A resistível ascensão de Ronald McDonald
A frivolidade do fast-food contrói-se contra a majestade da haute cuisine. Cada um serve o discurso simbólico do outro, e graças a eles a França e os Estados Unidos apresentam-se assim ao mundoRick Fantasia
Tudo denota, nos restaurantes da cadeia McDonald’s, a encarnação do estilo neoliberal norte-americano: sua estratégia global, sua arte impagável da fórmula, os excessivos gastos de seu estilo promocional, seu processo de trabalho ultra-racionalizado (controlado pelo gênio de um sistema contábil informatizado capaz de vigiar a produtividade de cada uma das caixas registradoras, em cada um dos seus restaurantes, onde quer que estejam no planeta), a posição que ele ocupa no interior de um sistema de agricultura industrial capaz de levar pequenos agricultores à ruína. A fotonovela popular da Confédération Paysanne, com David empurrando o gigante Golias norte-americano e tendo ao fundo a França do interior pode ser uma arma útil. Mas uma descrição demasiado simplificada oculta trechos importantes da história. Isso porque McDonald’s situa-se no centro de instituições e de forças sociais que evoluíram em ligação com a empresa.
Com um pouco de distância, a visão que se impõe é menos a de um intruso ameaçando um pacífico freguês, que a da convergência das forças locais da “americanização”. E o neoliberalismo à norte-americana não aparece então como um chato grosseiro e inoportuno, mas antes como um novo freguês instalando-se discretamente e impondo-se pouco a pouco graças à erosão das resistências autóctones e às “reformas” que se infiltram nas fendas e interstícios das instituições e dos costumes locais.
Fast food à la francesa
Na França a indústria de fast-food foi primeiramente desenvolvida por empresas francesas, que procuravam vencer as norte-americanas no seu próprio jogo. McDonald’s apareceu na França no início dos anos 70, no momento em que outras cadeias norte-americanas (hotéis, limpeza comercial, conselho fiscal) se instalavam na Europa para contornar o aumento do custo do trabalho e a saturação do mercado nos Estados Unidos. McDonald’s não foi a primeira cadeia de fast-food que começou a operar na França (precederam-na marcas como “Crip Crop”, “Dino Crop”, “Chicken Shop”, ou ainda a britânica “Wimpy”).
Até 1982, mesmo se o nome McDonald’s era famoso nos meios de negócios, seu verdadeiro papel comercial permaneceu pequeno na França. Há dez anos, 80% dos estabelecimentos de alimentação rápida ainda pertenciam a investidores franceses ou europeus. Empresas francesas abriam numerosos restaurantes com ar norte-americano — tais como Magic-Burger, France-Quick, Free Time etc. — e ofereciam hambúrgueres e outros produtos associados aos Estados Unidos. Estes produtos eram preparados por empregados em tempo parcial, trabalhando em uma cadeia de agregados informatizados, e eram condicionados, anunciados e vendidos como produtos norte-americanos em restaurantes onde tudo — o projeto, a organização e a decoração — parecia inspirar-se no modelo norte-americano de fast-food. [1]
A conversão da “haute cuisine”
Os responsáveis pelos grupos mais atuantes nesse setor (turismo, hotéis, cadeias de restaurantes, mercearias, supermercados e indústria agro-alimentar), respeitosos da cultura comercial norte-americana — e em particular da de fast-food —, tinham sido freqüentemente educados no espírito de uma oposição ao estilo de organização das empresas familiares francesas. O choque com a tradição francesa da haute cuisine não poderia ser evitado.
A haute cuisine tinha como defender-se. Um complexo emaranhado de órgãos públicos e privados reunindo fundações, associações e museus das artes culinárias garantia-lhe o respeito às tradições. Ela escreveu sua própria crônica através de diversos rituais — recompensas, prêmios, cerimônias, sistema de exibição — que mostram aqueles que são dignos de pertencerem a este cenáculo. Não poupa os óleos litúrgicos aplicados para dissimular sob um verniz histórico seus objetivos comerciais ou promocionais. Os guardas do templo — revistas, guias, jornais e jornalistas especializados — alimentam a sua fé nas vedetes do guia Michelin, na novela dos produtos da terra e o culto da linhagem (Vergé besunta Ducasse, que aduba Solivérès).
A majestade da haute cuisine constrói-se contra a frivolidade do fast-food. Cada um serve o discurso simbólico do outro, graça aos quais a França e os Estados Unidos se apresentam assim ao resto do mundo. Em princípio, os fundamentos da haute cuisine não poderiam senão afastar-se da lógica do mercado de massas (padronização, grandes volumes, menores custos, caráter informal) e das exigências da produção que tornam estes mercados possíveis (racionalização, polivalências, flexibilidade do trabalho e controle de seu custo). Todavia a barreira tornou-se cada vez mais porosa, permitindo um movimento de um em direção ao outro.
Homenagem aos congelados
Primeiramente os grandes grupos industriais souberam crescer: adquiriram as cervejarias e os restaurantes independentes: Lipp, La Coupole, Maxim’s, Le Balzar; associaram assim o prestígio dos nomes dos grandes chefs da cozinha, o que lhes permitiu valorizar a imagem de seus produtos congelados, cadeias de restaurantes, programas televisivos, livros de receitas, vinhos etc. Estes grupos, que penetraram no recinto sagrado em busca de lucros imediatos, envolveram-se também no trato e na reprodução do patrimônio culinário. Contribuíram para financiar e administrar a Fundação de Brillat-Savarin (que procura lutar contra as forças da homogeneização) e patrocinaram o Chef of the Year Award, uma recompensa outorgada cada ano pela revista Le Chef Magazine, um dos principais veículos da profissão. O número dessa revista em que Alain Ducasse recebeu a recompensa de Chef of the Year, relatava os prêmios concedidos aos produtos alimentares industrializados (foram homenageadas as empresas Daregal, pelas suas “ervas aromáticas congeladas”, Mikogel, por seus “mini-bavarois”, Sopad-Nestlé, por “pratos sem cozimento” e Uncle Ben’s, por suas “saladas de sabores”).
As condições estão assim criadas — no campo gastronômico — para permitir que os que dispõem de um certo prestígio o rentabilizem. Uma vez instalado no topo do guia Michelin, o grand chef de cozinha vê-se outorgar um poder igual ao de um alquimista. Tudo se torna fonte de lucro potencial, mesmo o objeto mais prosaico (um avental, um livro de receitas, um bar). Um Bocuse, um Robuchon, um Loiseau podem assim negociar a sua assinatura e o seu nome abrindo, por exemplo, um barzinho ao lado do seu restaurante três estrelas. Pois uma vez adquirida a sua terceira estrela, o discurso do chef produz uma mudança radical e passa de uma retórica sobre a “pureza”, a “excelência”, o “tempo que não conta”, a um discurso sobre a acessibilidade e a democracia (“todo mundo deveria poder saborear as maravilhas de nossa cozinha”).
Padronização corrói cozinha artesanal
Os que consagraram suas carreiras à santificação da haute cuisine convertem-se ao mercado, encorajados pela urgência de pagar os empréstimos necessários para a renovação dos restaurantes — pressionados pela busca de uma terceira estrela. Antiga e vulnerável depositária dos valores artesanais e tradicionais, mundo preservado da degradação e da homogeneização do fast-food, a haute cuisine é menos protegida das forças da “americanização” do que proclama. Nem os frutos da terra escapam mais à padronização.
Ora, a padronização elimina aquilo que é íntimo, corrói o vínculo artesanal entre cozinha e região. A partir daí, o imperativo que rege McDonald’s, como a todas as cadeias comerciais, impõe que cada unidade seja mais ou menos idêntica às outras, onde quer que se encontre, sua localização não tendo qualquer importância. Elas nunca são “especiais” em relação ao papel que fazem. Em qualquer lugar, os produtos, o projeto e os métodos de trabalho do restaurante fast-food são estranhos àquilo que é a particularidade do local. Só a força de trabalho continua a obedecer a leis específicas. A idéia francesa de produtos da terra coloca a região e o lugar de onde provêm no coração do imaginário cultural. A idéia norte-americana de fast-food tende a dissolvê-los. Mas encontrou seu lugar na paisagem francesa.
A “americanização” da paisagem interiorana
A partir de 1989, a cadeia McDonald’s abre cinco novos restaurantes por mês na França. Os 150 restaurantes de 1989 tornaram-se 760. A maior parte das outras cadeias de alimentação rápida desapareceram. Nos últimos dez anos a cadeia norte-americana voltou-se para as pequenas cidades — o que explica sua presença em Millau, onde foi “desmontada” por José Bové — e subúrbios periféricos. É lá que os últimos restaurantes rápidos surgiram, a metade deles dotada de um drive-in window, o que permite fazer o pedido e receber o produto sem sair do automóvel. Nesses casos, McDonald’s encontra-se em seu “habitat natural”, naquilo que foi, em dado momento, o ecossistema comercial norte-americano por excelência.
Mas as “zonas comerciais” que se desenvolveram na França nos últimos quinze anos recriaram, no país que preza a cultura do interior, esses subúrbios norte-americanos do pós-guerra que foram a origem do fenômeno do fast-food. Essas zonas comerciais ocuparam as encostas dos eixos rodoviários mais frequentados, no caminho da periferia para o centro urbano, sobrepondo a estética de Las Vegas ao velho panorama do subúrbio. Trata-se de “zonas” desregulamentadas, que se estendem ao longo de quilômetros, ocupadas por outdoors publicitários de criatividade duvidosa anunciando concessionárias de automóveis, grandes espaços dedicados à decoração, ao “pegue-e-faça” e à jardinagem, hotéis e restaurantes fast-food. As cores e os estilos arquitetônicos das lojas “Conforama”, “Castorama”, “Monsieur Meubles” e outros “Messieurs” do tipo criam uma cacofonia visual tão ostentatória quanto aquela que se encontra nos Estados Unidos. Eis ali um verdadeiro “Chernobyl cultural”.
Uniformidade garante reconhecimento
É precisamente a falta de originalidade destes lugares que os distingue dos outros. Sua uniformidade garante que serão reconhecíveis pelos consumidores das cidades de Metz, Biarritz ou Millau, já que é a própria estrutura do edifício que facilita o seu reconhecimento de longe, mesmo rodando a grande velocidade, já que o acesso só é possível de automóvel. E como as zonas comerciais tendem a se parecer ou a reunir o mesmo tipo de comércio uma da outra, contribuem, com sua presença, para desgastar o caráter distintivo do local. Nos Estados Unidos este tipo de “desenvolvimento tentacular” foi tão implacável que provocou uma reação violenta. E os “novos urbanistas” fazem da “grande praça européia” o centro de seu modelo de desenvolvimento equilibrado… [2]
O fenômeno da urbanização periférica constitui uma peça importante do quebra-cabeças do capitalismo desregulamentado: sustenta a versão francesa da crença norte-americana numa “sociedade sem classes”, uma versão disseminada entre o grande público pela difusão contínua de informações sobre o consumismo dos assalariados franceses, o aumento do número de proprietários, o desinteresse pela política, a diversificação dos modos de vida etc. Esta representação social tende a se impor graças a essas “novas aldeias” dotadas de seus supermercados, lojas de equipamentos esportivos e de jardinagem, todos prontos para satisfazer as necessidades privadas dos “indivíduos soberanos” que aí residem. Na França, contrariamente aos Estados Unidos, esta visão simplificada da morfologia social permanece todavia contestada por entidades alternativas que colocam a coletividade e a solidariedade em primeiro lugar e sustentam as lutas reivindicatórias muitas vezes articuladas em nível nacional.
“Trabalhador” dá lugar ao “consumidor”
A imagem da sociedade encarnada pelo fenômeno do urbanismo periférico francês tem justamente por contraponto a visão utopista oferecida por McDonald’s, Mickey e outras formas da cultura de massa norte-americana. A saber, um mundo suspenso acima das divisões de classes. A julgar pela experiência dos Estados Unidos, a empresa participa do projeto social neoliberal em seu sentido amplo, que exige a liquidação virtual do símbolo “trabalhador”, aliada à promoção simultânea do sujeito “consumidor”, em torno do qual se organiza toda a vida econômica.
Nos Estados Unidos isso desembocou numa proliferação de “direitos” reservados ao consumidor — a “liberdade” de escolher, de obter um crédito, de comprar a qualquer hora do dia e da noite, bem como a qualquer dia e, de modo geral, de se beneficiar, em matéria de comércio no varejo, de um nível de “comodidade” de tal modo extenso que se torna absurdo. E tudo acompanhado de uma dissolução correlativa e sistemática dos direitos dos trabalhadores (trabalho precário, horas-extras, vigilância no local do trabalho, diminuição de vantagens sociais, caça aos sindicalistas, questionamento do direito de greve [3]). Pois a flexibilização total do tempo de trabalho condiciona a existência de espaços para fazer compras nos momentos antes reservados ao lazer ou à família (domingos, férias e noites).
Este projeto ideológico e econômico de conjunto está mais avançado nos Estados Unidos do que na França. A análise do “sistema McDonald’s” permite, entretanto, compreender que o neoliberalismo não provém, em primeira instância, de uma particularidade nacional, mas sim de práticas sociais. E nessas condições, a “americanização” é tão perigosa nos Estados Unidos quanto em qualquer outro lugar.
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