sua aplicação e sua interpretação devem respeitar as disposições da Carta das Nações Unidas e as normas do direito internacional (preâmbulo e parágrafo 6 do artigo 2º).
Até o presente, sempre se pediu ao povo palestino que fizesse concessões exorbitantes, enquanto, no final do percurso, se prometia o reconhecimento do Estado como prêmio, como a cenoura com a qual se espera fazer mover um jumento. Com este documento, a Palestina é, desde o início, declarada um Estado soberano. Então, livremente, decide sobre uma série de medidas que são o preço da paz.
Como o projeto de Genebra regulamenta o equilíbrio territorial entre os dois povos? Por um lado, concretiza-se a retirada de Israel dos territórios ocupados, assim como se efetua o desmantelamento básico das colônias de povoamento, notoriamente ilegais. A linha considerada como fronteira entre os dois Estados é a de 1967. Por outro lado, prevêem-se trocas territoriais ao longo dessa linha.
Trocas equivalentes
A aceitação pelos palestinos do armistício de 1967, que pôs fim à “Guerra dos Seis Dias”, se tornaria oficial como base da partilha. Não se trata de uma nova concessão, decorrente desse projeto, pois a renúncia a uma parte de seu território histórico (o que lhes deveria ser reconhecido com gratidão por Israel e pela comunidade internacional) é antiga. A novidade, no entanto, é que Israel adquiriria com isto uma consolidação territorial juridicamente fundamentada, o que lhe faltava até o presente.
As trocas de territórios propostas ao longo da linha estabelecida em 4 de junho de 1967 são quantitativamente equivalentes. Do ponto de vista qualitativo, nota-se que Israel mantém algumas colônias de povoamento instaladas na Cisjordânia, o que é, em si, contrário ao artigo 49 da IV Convenção de Genebra sobre o direito humanitário. Entretanto, uma negociação não é uma iniciativa abstrata e é preciso desarmar a oposição dos colonos, que têm ojeriza pela paz. Em troca desses territórios, que se tornam israelenses, a Palestina obtém áreas equivalentes, das quais a mais importante está situada ao longo da faixa de Gaza.
Vantagens e concessões
A aceitação pelos palestinos do armistício de 1967, que pôs fim à “Guerra dos Seis Dias”, se tornaria oficial como base da partilha
Eis um trunfo que tanto serve para aliviar a extrema pressão demográfica no interior de Gaza, quanto para contribuir para o acolhimento dos refugiados que optarem por voltar à Palestina. Finalmente, ainda de um ponto de vista qualitativo, Israel empenha-se em deixar intactas as infraestruturas existentes em todas as colônias que abandonar (artigo 4, parágrafo 5, alínea “e”). Moradias, estradas e instalações públicas passariam, dessa forma, para o controle da Palestina. Entretanto, o artigo 7 (parágrafo 9) dispõe que esses bens imobiliários serão avaliados e deduzidos da contribuição de Israel para o Fundo de Indenização dos Refugiados. A vantagem é dessa forma neutralizada quantitativamente. Contudo, permanece uma vantagem qualitativa.
Quanto a Jerusalém, o acordo faz dela a capital da Palestina soberana. E Israel tem o mesmo direito. O longo artigo 6, que regulamenta as modalidades dessa dualidade, é muito complexo. Para a Palestina, ele inclui um conjunto de vantagens e concessões. Por um lado, o reconhecimento de Jerusalém como capital, direito inalienável dos palestinos e elemento forte de suas reivindicações, surge como uma vitória concreta. Por outro lado, do ponto de vista israelense, a partilha da cidade tendo por base a distribuição da população corresponde a oficializar um fato consumado. Os palestinos, porém, exercerão sua soberania sobre toda a Cidade Antiga (inclusive a Esplanada das Mesquitas/Monte do Templo), com exceção do Muro das Lamentações e do bairro judeu, sobre os quais os israelenses conservam a soberania.
Restrições compatíveis?
Contudo é preciso voltar às bases do raciocínio aqui proposto. Qualquer Estado soberano pode, sobretudo se o faz de acordo com a maioria do seu povo, decidir quais as concessões territoriais limitadas que são necessárias para se chegar a uma paz desejada. No que se refere às concessões relativas à Jerusalém, aparentemente as questões que poderiam provocar algum tipo de preocupação não decorrem de aspectos legais, e sim da viabilidade das disposições propostas.
E, finalmente, a continuidade territorial da Cisjordânia, por um lado, e de Gaza, por outro, é assegurada pela criação de um corredor (artigo 4, parágrafo 6), que fica sob a soberania de Israel, uma vez que, efetivamente, se encontra em território reconhecido como israelense. Porém sua administração é palestina. Em caso de dificuldades práticas, o Grupo de Aplicação e Verificação do Acordo (de composição internacional) servirá de árbitro.
A natureza da soberania reconhecida aos palestinos e suas modalidades de exercício representam outro tema de questionamentos. Seriam as restrições à plena soberania palestina, que aparecem no acordo, compatíveis com o direito internacional?
A questão da desmilitarização
Uma negociação não é uma iniciativa abstrata e é preciso desarmar a oposição dos colonos, que têm ojeriza pela paz
A Palestina é declarada um Estado não-militarizado (artigo 5, parágrafo 3, b) podendo, contudo, dispor de uma considerável força de segurança. As modalidades práticas dessa situação só constam do anexo X. No plano dos princípios, não é o primeiro exemplo de desmilitarização de um Estado na história do direito internacional. Muitas pacificações, após situações muito violentas – especialmente após a II Guerra Mundial -, só foram possíveis passando por essa etapa.
Nos termos da Carta das Nações Unidas, qualquer Estado soberano dispõe do direito de legítima defesa. Só o podem exercer se dispuserem, para isso, de forças militares adaptadas a eventuais ameaças que pesem contra eles. Ora, entre as duas partes, é o mais fraco que é desmilitarizado. Entretanto, na lógica do projeto de Genebra, a legítima defesa dos palestinos é assegurada pelo forte esquema de segurança previsto, mas também, e sobretudo, pela presença programada de uma força internacional e de um comitê de segurança trilateral. A partir daí, a desmilitarização relativa da Palestina – que não deve ser concebida como definitiva – constitui uma etapa rumo a uma paz duradoura.
Por outro lado, seria a soberania da Palestina compatível com o conjunto dos organismos previstos, que abrangem representantes de Israel e de Estados terceiros2 , ou existiriam entraves a uma soberania plena? Na realidade, são garantias indispensáveis na atual situação, proteções temporárias, cuja suspensão, ou suspensão prematura, ou ainda um prolongamento indefinido, não podem ocorrer sem a plena concordância dos representantes da Palestina.
Aliás, num prazo mais longo, será preciso colocar a questão de uma desmilitarização progressiva de todos os Estados da região, com a criação de uma zona de paz regional. Mencionada no artigo 5 (parágrafo 2), essa perspectiva é uma resposta ao perigo representado pela extrema militarização de Israel para toda a região e para o próprio povo israelense.
Direito de retorno
Do ponto de vista israelense, a partilha de Jerusalém tendo por base a distribuição da população corresponde a oficializar um fato consumado
O direito de retorno dos palestinos, expulsos de suas terras em vários momentos do conflito, foi, até agora, o principal obstáculo para qualquer negociação. O projeto de Genebra propõe um modelo de regulamentação sutil. Mal compreendido, pode conduzir a um possível fracasso do projeto. Campanhas sumárias, sobre o tema do abandono do direito de retorno, já começaram.
Primeiramente, vale lembrar que esse direito faz parte das normas fundamentais do direito internacional – às quais Israel nunca fez oposição de princípio3 . Esse direito não está vinculado às condições básicas para uma negociação. Estas não podem, portanto – contrariamente ao que sustenta Israel – acarretar a perda do direito de retorno dos refugiados. O respeito a esse direito está na origem da proibição da transferência ou deportação de parte da população em caso de ocupação militar de um território. E se a população for evacuada em nome de razões de segurança, ela deve ser reconduzida aos seus lares assim que for possível4 .
Esse direito foi criado pela resolução 194 da Assembléia-Geral das Nações Unidas (11 de dezembro de 1948), para beneficiar os palestinos exilados. A adesão de Israel à organização, em 11 maio de 1949, foi condicionada à aceitação de todas as resoluções anteriores e à recusa de Israel em tratar da questão dos refugiados como uma questão interna.
Incógnitas aritiméticas
Quanto ao direito de retorno é preciso torcer para que a diferença entre o número de palestinos candidatos à volta a Israel e número proposto por Israel seja insignificante
O projeto de Genebra se insere (artigo 7, parágrafo 2) na resolução 194 da Assembléia-Geral. Mas, cientes de que essa questão é o caldeirão no qual a paz pode ser reduzida a cinzas, os negociadores fizeram uma aposta baseando-se na dinâmica do tempo e em duas incógnitas aritméticas.
O artigo 7 (parágrafo 4) reafirma o direito de retorno ao oferecer a cada palestino que tenha deixado sua terra, qualquer que seja a data de sua saída, as seguintes possibilidades (sobre as quais ele receberá toda a informação necessária): 1) volta à Palestina (na concepção do território palestino previsto no acordo); 2) volta a Israel; 3) permanece no país em que se refugiou; 4) é acolhido em um terceiro país que estiver disposto a aceitar um certo número de palestinos.
Quanto às duas incógnitas, a primeira diz respeito ao número dos refugiados que escolherão cada uma das opções, especialmente a do retorno a Israel. A segunda (artigo7, parágrafo 4) diz respeito ao fato de a opção do direito de retorno a Israel ser condicionada ao número de refugiados que Israel venha a aceitar, comunicando à comissão internacional prevista5 . A aposta é que essas duas incertezas coincidam, ou seja, que o número de palestinos que queira voltar a Israel seja, aproximadamente, o mesmo que o de refugiados que Israel aceitaria receber. Se o primeiro número for superior ao segundo, o direito de retorno afirmado pelo direito internacional e retomado pelo acordo não será possível para todos os palestinos.
Impasse étnico
A contribuição capital da iniciativa de Genebra é ter mostrado que há, nas duas sociedades, homens e mulheres que não têm medo uns dos outros
Atualmente, só os inimigos da paz poderiam tomar esse ponto como central, prenunciando o pior. É preciso torcer para que essa aposta no acaso dê certo e que a diferença entre o número de palestinos candidatos à volta a Israel e número proposto por Israel seja insignificante. O prazo de opção seria de dois anos. Se os riscos não forem manipulados e a diferença entre os dois números não for excessiva, uma dinâmica de paz criada durante os meses vindouros permitiria renegociar os casos não regulamentados e as soluções seriam, assim, encontradas.
Sabe-se de onde vem a dificuldade, diante da exigência de preservar o caráter judaico do Estado de Israel. Aqui, não se vai além da problemática da conformidade do projeto de Genebra em termos do direito internacional. Se este confirma a livre disposição dos povos, ele rejeita discriminações baseadas na religião ou no pertencimento a outros grupos. O povo israelense não é redutível ao povo judeu, pois conta com cidadãos não-judeus. E o povo israelense – não assimilável à totalidade e à exclusividade dos judeus do mundo – é, ele mesmo, um pedaço da história que, como Estado, começou em 1948 com um grande número de palestinos vivendo no mesmo território.
Foi o medo decorrente da longa noite do Holocausto que conduziu Israel ao impasse do Estado étnico e, dessa forma, bloqueou o direito de retorno. O problema, hoje, está condicionado ao seu nascimento. A contribuição capital da iniciativa de Genebra é ter mostrado que há, nas duas sociedades, homens e mulheres que não têm medo uns dos outros. Mas a implementação do projeto só poderá ocorrer com a intervenção ativa da comunidade internacional. A Europa tem aí uma bela ocasião de construir uma política externa comum.
(Trad.: Teresa Van Acker)
1 – O texto desse acordo está disponível para consulta no site do Monde diplomatique.
2 – Destacam-se, como organismos com composição internacional:
um Implementation and Verification Group (Grupo de Implementação e Verificação, artigo 3º) englobando a força multinacional, um grupo de contato, um representante especial e uma comissão trilateral;
uma Trilateral Security Comitee (Comissão de Segurança Trilateral, artigo 5º, parágrafo 4,d.);
um International Group para a questão de Jerusalém (Grupo Internacional, artigo 6º, parágrafo 5);
uma International Commission for Refugees (Comissão Internacional para os Refugiados, artigo 7º parágrafo 11).
3 – Artigo 13º da Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948 e o arti
Monique Chemillier-Gendreau é professora de Direito Internacional na Universidade Paris VII – Denis Diderot.