A privatização silenciosa do crédito público
Saldo das operações de crédito das instituições financeiras privadas voltou a superar o dos bancos públicos pela primeira vez desde junho de 2013
Levando o termo ao pé da letra, só poderíamos falar em privatização ou desestatização em andamento no mercado de crédito brasileiro se ativos do setor público já estivessem, de fato, sendo vendidos.
Embora as privatizações estejam na agenda dos governos que assumiram o país a partir de 2016, até agora as principais instituições financeiras sob controle público ainda não foram colocadas à venda. Apesar disso, é evidente a redução da relevância dos bancos públicos no mercado de crédito ao longo dos últimos três anos.
De acordo com dados do Banco Central, o saldo das operações de crédito destas instituições totalizava, em maio de 2019, R$ 1.643 bilhões, valor correspondente a 23,6% do PIB, a menor participação desde janeiro de 2016.
Em maio deste ano, por sinal, pela primeira vez desde junho de 2013 – aquele junho –, o saldo das operações de crédito das instituições financeiras privadas voltou a superar o dos bancos públicos, em uma história que, de certa forma, parece se repetir.
Ainda no primeiro mandato de FHC (1995-1998), a maior parcela do crédito no Brasil era originária de instituições financeiras sob controle público. A crise fiscal do período, intensificada pela utilização irresponsável dos bancos públicos pelos governos dos estados, levou à privatização de bancos estaduais como o Banespa, por exemplo, adquirido pelo espanhol Santander.
Paralelamente ao processo de privatização de bancos públicos estaduais, o governo lançou, em novembro de 1995, o Programa de Estímulo à Reestruturação e ao Fortalecimento do Sistema Financeiro Nacional (Proer), repassando dinheiro público aos bancos privados sob o argumento de que, sem os recursos, haveria um colapso financeiro no país.
Com isto, já a partir de agosto de 2000, os bancos privados passaram a responder pela maior parcela do saldo das operações de crédito do país, conforme é possível observar no gráfico abaixo.
Para quê bancos públicos?
A partir de 2003, o mercado brasileiro passou por um período de importantes mudanças institucionais (regulamentação do consignado, em 2003; consolidação da alienação fiduciária e criação dos instrumentos de captação com lastro imobiliário, em 2004; lei de falências e recuperação de empresas, em 2005; entre outras), que, somadas à conjuntura favorável, colaboraram para a forte expansão das operações de crédito, especialmente das instituições privadas, até 2008.
A presença de bancos públicos no mercado brasileiro, contudo, manteve-se relevante, o que pode ser justificado, do ponto de vista da teoria econômica convencional, por pelo menos três fatores. Primeiro, a existência de mercados incompletos, em que, por causa dos riscos elevados, a oferta privada tende a ser inferior à quantidade eficiente (agricultura, habitação, educação, infraestrutura, baixa renda e pequenos empresários, por exemplo). Segundo, pela tendência de concentração bancária decorrente da presença de economias de escala e barreiras à entrada associadas a aspectos regulatórios e preferências dos consumidores, por exemplo. E por fim, a necessidade de adoção de políticas de crédito anticíclicas em momentos de crise econômica e maior aversão ao risco no setor privado. Esse último fator está por trás do forte crescimento da participação das instituições públicas no mercado de crédito brasileiro a partir do final de 2008.
Conforme mostra o gráfico anterior, a crise financeira internacional – cujo estopim foi a quebra do Lehman Brothers, em setembro daquele ano -, representou um ponto de inflexão no mercado: a maior aversão ao risco segurou a oferta de empréstimos dos bancos privados, enquanto os públicos foram utilizados pelo governo para mitigar os efeitos da crise no mercado interno.
Em setembro de 2008, a diferença entre a participação dos bancos privados (25,4%) e a dos bancos públicos (13%) no saldo das operações de crédito (medido como proporção do PIB) havia atingido seu pico: 12,4 pontos percentuais (pp).
Para reduzir o impacto da crise financeira internacional na economia do país, a partir daquele mês foi observada uma significativa expansão do crédito público, que ganhou ainda mais força a partir do primeiro governo Dilma (2011-2014), quando os bancos estatais passaram a ser utilizados também para pressionar para baixo as taxas de juros do mercado.
A expansão do crédito via bancos públicos, assim, tornou-se um pilar da nova política econômica. Em junho de 2013 – aquele junho –, a participação dos bancos públicos nos financiamentos voltou a superar a dos privados, algo que não era observado desde julho de 2000.
Spread bancário absurdamente elevado
O spread bancário é a diferença entre os juros que os bancos pagam para as aplicações financeiras e o que eles cobram pelos empréstimos.
Segundo dados do Banco Mundial, o Brasil apresentava, em 2017, o segundo maior spread bancário do mundo (38,4 pp), atrás apenas de Madagascar (45 pp). É – ou deveria ser – motivo de perplexidade não somente esta desonrosa segunda colocação, mas, especialmente, o tamanho da discrepância entre o spread brasileiro e o da grande maioria dos países.
Para ficarmos apenas na América Latina, o spread brasileiro era quase três vezes superior ao do Paraguai (14,1 pp) e do Peru (13,8 pp) e mais de quatro vezes maior do que o de Uruguai (8,8 pp) e Colômbia (7,7 pp). Ao mesmo tempo, de acordo com dados do BIS referentes ao 4º trimestre de 2018, o saldo das operações de crédito às pessoas físicas (medido como proporção do PIB), no Brasil, era próximo ao da Colômbia (cerca de 27% do PIB) e bem superior ao do México (16%) e da Argentina (6,6%), onde os spreads eram de, respectivamente, 9,7 pp e 4,6 pp.
Ou seja, os juros bancários têm um peso desproporcional na renda das famílias brasileiras e representam uma fonte de receitas extraordinária para os bancos.
Especialistas apontam a elevada inadimplência, a alta participação do crédito direcionado, as despesas administrativas, os tributos, os depósitos compulsórios, a dificuldade de recuperação de crédito dos inadimplentes e o alto grau de concentração bancária entre as principais causas deste absurdamente elevado spread.
Em uma nova etapa da reorientação da política econômica, a partir de 2012 os bancos estatais passaram a ser utilizados para enfrentar o problema. Ainda que seja possível atribuir à expansão dos empréstimos públicos daquele período parte da responsabilidade pela crise econômica que se seguiu – o excesso de crédito e a consequente expansão do consumo teria sido responsável pela aceleração da inflação, mantida na meta entre 2013 e 2014 apenas pelo congelamento de tarifas públicas –, vale destacar outra curiosa coincidência.
Foi também naquele junho de 2013 que o spread bancário das operações de crédito com recursos livres atingiu a mínima histórica (20,9 pp).
Alguns meses antes, em outubro, a taxa Selic também havia sido reduzida ao menor patamar da história até então.
Coincidência, correlação e causalidade
Tenho um amigo que morre de medo de avião e, sempre que precisa viajar, carrega uma jabuticaba no bolso. “Qual é a chance de cair um avião no qual viajava um brasileiro carregando uma jabuticaba no bolso?”, ele se justifica.
A absurda estratégia do meu amigo revela uma confusão muito comum envolvendo a análise de dados estatísticos – e que precisa ser esclarecida: correlação e relação de causa e efeito são coisas distintas. Ainda que seja baixa, talvez até nula, a frequência de queda de aviões nos quais algum brasileiro carregava uma jabuticaba no bolso, carregar uma jabuticaba no bolso não vai impedir um avião de cair.
Em artigo recente (“Por que juros bancários tão altos?”), explorei a curiosa correlação entre spreads relativamente altos e o fato de a língua oficial do país ser a portuguesa (Brasil, São Tomé e Príncipe, Timor Leste, Moçambique, Angola e Cabo Verde se destacam entre os países que apresentam os maiores spreads bancários do mundo). Não se segue daí, porém, que a mudança do idioma oficial do Brasil para o inglês, por exemplo, resultaria na redução dos juros.
Tudo isto para dizer que, do ponto de vista estritamente estatístico, não é possível estabelecer uma relação de causa e efeito entre tudo o que aconteceu após as manifestações de junho e o fato de, exatamente naquele junho de 2013, o spread bancário ter atingido a mínima histórica e a participação dos bancos públicos no saldo das operações de crédito ter superado a dos bancos privados pela primeira vez após quase 13 anos, resultado de ação explícita do governo.
A relação de causa e efeito, neste caso, pode ser estabelecida a partir de teorias e – especialmente no debate público – narrativas.
De acordo com a narrativa predominante, os spreads teriam sido reduzidos artificialmente entre 2012 e 2013, desrespeitando-se as leis do mercado, o que, somado à oferta excessiva de crédito público, teria gerado desequilíbrios econômicos, com consequências como inflação e déficits fiscais.
Neste caso, contudo, ficam ainda as perguntas: mas por que o spread no Brasil é tão alto quando comparado ao de outros países? Que leis naturais são essas que justificam um spread bancário tão extravagante?
Embora os debates de grande parte dos economistas a respeito das taxas de juros sejam supostamente técnicos, não há como ignorar os aspectos distributivos de um spread elevado. Uma taxa alta, afinal, significa transferências maiores de recursos de quem toma empréstimos para quem empresta o dinheiro.
Na raiz do elevado spread bancário brasileiro, assim, poderia estar o fato de que o país é um dos mais desiguais e injustos do mundo. Se pensarmos no endividamento como uma forma de exploração e dominação, podemos argumentar que o abismo social onde pouquíssimas pessoas detêm recursos, escassos para a grande maioria, abriria espaço para a cobrança de juros extorsivos.
De fato, a partir da análise de dados dos estados brasileiros, em dois artigos (“Inadimplência é maior em estados com menor renda” e “Microempreendedores paulistas pagam taxas de juros maiores”) apresentei a relação positiva entre taxa de juros e inadimplência e a relação negativa entre inadimplência e renda. Ou seja, em regiões mais pobres, a inadimplência é, em média, maior, assim como a taxa de juros, o que tende a acentuar o problema da desigualdade regional.
Por esta abordagem, discussões a respeito de educação financeira, redução da assimetria de informação e incentivo à competição bancária até parecem inócuas. De fato, conforme apresentei no artigo “Por que juros bancários tão altos?”, mesmo diante de uma inadimplência em patamar historicamente baixo, o spread médio das operações de menor risco (que não incluem cheque especial e cartão de crédito, por exemplo) mantém-se elevado.
Parte da explicação pode estar no fato de que, como as taxas de juros das modalidades rotativas foram reduzidas recentemente por força da ação do próprio Banco Central – que, em 2018, alterou as regras do rotativo do cartão de crédito e do cheque especial, obrigando os bancos a oferecerem linhas de crédito mais baratas após um determinado período de financiamento naquelas modalidades –, os bancos estão compensando essa perda de margem financeira em outras modalidades.
Quando cobertor é curto, cobre-se a cabeça, descobrem-se os pés.
Outra causa apontada pelos especialistas para o elevado spread bancário no país é a alta participação das operações com crédito direcionado. O argumento é o de que quem tem acesso a elas paga juros menores, de forma que os demais, nas operações de recursos livres, teriam de arcar com custos maiores, como forma de compensação.
Apesar da participação cada vez menor dos recursos direcionados no saldo de crédito do Sistema Financeiro Nacional a partir de 2016 – a participação dos recursos direcionados caiu de 50,4% do saldo total em maio de 2017 para 44,9% em maio de 2019 –, contudo, não se notam variações significativas, ou na mesma magnitude, nos spreads das operações de crédito não rotativo.
Se o elevado spread bancário, então, é apenas mais uma das faces da desigualdade social e da exploração financista, bancos públicos sólidos e fortes representariam uma ameaça à elite financeira do país, que teria passado a se articular pela desestatização do crédito especialmente a partir de junho de 2013.
É no que acredita, por exemplo, Jessé Souza, para quem, de acordo com a sua “radiografia do golpe”, as raízes do impeachment de 2016 teriam nascido de sementes plantadas em junho de 2013.
“O que nós temos como o início desse golpe foi a quebra do antigo compromisso que foi feito, um compromisso que foi feito desde 88, que foi atualizado pelos governos do PT, que foi montar ‘a gente não vai tocar no rentismo, mas a gente vai usar para redistribuição’. Essa pequena coisa é intolerável numa sociedade escravocrata como a nossa. Quando a bonança das commodities estava encerrando, a presidenta Dilma imaginou certamente de que você iria ter uma nova matriz econômica, essa matriz econômica tinha que ter um processo de industrialização interna, um fortalecimento do mercado interno, e tinha que ter um combate ao juros, que é um juros extorsivo, absurdo que é mera extração da riqueza de todos para o bolso de meia dúzia. É por isso que você tem os juros maiores do planeta inteiro aqui. Isso fez com que toda a elite econômica se juntasse contra a presidente porque o agronegócio, o comércio e a indústria confiam seus ganhos a esse mercado financeiro que drena o recurso de todos”, explicou Jessé Sousa em entrevista para o GGN de 06/09/2016.
A partir de abril de 2016, quando a Câmara dos Deputados aprovou a autorização para o prosseguimento, no Senado, do processo de impeachment e afastou a então presidente Dilma Rousseff, notamos, claramente, um ponto de inflexão no mercado de crédito.
Após o saldo das operações de crédito como proporção do PIB ter atingido a sua máxima histórica em dezembro de 2015 (53,9%), ele passou a recuar, acompanhando pela mudança na participação de públicos e privados, resultado de uma reorientação da política econômica justificada pela crise fiscal.
De dezembro de 2015 até maio de 2019, a participação dos bancos públicos caiu 6,5 pp (de 30,1% para 23,59% do PIB), muito mais do que a dos privados, que, apesar de ter recuado em um primeiro momento, voltou a crescer e alcançou 23,60% em maio.
Diante de uma das maiores crises econômicas da história do país, em que o setor público poderia agir de maneira anticíclica, não há margem fiscal para expansão dos investimentos do governo – que, ao contrário, diminuíram –, ao mesmo tempo em que os bancos públicos buscaram melhorar sua rentabilidade, equiparando taxas e tarifas às cobradas pelos privados.
No primeiro trimestre de 2019, em relação ao mesmo período de 2018, Banco do Brasil e Caixa registraram aumento do lucro superior ao de bancos privados (45,7% e 22,9%, respectivamente, contra alta de 30,9% do Bradesco, 21,1% do Santander e 6,8% do Itaú). Ao mesmo tempo, o saldo das operações de crédito da Caixa recuou 2% no período, contra alta de apenas 0,8% do Banco do Brasil, bastante inferior aos aumentos de 12,7%, 9,3% e 7,5% das carteiras de crédito de Bradesco, Santander e Itaú, respectivamente.
Ainda sobre a suposta ameaça dos bancos públicos, não custa lembrar que foram buscar nas tais pedaladas fiscais (termo utilizado para definir as operações orçamentárias realizadas pelo Tesouro Nacional, não previstas na legislação, que consistem em atrasar o repasse de verba a bancos públicos com a intenção de aliviar a situação fiscal do governo em um determinado período) a motivação para o impeachment de Dilma Rousseff.
Meras coincidências? Teoria da conspiração? Pode até ser.
Seja como for, parece razoável que o debate a respeito do spread bancário e da atuação dos bancos públicos não se limite a aspectos supostamente técnicos, levando em consideração, também, os conflitos distributivos que definem nossa sociedade.
É verdade que a promoção da competição bancária no Governo Dilma, embora desejável, pode ter sido conduzida de forma equivocada, com reflexos inclusive no aumento da inflação.
Também é verdade que taxas de juros elevadas representam uma transferência de recursos de pobres para ricos e colaboram, assim, para perpetuar a nossa desigualdade social.
O papel das instituições financeiras sob controle público, neste contexto, não deveria ser negligenciado, uma vez que o mercado bancário brasileiro é concentrado, tem falhas e as instituições públicas ainda podem desempenhar um papel importante no financiamento do desenvolvimento, bem como para diminuir os impactos negativos dos ciclos econômicos na vida da população.
Bancos e financiamento públicos estão longe de serem um exotismo brasileiro. Jabuticaba, na verdade, parece ser a nossa impressionante estrutura reprodutora de desigualdades, para a qual as altas taxas de juros bancárias contribuem enormemente.
Vitor França é economista pela USP, onde também cursou Letras, mestre em Economia pela FGV-SP e professor universitário.