A quem interessa a abertura dos mercados
Para muitos governos do Sul, abrir os mercados agrícolas dos países ricos seria a chave para um novo ciclo de progresso. Na prática, a medida pode beneficiar apenas as multinacionaisJacques Berthelot
O fracasso da Rodada do Milênio da Organização Mundial do Comércio (OMC), em Seattle, não chegou a colocar em causa a “agenda incorporada” do Acordo Geral sobre as Tarifas Aduaneiras e o Comércio (GATT), decidida ao fim da Rodada do Uruguai, em 1994. Por isso em Genebra, na sede da OMC, as negociações continuaram discretamente desde o fim de fevereiro, em torno de dois temas dessa “agenda”: os serviços e a agricultura. A Comissão de Bruxelas, que negocia em nome da União Européia (UE), pretende, de um lado, obter do Sul medidas de liberalização suplementares no setor de serviços. Age, neste aspecto, em acordo com os Estados Unidos. De outro lado, porém, encontra-se em posição defensiva face aos numerosos países que querem acabar com os subsídios à exportação agrícola: 84% do total mundial em 1995 e 1996.
A União Européia tem que administrar as contradições advindas de três tipos de posições: as que assumiu no seio da OMC — decorrentes da reforma da Política Agrícola Comum (PAC), traçada na Agenda 2000, de março de 1999 —; as relacionadas à ampliação programada em direção a diversos países da Europa Central e Oriental (PECO); [1] e ainda as resultantes dos acordos de livre comércio negocioados com certos países do Sul, especialmente com os do Mercosul. [2] A UE será obrigada a reduzir fortemente seus subsídios à exportação e suas tarifas alfandegárias à importação, ao mesmo tempo em que serão contestados os seus auxílios diretos aos produtores considerados pouco “independentes” do apoio à produção.
No centro dessas contradições encontra-se a pretensão da União Européia de conquistar ilusórios mercados externos por meio de subsídios, em lugar de proteger seu mercado interno, que no entanto absorveu, em média, 90% de sua produção de 1995 a 1998 (89,5% dos cereais, 90% dos laticínios e 92,1% das carnes). A PAC foi claramente colocada a serviço das grandes empresas agro-industriais da União Européia, cuja “solidariedade européia” consiste em comprar matérias primas agrícolas ao mais baixo preço possível, onde quer que elas estejam, invocando para tanto o pretenso interesse dos consumidores. As cifras esclarecem esta impostura: de 1990 a 1998, os preços dos alimentos aumentaram 11,1% na França, enquanto os preços da produção agrícola produção caíram 10,7%.
Matéria prima pelo menor preço
Os especialistas australianos congratulam-se antecipadamente pela duplicação, em dez anos, do volume de trocas agrícolas que a liberalização total lhes traria. [3] Não se preocupam, porém, com a aceleração do efeito-estufa, do qual os transportes seriam os primeiros fatores. Nesse cenário de livre-cambismo exagerado, as empresas agro-industriais da União Européia, fundidas com as americanas, jogariam os agricultores do mundo inteiro numa impiedosa concorrência, reduzindo-os à condição de sub-empreiteiros por tarefa e sem garantias, bons apenas para fornecer matérias primas ao menor preço. Estas são as perspectivas que os ingênuos deveriam ter presentes antes de fazer coro com os membros do Grupo de Cairns [4] e do conjunto de governos do Sul, que exigem a diminuição unilateral das barreiras agrícolas à importação, na Europa em primeiro lugar.
A incoerência das posições da UE situa-se nas negociações com os países da Europa Central e Oriental [5] e sobretudo com os países do Sul, com os quais multiplica, desde 1995, acordos ou projetos de acordo de livre comércio que quer estender à agricultura, apesar das objeções francesas. A avaliação sobre os riscos desses acordos exige que se faça uma distinção entre a grande maioria dos países, que exportam produtos tropicais, e os que, como os membros do Mercosul, exportam muitos ítens agrícolas de zonas temperadas.
A União Européia negociou “acordos econômicos regionais de parceria” com os 71 países da África, Caribe e Pacífico (ACP) a ela ligados pela Convenção de Lomé, que acabou de ser renovada em 3 de fevereiro último, mas cujas disposições preferenciais só serão válidas por um período transitório, já que medidas limitadas a determinados países serão proibidas pela OMC. Esses acordos econômicos regionais de parceria são muito perigosos para tais países, pois os obrigarão a abrir suas fronteiras, com tarifas alfandegárias reduzidas a zero para as exportações subvencionadas da UE, tanto alimentares como industriais. Isso basta para destruir seu campesinato, que ainda constitui 66% da população. Sob o pretexto de que cada acordo econômico regional de parceria será firmado entre a UE e um grupo regional de países ACP — como, por exemplo, a União Econômica e Monetária do Oeste Africano (UEMOA), que congrega 8 Estados — a Comissão de Bruxelas finger favorecer a integração regional Sul-Sul. Na verdade estará desfechando-lhe um golpe de morte.
Isto porque esses grupos começaram muito mal. Na tarifa externa comum adotada pela UEMOA em 1º de janeiro de 2000, produtos agrícolas brutos como o chá, o milho e o sorgo são taxados a 5%, como uma matéria prima comum, enquanto os produtos manufaturados, tais como a farinha, as carnes e os laticínios, são taxados a 20%, tanto quanto os Mercedes. Em 1994, os países da UEMOA comunicaram à OMC, que adotariam tarifas de importação de 160%, em média, sobre os produtos agro-industriais. Porém, sob a pressão do Banco Mundial e do FMI — para quem os agrupamentos regionais não passam de freios às trocas multilaterais —, a UEMOA renunciou completamente à proteção de sua agricultura. Foi também pressionada, nesse caso, pela União Européia, para quem “é essencial assegurar que o estabelecimento dos acordos econômicos regionais de parceria não diminui a necessidade de suprimir progressivamente os obstáculos às trocas em relação ao conjunto dos parceiros comerciais”. [6]
Preços em baixa, alegria das múltis
O “mercado livre”, ao levar os africanos a consumir cada vez mais alimentos importados, vai obrigá-los a exportar ainda mais produtos tropicais, cujos preços entrarão numa aspiral descendente, para o maior lucro das empresas agro-industriais mundiais. Não lhes restará então outra escolha senão produzir para o único grande mercado planetário que paga: o da droga. Acordos tais como os firmados entre a União Européia e os países mediterrâneos pressupõem a livre circulação de bens, serviços e capitais, não porém a de pessoas. Os problemas dos imigrantes “sem documentos” e dos adolescentes africanos que morrem nos trens de aterrissagem apenas se agravarão. Desde já, a UE carrega essa terrível responsabilidade.
O acordo de livre comércio projetado entre a União Européia e o Mercosul é de natureza diferente, uma vez que incorpora no setor agrícola não apenas produtos tropicais, mas também itens que concorrem diretamente com os da Europa. Os agricultores da UE não poderão resistir à concorrência de cereais, carnes, laticínios e açucar, que chegarão ao mercado comunitário a preços infinitamente mais baixos do que os europeus. Apesar dos produtos agro-industriais constituírem já 54% das exportações dos países do Mercosul para a União Européia, é compreensível que estes queiram aumentar sua fatia no mercado, já que a balança sua comercial com global encontra-se em déficit crescente desde 1993 (6,4 bilhões de dólares em 1998). Mas esta estratégia beneficiará unicamente as maiores empresas agro-industriais, ligadas aos interesses dos grandes agricultores locais. As populações, especialmente os pequenos e médios camponeses de cada um dos parceiros, têm tudo a perder. Para estes, especialmente no Brasil e Argentina, o balanço da liberalização, especialmente no setor agrícola, já é bastante pesado.
Exportação e desigualdade social
Desde os anos 90 a grande abertura comercial do Mercosul tanto à importação, quanto à exportação, aumentou muito as desigualdades sociais. No Brasil, a metade da população vive abaixo da linha de pobreza; 41% das crianças de 6 a 24 meses estão desnutridas e “o setor da população que mais sofre de desnutrição é o dos trabalhadores rurais sem terra”, [7] ou seja, 4,8 milhões de famílias. De 1985 a 1996, a queda da rentabilidade da produção, ligada à diminuição das barreiras alfandegárias e dos subsídios agrícolas (os quais se concentram sobre os produtos exportados) reduziu a superfície cultivada de 52 para 42 milhões de hectares, dos quais 3,7 milhões nas lavouras de menos de 100 hectares, plantadas sobretudo com culturas alimentícias. Não é de estranhar que os preços dos alimentos essenciais tenham aumentado mais depressa que a inflação, empobrecendo particularmente os trabalhadores rurais sem terra e os desempregados.
A situação da Argentina não é mais invejável. A concentração fundiária acelerou-se na década de 90, mas desde 1988 15% das lavouras de mais de 1000 hectares já ocupavam 75% das terras. Disso decorreu a aceleração da mecanização das colheitas e a queda do número de assalariados agrícolas. Decorreu ainda a pauperização do pequeno campesinato, com ou sem terras, e o crescimento vertiginoso das desigualdades. O desemprego chegou, em 1999, a 18% da população ativa. “A nova orientação exportadora do setor agrícola não se traduziu em vantagens sociais para a maioria da população, muito pelo contrário”, [8] pois encareceu os produtos destinados ao consumo interno. Entre 1994 e 1998, sob a presidência de Carlos Menem, o número de pobres aumentou em 4,1 milhões, e, em 1999, 37% dos argentinos encontraram-se abaixo da linha de pobreza.
Na falta de uma política agrícola comum, as importações agrícolas realizaram-se no interior do Mercosul: 55% a favor do Brasil e 39% da Argentina, em 1997. O resto veio sobretudo da União Européia e dos Estados Unidos, graças a subsídios à exportação, abertos ou camuflados. A baixa das taxas alfandegárias — que passaram de 40% em média, nos anos 70-80, a 13%, em 1999 — ampliou o fenômeno. Um aumento da produção devido a um acordo de livre comércio com a UE provocaria reações nos outros exportadores ocidentais. De fato, eles também negociam, especialmente com os Estados Unidos, acordos bilaterais de livre comércio, que deverão propiciar uma baixa acentuada dos preços mundiais dos cereais, carnes e laticínios. Nesse jogo, os países do Mercosul não sairiam sem dúvida ganhando, pois não terão os mesmos meios de conceder ajudas “independentes” para compensar esta baixa.
Mas isso não é o fundamental. Com tantas bocas a alimentar, dentre as quais muitas estão em estado de desnutrição, a prioridade das políticas agrícolas latino-americanas, e principalmente das do Mercosul, não deveria ser exportar e importar, mas satisfazer as necessidades alimentares nacionais e regionais. Em 1999, a parcela mais pobre dos latino-americanos, que correspondia a 20% da população, apenas 79% do que precisava. É previsto que esse índice crescerá para 32% até 2009, quando a taxa de dependência da América Latina em matéria de importações alimentares se elevará a 47%. E isso em um continente que é perfeitamente capaz de alimentar a si próprio.
Face à potência dos mercados financeiros e das empresas multinacionais, o Mercosul teria todo interesse em aprofundar sua integração política, ampliando-a progressivamente ao resto do sub-continente, e em proteger seus produtores e seus produtos agrícolas através de uma “preferência latino-americana”. Ou seja, seria prudente renunciar às miragens de um livre comércio com a Europa e os Estados Unidos. Embora enriquecendo as múltis, sem com isso aplacar a fome de setores cada vez mais vastos da população, ele seria fatal para a agricultura familiar e para os camponeses dos dois lados do Atlântico. São os elementos mais dinâmicos desse setor camponês que se reagruparam na Via Campesina (ler o boxe sobre o assunto). É claro que as discussões da OMC em Genebra não se inscrevem nesta lógica.
Em paralelo à recente sessão da Conferência das Nações Unidas sobre o Comércio e o Desenvolvimento (Unctad), realizada em Bancoc em fevereiro, algumas das organizações já presentes em Seattle — entre elas a Via Campesina — lançaram um manifesto pedind