A rebelião do desejo e o retrocesso à extrema-direita
Junho de 2013 marcou um curto-circuito no fluxo: forças, energias, desejos mobilizavam demandas das mais variadas, levando sujeitos a ocupar as ruas, da esquerda à direita, de progressistas a conservadores, de comunistas a nazifascistas
Os sinais já podiam ser sentidos desde 2011, com as mobilizações pelo norte da África – na Tunísia, no Egito, na Líbia e no Iêmen – derrubando ditaduras. Depois, os indignados da Europa, as revoltas dos subúrbios de Londres, o grito dos estudantes no Chile e os protestos do Occupy Wall Street, nos Estados Unidos. Nas manifestações, ouviam-se enunciados que poderiam ser de revoltas de diferentes lugares. No Occupy Wall Stret, observou o filósofo Slavoj Žižek, um rapaz levanta um cartaz: “Estão nos perguntando qual é o nosso programa. Não temos programa”. Poderia, tranquilamente, ser um cartaz de um dos manifestantes de junho de 2013 no Brasil.
A onda de protestos no Brasil de 2013 foi marcada no início por uma pauta social, a luta contra o aumento da tarifa de ônibus, organizada pelo MPL. Não se tratava de uma pauta singular; estava inserida em um panorama histórico do movimento, destacando a Revolta do Buzu, de Salvador, em 2003, passando pela Revolta da Catraca, de Florianópolis, em 2004, à defesa pela lei do passe livre e a inserção da pauta no Fórum Social Mundial de 2005, em Porto Alegre. Porém, logo depois das duas primeiras semanas, as manifestações se pulverizaram nas mais diferentes demandas, num movimento enlouquecido que deixou sob vertigem os mais astutos analistas.
Boa parte das análises à época ficava às voltas da impossibilidade de fazer uma síntese dos protestos diante da variação crescente de demandas, com manifestações em mais de 380 cidades. Essa impossibilidade era enfrentada como um problema, e não como a potência das jornadas. Peter Hakim, então presidente do Diálogo Interamericano, publicou uma análise no Estadão, em 27 de junho de 2013, em que apresentou a resposta de uma jovem manifestante sobre o que se queria com as manifestações: “Nós queremos tudo, e queremos agora”. É no que não se consegue nomear (o que é esse tudo?) a marca da potência das jornadas.
“Queremos tudo” aponta para um leque infinito de possibilidades, mas cada sujeito se inscreve à sua maneira, seja pela indignação do aumento da tarifa de ônibus, seja por considerar precários os serviços públicos, seja mesmo por se identificar com uma causa ambiental, como os manifestantes de uma pequena cidade litorânea de Santa Catarina, Itajaí, ao defender uma praia silvestre da especulação imobiliária.
“Anota aí: eu sou ninguém” e a saída de Ulisses
O filósofo Peter Pál Pelbart descreveu uma cena que toca o coração das jornadas de junho de 2013. Quando um repórter policialesco tentou expor a identidade de uma manifestante do Movimento Passe Livre (MPL), ela rapidamente respondeu: “Anota aí: eu sou ninguém”. Para Pelbart, isso mostra “como certa dessubjetivação é condição para a política hoje. Agamben já o dizia, os poderes não sabem o que fazer com a ‘singularidade qualquer’”. A enunciação “eu sou ninguém” ganha força ao escapar da identificação que um jornalista poderia usar para criminalizar a manifestante. Dessubjetivar significa escapar das classificações que funcionam para dominar. Na primeira semana de junho de 2013, a mídia mainstream reduziu os protestos a vandalismo.
Essa posição da manifestante do MPL remonta ao modo como Ulisses escapou do ciclope Polifemo, personagem de um olho da mitologia grega, filho de Poseidon, deus do mar. Após dez anos distante de Ítaca, Ulisses e seus homens chegam à ilha dos ciclopes e à caverna de Polifemo. Quando o gigante retorna à sua caverna e vê que estão consumindo seus alimentos, agarra dois dos homens e devora-os. Ulisses aproxima-se e oferece-lhe vinho tinto: – Toma, ciclope, experimenta este vinho, uma vez que comeste carne de gente. – Como é que te chamas, homenzinho? – perguntou o gigante. – O meu nome é “Ninguém”. Depois de embriagar o ciclope, que adormece, Ulisses aproveita para enterrar um pedaço de pau no único olho de Polifemo, que berra. Depois, um outro ciclope, ao ver Polifemo, já cego, pergunta: – Quem fez isso contigo? – Polifemo responde: – Ninguém. – A astúcia de Ulisses ao ganhar a batalha contra o ciclope lembra a personagem “Eu sou ninguém”, que escapou do interrogatório policialesco.
Esse processo de dessubjetivação lembra também uma personagem da literatura, Bartleby, do conto Bartleby, o escrivão: uma história de Wall Street, do escritor norte-americano Herman Melville (1819-1891), publicado originalmente em 1853. Nele, o narrador – patrão da personagem principal – relata a intrigante tentativa de interagir com o seu funcionário, Bartleby. Todas as vezes que solicitava uma ação para além das suas funções, Bartleby sempre lhe respondia com a mesma frase: “Preferiria não”.
O filósofo Giorgio Agamben observará a potência do não em Bartleby, personagem que se esquiva às tentativas de seu patrão de absorver toda sua energia e liberdade com tarefas que não competem ao seu trabalho de escrivão. Assim, “eu sou ninguém” ou “preferiria não” são enunciações cuja potência é negar que o outro – jornalista ou patrão – exproprie suas vidas e liberdades.
O desejo é revolucionário
Em O anti-édipo: capitalismo e esquizofrenia, Gilles Deleuze e Félix Guattari mostram que o desejo é força motriz da revolução porque faz passar “estranhos fluxos que não se deixam armazenar numa ordem estabelecida”. É uma força que se faz sentir em processo e mediante agenciamentos coletivos. Os agenciamentos formam-se no fluxo dos acontecimentos. Junho de 2013 marcou um curto-circuito no fluxo: forças, energias, desejos mobilizavam demandas das mais variadas, levando sujeitos a ocupar as ruas, da esquerda à direita, de progressistas a conservadores, de comunistas a nazifascistas.
Deleuze e Guattari acertaram ao associar o desejo também às forças de destruição, indo na direção da pulsão de morte tematizada por Sigmund Freud em Além do princípio de prazer, de 1920. Assim, há desejo de humilhação, de autodestruição, de submissão. Para os pensadores franceses, “Hitler dava tesão nos fascistas”. Na realidade atual diríamos que o “mito” dá tesão nos seus seguidores. Para os autores, o desejo fascista sucede a uma revolução conservadora. Ora, os gritos de “o gigante acordou” de manifestantes enrolados na bandeira brasileira indicam a destruição deste mundo – democrático – para, com as cinzas, construir um mundo enraizado em “Deus, pátria e família”, lema do fascismo.
A língua é fascista
Podemos retomar a aula inaugural de Roland Barthes para o Collège de France, em 1978, ao dizer que “a língua, como performance de toda a linguagem, não é nem reacionária, nem progressista; ela é, simplesmente: fascista; pois o fascismo não é impedir de dizer, é obrigar a dizer”. Se a linguagem é a estrutura que interpela o sujeito, ela o faz a serviço do poder.
“O gigante acordou” é um remake do que se ouvia nas ruas durante o golpe militar. O slogan foi ecoado pela Marcha da Família com Deus pela Liberdade, nome de uma série de manifestações de março a junho de 1964, constituindo o principal movimento popular de apoio ao golpe, ocorrido no dia 31 de março daquele ano. Não é de estranhar que o grito “o gigante acordou” emergiu no decorrer das revoltas de junho de 2013 e com força moral em manifestantes enrolados na bandeira nacional. O mantra foi repetido também pela mídia como uma grande celebração das massas, mas depois da segunda semana, quando o foco já não era mais a redução da tarifa do transporte público.
Aqui devemos seguir os passos de Michel Foucault: onde há poder, há resistência. “Eu sou ninguém” ou “Queremos tudo”, seja pela falta, seja pelo excesso, são formas de dessubjetivação que provocam um curto-circuito na estrutura. A língua é fascista, como afirma Barthes, porém o modo como o falante se inscreve nela pode produzir resistência à ordem estabelecida.
A rebelião do desejo
Durante as jornadas de junho de 2013 circulou nas redes sociais uma releitura do quadro A traição das imagens (1928), de René Magritte, conhecida como Isto não é um cachimbo. A releitura apresenta a imagem de quatro moedas de 5 centavos e abaixo a frase “Ceci n’est pas vingt cents”. Indiretamente, “Isto não são vinte centavos” indica que a luta não era somente contra o aumento da tarifa de ônibus, mas fica um não dito sobre o que de fato se quer. O que fica sem dizer é o motor do jogo da diferença, é a força que impulsiona a tomada das ruas.
Aqui podemos recorrer à fórmula freudiana: o que não é simbolizado o sujeito repete em ato. A multiplicidade de manifestações – dos 20 centavos ao “o gigante acordou” – é o desejo colocado em ato, já que os enunciados, muitos deles em cartazes, apontam para uma generalização sem explicitar as causas da tomada das ruas. A potência das manifestações de junho de 2013 estaria nessa pressão social não simbolizada, mas que se apresenta em ato.
Em uma imagem da multidão nas ruas com cartazes levantados, pode-se ler “Me organizando posso desorganizar”, uma referência à música Da lama ao caos, de Chico Science e Nação Zumbi, mas basta deslocar um pouquinho o olhar para encontrar “Verás que um filho teu não foge à luta”. Deslocando um pouco mais encontramos ainda o cartaz “Vocês não contavam com nossa astúcia”, como se o autor tivesse lido a aventura de Ulisses na ilha dos ciclopes, que, como vimos, com “astúcia” conseguiu enganar o gigante nomeando a si mesmo de “Ninguém”. Não há coerência; é uma rebelião de desejos em cena.
A tomada do Congresso
Em uma imagem dos protestos de junho de 2013, manifestantes ocupam a marquise do Congresso Nacional, em 17 de junho, de onde se ergue a taça gigante de concreto – a taça do desejo. O protesto acontecia aos gritos sem que ecoasse uma bandeira de luta. Enquanto os braços eram erguidos com objetos às mãos diante das luzes, o espetáculo das sombras cobria a taça. O que se via era uma anamorfose dos sujeitos, como se eles mesmos estivessem elididos diante de suas projeções. O prédio, símbolo da democracia, estava tomado pelas sombras, que olhavam para os espectadores.
Essa fotografia, na qual as sombras ganham centralidade, funciona como metáfora do desejo que não se revela totalmente à consciência. Os manifestantes quase somem diante das grandes sombras que se projetam. Assim, devemos inverter o olhar: são os manifestantes que se projetam a partir do desejo. O centro da análise passa para a rebelião do desejo, porque o Estado, os partidos, os jornais, as centrais sindicais, as organizações não governamentais perderam o domínio, mesmo que buscassem desesperadamente o controle da narrativa sobre o que acontecia.
A defecação no Congresso
O retorno às jornadas de junho de 2013 vem após sucessivos eventos traumáticos: a criação de movimentos neoconservadores – como o Movimento Brasil Livre, fundado em 2014 –; o golpe político-jurídico-empresarial à presidenta Dilma Rousseff, em 2016; e a ascensão da extrema-direita ao poder depois da vitória de Jair Bolsonaro nas eleições de 2018. Isso leva-nos à gangorra entre a rebelião do desejo e os modos como se deu a apropriação das narrativas para determinar os rumos da política e da economia.
A imagem que melhor sintetiza 2023 foram os ataques, no dia 8 de janeiro, ao Palácio do Planalto, ao Congresso Nacional e ao Supremo Tribunal Federal por apoiadores do ex-presidente. Depredaram o patrimônio público e, literalmente, defecaram nele. Um bolsonarista agacha-se sobre uma mesa do Congresso Nacional e despeja sua “obra”.
A cena aponta para a fase arcaica da vida. Faz parte do aprendizado de uma criança controlar seu esfíncter anal. Nesse processo, a criança chama com euforia seus pais para mostrar sua “obra”, as fezes. No caso do 8 de janeiro, esse gesto foi realizado tardiamente, na vida adulta, com os vídeos gravados e transmitidos pelos apoiadores do ex-presidente. Seria um presente para Bolsonaro? No plano consciente, a mensagem está clara: estamos cagando para o Congresso; ou estamos cagando para a democracia.
José Isaías Venera é jornalista e professor do PPGE da Univille.
Excelente artigo onde analisar os 10 anos das jornadas de 2013, passando pela memória da ascensão do neofascismo a brasileirado elencando o golpe de 2016, o desgoverno do Temer e a ascensão bolsonarista e o agravamento da democracia brasileira.