A realidade é uma questão de palavras: “A outra filha” de Annie Ernaux
Confira a entrevista com Marília Garcia, tradutora de Ernaux. Conversamos sobre o processo de tradução dos livros da autora, sua linguagem e reverberações na escrita de Marília
Cada livro de Annie Ernaux é uma possibilidade de vislumbrar diferentes aspectos da vida da escritora. Como Rachel Cusk pontua em perfil recentemente traduzido pela revista Quatro Cinco Um, é como se a autora usasse da vergonha como um mapa para encontrar a verdade em sua própria história. Dentre os já publicados no Brasil, livros de Ernaux refletem vergonhas de classe, de gênero e de sexualidade. Lidas em conjunto, as obras formam uma cartografia não apenas de sua vida, mas da humanidade – da mãe, da amante, da filha.
A nova tradução da autora – realizada por Marília Garcia para a editora Fósforo – traz mais um território desse mapa, a história de uma irmã mais velha, que morrera antes do seu nascimento. Escrito em outubro de 2010, “A outra filha” parte de um convite para participar da coleção francesa Les Affranchis, que pediu a escritores que fizessem uma carta que nunca foi escrita.
A tensão entre vida e morte perpassa a carta, que não hesita em dizer que a vida da autora só foi possível por conta da morte da irmã: “Não escrevo porque você morreu. Você morreu para que eu escreva, eis aqui uma grande diferença.” A questão de classe – sempre presente nas obras mais pessoais de Ernaux – se entrelaça com sua própria existência. Da classe média-baixa de uma França interiorana, a família não teria condições de sustentar duas filhas, e a autora é a própria “herança da ausência” da irmã, ressuscitada e morta mais uma vez na carta.
Existe no livro uma espécie de vergonha que ainda não havia aparecido nos outros livros de Ernaux; a vergonha de ser “a outra”, vocabulário que lembra aquele de Simone de Beauvoir, ao qual a própria autora recorre no livro. Colocada ao lado da imagem de santa deixada pela irmã secreta, Ernaux se torna aquela que fugiu para longe dos pais, para ser enterrada longe deles e daquela origem que tanto a envergonhou em diversos momentos.
A origem do próprio livro está na mãe da autora, cujos sussurros a uma cliente levaram por acaso a Ernaux a história da irmã que morreu de difteria aos seis anos de idade – palavras que nunca voltaria a ouvir da boca de seus pais, que mantiveram o segredo até a morte. Naquele verão de 1950, a autora compreendeu o papel da mãe: “É a única história real, dita com as palavras e a voz dela, voz autorizada porque ela estava lá e porque ela era a mais forte do casal, ela que, dos dois, poderia suportar a morte do outro — foi isso que compreendi naquele dia.”
Confira a entrevista com a poeta, artista e tradutora dos livros de Annie Ernaux no Brasil, Marília Garcia. Conversamos sobre o processo de tradução dos livros da autora, sua linguagem e suas reflexões sobre a escrita, além das reverberações da obra de Ernaux na escrita de Marília.
Como foi o processo de tradução de “A outra filha” e quais suas impressões sobre o livro?
Acho um livro muito comovente porque tenta nomear um segredo, um enigma, mas como falar sobre alguma coisa que não tem forma, que está perdida nas memórias da infância de modo tão difuso? Acho que ela tenta fazer isso por meio da escrita, da materialidade das palavras e discursos – acho que por isso é tão potente também. Ao se endereçar à irmã que morreu antes do seu nascimento e cuja existência foi mantida em segredo pelos pais, ela vai criando um diálogo com esse fantasma familiar e procurando formas de nomear isso. Também fiquei bastante impactada com a reflexão que ela traz acerca dos caminhos e acasos da vida, em outras palavras, reflexão sobre a própria existência e o sentido da vida: se a irmã não tivesse morrido, ela não existiria. Qual o sentido de estar aqui?
Sobre o processo de tradução, fiz como costumo fazer com os livros dela: leio um trecho no começo, em torno de 10-15 páginas tentando ouvir o tom do livro, perceber a voz dela, o tamanho das frases, a prosódia. Então começo a traduzir sem saber o que vai acontecer na história e vou sendo levada pelo fio da história (vivendo pela primeira vez as emoções e descobertas de leitora). Quando já conheço o livro é um pouco diferente, mas nunca tinha lido este. Depois de uma primeira versão da tradução, imprimo tudo e vou revisando no papel e revendo as palavras importantes, a sintaxe, o ritmo. Também costumo reler os outros livros dela quando estou traduzindo algum novo para relembrar as constelações que ela vai criando e para conferir o vocabulário que usei nos outros textos para manter uma coerência.
Quando Annie Ernaux ganhou o Nobel, muitos questionaram como uma autora de linguagem tão simples poderia ter recebido o prêmio. Para você, qual o mérito da forma da autora?
Talvez o mérito dela esteja justamente nessa aparente simplicidade, nessa capacidade de trazer tanta coisa em frases curtas, diretas, objetivas. É como se ela conseguisse fazer caber dentro de uma forma simples um mundo inteiro, uma vida inteira com tudo o que ele pode ter: relações pessoais, sociais, afetivas, imagens, signos do mundo (músicas, frases feitas, notícias de jornal). Acho que é uma arte poética: trabalhar em cima da materialidade da língua, pegando frases, palavras, objetos (culturais e materiais), fazer listas precisas e desdobrar as narrativas a partir desses signos tão concretos. Por exemplo, em “A outra filha” ela ouve a mãe comparando ela com a irmã e dizendo que a irmã era mais “boazinha”. A partir dessa palavra, ela vai desdobrar uma longa reflexão sobre seu lugar dentro das relações familiares. Ou então a enumeração das situações ligadas a essa irmã, situações descritas com maior precisão, sem retórica, sem metáforas, com a maior objetividade possível. Mas justamente essa concisão vai trazer uma vida enorme para as palavras, cenas, modo de narrar.
Especialmente em “A outra filha”, além de mergulhar em seu passado em busca de uma história, Annie Ernaux testa os limites da linguagem e examina a própria escrita – muitas vezes fugindo do passado, no formato da história da irmã, para questionar o presente, sua escrita. O que o livro revela sobre a obra da autora?
Acho que o livro reafirma essa operação que você descreve de trazer o passado para ser lido pelas lentes do presente (e por meio da escrita), operação que transforma o lugar dela. Nesse livro ocorre uma transformação importante: ele começa tratando a irmã como “a outra filha” e termina colocando ela própria neste lugar de outra, ou seja, ela se descola da família depois de ter percorrido o livro. O presente da escrita transforma o passado.
O papel da mãe é muito importante nessa carta que Ernaux escreve para a irmã, muitas vezes se referindo a “ela” apenas pelo pronome, já que se diz incapaz de escrever “nossa mãe”. Como você vê essa “personagem” nesse e em outros livros da autora?
Acho que a personagem da mãe é fundamental para a escrita dela, sobretudo neste livro, em que a mãe é responsável pelo discurso central que desdobra a história: a cena em que ela descobre a existência da irmã parte de uma fala da mãe e esta é a verdade, a lei, o discurso central de onde tudo irradia. Ao mesmo tempo, essa verdade é um segredo, então traz uma complexidade enorme para a narrativa. Ela precisa dialogar com este discurso da mãe, mas também tentar se descolar dele: fazer renascer a irmã para colocá-la em outro lugar. E concluir que, afinal, ela é a outra filha…
Depois de traduzir tantos livros da autora, você acha que a escrita dela teve alguma influência na sua?
Sim, com certeza. Foram tantas palavras que “atravessaram” os meus dedos (e frases e capítulos e livros) que não tenho dúvida de que a escrita dela transforma a minha, é como se um tom tivesse ficado um pouco colado nas mãos. Por outro lado, acho difícil dizer exatamente onde isso acontece porque estou muito próxima ainda, tanto das traduções quanto dos meus textos mais recentes. Uma parte do meu último livro já estava pronta quando comecei a traduzir a Annie Ernaux, mas outra parte foi escrita enquanto traduzia os primeiros livros dela e há alguns elementos como a presença da memória e do tempo, mas não sei indicar com muita precisão esses momentos…
Carolina Azevedo é integrante da equipe do Le Monde Diplomatique Brasil
*Colaborou Bianca Pyl
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