A resistência pela criação
A engrenagem tecno-econômica projeta-se a partir de três causas, sempre tensas: o desejo, que se dissemina por mimetismo; o desempenho, que permite comparar, singularizar e “transcender”; e a liberdade, capaz de superar quaisquer obstáculos…Roger Lesgards
A entrada no novo século transcorre sob o império da eficiência, do desempenho e da lógica financeira e consumista. Numa iniciativa totalizadora, a engrenagem tecno-econômica tende a absorver tudo ? inclusive, a cultura ?, impondo seus códigos, seus signos e suas linguagens, moldando os imaginários individuais e coletivos, mobilizando inteligências e opiniões e conquistando corpos e espíritos, para melhor os recrutar e os dispensar, conforme a sua vontade1 . Trata-se de uma engrenagem voraz, que vai além dos domínios do econômico e do técnico.
Essa engrenagem projeta-se a partir de três causas, sempre tensas: o desejo, que por definição jamais é satisfeito ? e que se dissemina por mimetismo; o desempenho, ou seja, a ação em seu estado de maior intensidade, que permite, simultaneamente, comparar, singularizar e “transcender” ? como se diz nos meios esportivos; e a liberdade, palavra que emprega apresentando-se como movimento libertador, sem normas rígidas, capaz de superar quaisquer obstáculos…
As dimensões de uma cultura crítica
Baseia-se também numa sociedade restrita a um simples agregado de indivíduos, a qual, para crescer e se tornar atraente, deve ser desigual e excludente
Essa ideologia sedutora pretende representar um humanismo. Na realidade, ela se baseia na concepção de um homem medíocre, conformista e dócil, um homem também fragmentado, a quem ela solicita que seja, alternadamente, um produtor eficiente, um consumidor diligente, um animal comunicativo e um conjunto de órgãos passíveis de serem manipulados. Baseia-se também numa sociedade restrita a um simples agregado de indivíduos, a qual, para crescer e se tornar atraente, deve ser, estruturalmente, desigual e excludente. Sua ação se faz exercer por meio das tecnologias da informação e da comunicação ? da televisão à Internet ?, que tocam os respectivos acordes nos três registros acima citados e, supostamente, preparam uma sociedade ideal, nec plus ultra, de acesso ao saber, à transparência e à democracia!
Diante dessa invasão, é urgente dar um conteúdo vigoroso à noção de cultura, pelo menos em cinco das suas dimensões:
o aprendizado e o exercício do pensamento crítico, assim como o raciocínio da emancipação, que trabalha permanentemente sobre certezas prematuras, idéias prontas, sobre o pronto-para-pensar e o pronto-para-acreditar2 oferecidos pelos gurus do momento;
a criação de suportes simbólicos (linguagem, obras de arte) em que se exerçam o imaginário, a sensação, a sensibilidade, a emoção, a paixão; sempre na perspectiva de uma visão do mundo, da vida, da morte, do passado, para ser possível constituir uma representação tão coerente quanto possível do tempo e do espaço;
a aquisição e a troca de saberes (e, portanto, de algo relacionado com o real, com a busca da verdade) como produto da experiência humana acumulada;
a relação com o outro, com o diferente, com o diverso; a comunicação (no sentido de exercer em comum) de uma construção permanente de si, por e com o outro, e também frente a esse outro;
a relação com o belo, expressão de uma subjetividade (de um sujeito suficientemente livre para se entregar a uma opinião, a um prazer, a uma consciência) e também de tensão para com um universal. O belo como reinvenção permanente da relação entre o sensível e o inteligível.
A esperança de uma nova visão do mundo
Que tipo de política cultural é hoje possível a um Estado-nação situado na Europa e aberto a influências e tendências dos quatro cantos do mundo?
Eis, portanto, a questão central: como conseguir que essa concepção de cultura retome a iniciativa? E, especificamente, que tipo de política cultural é hoje possível a um Estado-nação situado na Europa e aberto a influências e tendências dos quatro cantos do mundo? Poderíamos partir de duas idéias básicas. A primeira seria a de tentar forçar o tecno-econômico, levando-o ao ponto crítico e subvertendo-o pelo poético, isto é, pela criação artística. Do que se trataria? Em primeiro lugar, investir no campo a ser explorado, roubando-lhe o que possa ter de favorável a um renascimento da criação. Ou seja: quase sempre num processo de o desviar, subverter, “esquerdizar”. Mas também enfrentá-lo de frente, resistindo às suas iniciativas de exploração e sedução (a técnica como nova magia). Investir, desviar, resistir: três verbos ativos cujos sujeitos são, aqui, crítica e criação.
Crítica? A palavra deve ser entendida no sentido de uma análise do discurso e da prática, inclusive o exercício do raciocínio, especialmente quando este for técnico ou instrumental. Trata-se de isolar as técnicas galopantes de uma gangue ideológica que pretende que elas são o veículo de uma revolução e que dirigem, de forma irresistível, o movimento das coisas. O pensamento crítico deve provocar um trauma, uma descontinuidade, uma possibilidade de reconfiguração. Resumindo, a esperança de que se componha uma nova visão do mundo que não parta do ponto de vista tecno-lógico.
Cultura como fator de aproximação
Importante, também, é tomar a cultura como fator de aproximação entre os seres humanos, procurando a igualdade, a fraternidade, uma compreensão mútua
E é nesse trauma que entra (e age) a criação artística. Não é fato que ela anuncia e negocia objetos únicos, originais, em ruptura com a tradição? Objetos que prenunciam novos horizontes e, ao fazê-lo, participam da criação do mundo dos homens? A arquitetura, a poesia, o teatro, a literatura, a música, a dança, as artes plásticas, o cinema ? tudo isso tem seu lugar. Com a pesquisa científica, evidentemente, desde que ela se lembre que sua principal vocação não é a de servir o economismo ou se erigir em moral, e sim de contribuir com novos conhecimentos, compartilhá-los, desenvolvendo uma das vias que levam à busca da verdade. Apoio à criação em toda a sua diversidade: essa seria a premissa básica.
A segunda idéia seria tomar a cultura como fator de aproximação entre os seres humanos, procurando a igualdade, a fraternidade, uma compreensão mútua e, portanto, um instrumento de luta contra a rejeição étnica, a recusa de si, a recusa do outro, a discriminação social, o racismo. A França (e não só nos subúrbios) e a Europa (e não só nos Bálcãs) têm grande necessidade de idéias, de momentos, de lugares de reencontro. Ocorre que é justamente a tentação do contrário que vem ganhando terreno: aqui, sob a forma de etno-centrismo (minha cultura é superior à sua, e, portanto, eu a imponho); ali, sob a da purificação, da segregação, da discriminação, do nacional-populismo e do racismo.
A Coca-Cola, os jeans, a Nike, a Microsoft e mesmo a Internet e as redes de ondas e de satélites que inundam o mundo com imagens e sons não conseguirão inverter o fluxo da corrente. Será a nossa capacidade de estarmos ao lado do outro, de nos abrirmos ao outro, de reconhecê-lo como parte de nós mesmos, que o fará. Em outras palavras, nos conduzirá a responder, da forma mais positiva que for possível, à pergunta que fazia Cornelius Castoriadis: “Será possível que um homem, e uma sociedade, se possam construir sem se opor ao Outro, sem o rejeitar e, em última instância, sem o odiar?” (Trad.: Jô Amado)
1 – Ler, de Dany-Robert Dufour, “As angústi