A política das ruas deve continuar a bater à porta do Judiciário
O viking não virou um símbolo à toa. O que os memes identificaram para reproduzir, o que os editores de imagem escolheram para divulgar e o que escrevo agora para exemplificar meu argumento não é aleatório. Todos viram no personagem a síntese de algo que faz sentido por diversos tipos de apropriação
Há uma imagem que não me sai da cabeça desde o dia 6 de janeiro de 2021: o Capitólio norte-americano invadido por um grupo extremistas/supremacistas que o senso comum poderia, em um passo em falso, simplesmente rotular de lunáticos. De todas as cenas, um frame específico está cravado em minha mente: a de um homem vestido com a pele de um animal, chifres, dorso nu e as cores da bandeira dos Estados Unidos pintadas no rosto. Algo como um viking, um “bode” ou uma miríade de outras interpretações que, a depender do grupo, pode ser provocada. Essa se trata também da imagem mais veiculada desde então, uma espécie de símbolo dos apoiadores do presidente Donald Trump, derrotado nas últimas eleições, que, em uma tentativa de golpe, protagonizaram a mencionada invasão.
O homem em pele de bicho, ou sei lá o quê, sem dúvida, sintetiza os diversos sentidos das cenas aterrorizantes veiculadas pelo mundo inteiro. Mas nem por isso faltaram outros personagens, como um sujeito que trajava uma camiseta estampada com a expressão “Camp Auschwitz” e um outro que zanzava pelos salões carregando uma bandeira confederada, símbolo dos estados escravocratas sulistas durante a Guerra da Secessão. Em meio ao circo, parlamentares saíam correndo e tentavam se esconder. Tudo fotografado, filmado, registrado em profusão de detalhes e transmitido em escala mundial. Eis que a nação que se colocava como a principal representante da democracia no Ocidente virou, em segundos, a maior fonte de proliferação de memes. Com uma virada de chave na ordem mundial pós Segunda Guerra, isso tem um impacto imenso.
No Brasil, era possível ver quem recomendasse que Joe Biden, presidente eleito, esperasse lá nos Estados Unidos o socorro vindo do Ceará com o ex-governador do estado Cid Gomes seguindo em missão salvadora dirigindo uma retroescavadeira. Noutra postagem, resgatou-se uma cena em que a figura do Minotauro aparecia conversando com Tia Anastácia, em uma antiga versão do Sítio do Pica-pau Amarelo. Tudo em alusão ao tal viking. Símbolos da cultura pop também entraram na roda, com referências ao cantor Jamiroquai e ao grupo Village People, por exemplo. Penso nas inúmeras apropriações e me pergunto: quais serão os memes usados na Índia? E em outros países da América Latina? Na Letônia? E nas Ilhas Maurício? O Daily Nation, do Quênia, trouxe entre as suas manchetes a seguinte pergunta: “Who´s the banana republic now?”.
A situação toda ultrapassa as ironias imagináveis, mas a “revolução” não só foi televisionada como ganhou, planetária e localmente, as mais diversas representações de sátira em escala jamais vista. Nem Andy Warhol, ao cunhar a célebre expressão sobre a cota de “15 minutos de fama” ao qual todos teriam direito no futuro, poderia imaginar que seriam o Capitólio e os símbolos norte-americanos mobilizados em uma das manifestações mais potentes da política deste início do século XXI.
Feito esse breve resumo, cujos exemplos estão fartamente documentados em todos os lugares, meu ponto preciso de argumentação é: tudo aquilo que, por um lado, mobiliza escárnio e sátira, por outro, arregimenta adesão. Símbolos não existem por si só; eles causam repulsa em uns e identificação em outros. Se gastamos tempos em rir dos memes, vale o alerta de Bronislaw Baczko sobre o imaginário social como um campo de disputa. O que o filósofo polonês coloca é que existe uma “comunidade de sentidos comuns” que une determinados indivíduos e grupos. Ou seja, há sempre quem se veja representado.
O viking/bode não virou um símbolo à toa. O que os memes identificaram para reproduzir, o que os editores de imagem escolheram para divulgar e o que escrevo agora para exemplificar meu argumento não é aleatório. Todos viram no personagem a síntese de algo que faz sentido por diversos tipos de apropriação, pela representação de gênero e raça, com sinais trocados a depender do grupo para o qual o símbolo fale. A questão é que tais símbolos parecem ter rompido uma espécie de “cordão de isolamento” que os deixavam longe da etiqueta institucional, afeita a outras alegorias. Dita de outra forma, a intenção de mudar uma ordem, interromper uma eleição ou questionar um procedimento torna-se mais efetiva quando vem acompanhada de uma série de símbolos que possam ser reproduzidos e gerem identificação.

Poder simbólico e político
E o que isso nos diz hoje, sobre a política do nosso tempo? A resposta é assertiva: não há poder político sem poder simbólico que o ancore. Já que temos contemporâneos que questionam se a Terra é redonda, acredito que seria uma digressão perdoável voltar à época de Galileu Galilei. Pois bem, quando, no final da Idade Média, os papas e os príncipes disputavam quem seria o soberano diante dos homens e das fronteiras, vale lembrar que junto com todo o arcabouço político e jurídico houve também uma construção simbólica que justificasse a mudança na esfera governamental. Em muitos aspectos, a capacidade de governar apartada do poder divino (os símbolos passaram a se atrelar à racionalidade) foi se forjando muito antes de Jean Bodin, no início do século XVI, cunhar a expressão “soberania”. Trabalhos brilhantes como o da Raquel Kritsch mostram essa trajetória.
Se dermos outro salto no tempo igual à boneca Emília talvez, não esbarremos com o Minotauro da Antiguidade clássica, mas com o Brasil do início da Primeira República. Lá estavam todos os símbolos franceses positivistas, a Marianne, a ideia da “coisa pública” que chegou até nós importada em algum transatlântico e que, exatamente pela falta de aderência simbólica, não se fixou. Era difícil competir com o vasto e longevo repertório de representações monarquistas detalhadamente construído por artífices como José Bonifácio. Não à toa José Murilo de Carvalho intitula de “A formação das almas” seu livro sobre a nascente República brasileira.
Pego um pouco de “pó de pilipimpim” e volto aos dias atuais. No dia 30 de março de 2020, uma manifestação em frente ao Supremo Tribunal Federal (STF) tinha pessoas com máscaras de filme de terror, empunhando tochas e gritando palavras de ordem contra o Tribunal. Nos anos anteriores, tivemos bonecos de juiz com a indumentária do Superman, outros bonecos representando os ministros do Supremo queimados em praça pública etc. Representações diversas de uma realidade que cada um passou a montar para si, em um frame próprio, enviado a um grupo específico de Whatsapp. O comunismo ressuscitado da Guerra Fria dos anos 1980 não me deixa mentir.
Ainda que haja poder de articulação em torno dessas imagens, o imaginário social como um campo de disputa, como nos lembrava Baczko, repito que se ultrapassou uma barreira. Atualmente, os símbolos passaram a ter um alcance singular de contestação da institucionalidade. Se isso já estava dado no Legislativo e no Executivo, Poderes eletivos por essência, 2021 anuncia que muitas fantasias continuarão a assombrar o Judiciário. Todos nós já passamos a imaginar o roteiro traçado para as eleições de 2022. Eu, que comecei o ano achando que faria o primeiro texto falando da conjuntura pós-eleições municipais, mudo o ângulo da análise. De forma bem pragmática, digo que o Judiciário vai ter que, cada vez mais, equilibrar-se entre os acordos da burocracia e as emoções da rua.
Grazielle Albuquerque é jornalista e cientista política, pesquisa Sistema de Justiça, em especial sua interface com a mídia.