A riqueza dos pobres contra a pobreza dos ricos
Na crise financeira atual, a figura central do “pobre” aparece em toda a sua potência. Temos agora uma multiplicidade de sujeitos – trabalhadores dos serviços e usuários, estudantes, imigrantes e desempregados – com diversas formas de luta: greves, manifestações, piquetes nas estradas e levantes quase insurrecionais.
Se houvesse um momento mais importante que outros para pensar politicamente as dinâmicas, impactos e importância dos movimentos sociais, o ano de 2009 não poderia ser mais adequado.
Essa pertinência conjuntural é aquela da crise do capitalismo financeiro. Os trilhões de dólares despejados (nos Estados Unidos e no mundo todo) em diversos planos de socorro destinados a evitar a falência do sistema mundial do crédito e o desmoronamento geral da atividade econômica global, não respondem a nenhum modelo de política econômica e ainda menos a algum projeto de sociedade. O horizonte dos possíveis está aberto e indeterminado. Muito vai depender do que a práxis dos movimentos e das lutas sociais será capaz de constituir.
Ao mesmo tempo, quando pensamos os movimentos sociais contemporâneos, deparamos logo com sua dispersão. O dinamismo e a centralidade incontornável dos movimentos sociais se fazem acompanhar, hoje, de uma série de enigmas teóricos e políticos. Quando e como as lutas dispersas do dia-a-dia convergem em uma grande onda irresistível capaz de uma transformação radical, uma mudança de época, algo que de outra vez chamávamos “revolução”? Para avançar precisamos pensar os movimentos contemporâneos à luz do último grande ciclo de lutas capaz de fechar uma época e abrir o horizonte dos possíveis: o movimento de 1968.
O assalto contra a sociedade disciplinar
O movimento de 1968 se caracterizou pelo encontro entre as lutas dos operários industriais contra a alienação das tarefas repetitivas e a recusa dos estudantes de reproduzir socialmente esse mesmo sistema baseado na hierarquização do trabalho entre execução manual e concepção intelectual.
Na ocupação das faculdades, nas barricadas, na generalização da greve operária, novíssimas formas de vida se expressavam com ironia e deboche, ou seja, pela inversão dos papéis e dos valores, pela mesma experimentação festiva e alegre dos carnavais populares.
A novidade de 1968 foi também não ser o fato de uma figura de “classe” hegemônica e, sim, juntar num mesmo potente ciclo uma multiplicidade de singularidades: estudantes, jovens, operários, mulheres etc. Todos esses movimentos convergiam em uma única grande revolta contra todos os muros da sociedade disciplinar, fosse ela abertamente patriarcal, como no caso das relações de gênero ou entre as gerações, ou fabril, como nas relações tayloristas de trabalho, nas usinas francesas ou nos estaleiros da Polônia.
No movimento de 1968 havia os germes de um novo tipo de lutas, afirmativas e potentes: o enfrentamento dessa ordem (disciplinar) funcionava, para além do espaço fabril, como um poderoso dispositivo de unificação.
A ideologia neoliberal que se tornou hegemônica no final dos anos 1970 visava capturar e desviar exatamente os valores libertários que vinham do movimento de 1968. A crítica ao trabalho disciplinar de tipo fabril e à subordinação do consumo à produção padronizada foi revertida, por um lado, na difusão social da produção e, pelo outro, na articulação da valorização dentro do próprio processo de circulação. O trabalho se tornou cada vez mais flexível (quer dizer, articulado para dentro e para fora das relações formais de emprego) e os trabalhadores precarizados: em uma produção sistematicamente terceirizada e deslocalizada.
Essas transformações não tinham como objetivo a mera restauração da disciplina industrial abalada pelas lutas de 1968, mas a reorganização da exploração pela passagem a outro tipo de acumulação. O capital passou a explorar outro tipo de trabalho.
No cerne dessa exploração temos, pois, o conhecimento, os afetos, a linguagem, quer dizer, a vida como um todo, bem nos moldes da telefonia móvel que explora nossas relações sociais, colocando um celular no bolso de todo o mundo: desempregado ou empregado que seja. Daí as privatizações dos serviços públicos: a distribuição de água, luz, moradia, educação, estradas e, evidentemente, a telefonia. Daí o embate para o controle privado dos direitos autorais e das patentes. Mas, se toda a nossa vida é posta para trabalhar, apenas continua a ser reconhecido (e remunerado) como produtivo aquele tempo de trabalho – cada vez mais escasso e precário – que coincide com o emprego formal.
A acumulação se tornou, assim, expropriação parasitária do tempo de trabalho excedente e, sobretudo, das “excedências” de vida: significações, conhecimento, cultura. O Capital é um Biocapital, – paradoxalmente – inclusivo e, por isso, global. Não é mais preciso “incluir” o pobre excluído no trabalho assalariado formal para explorá-lo, pois todo o mundo é mobilizado em sua diversidade (cultural) e fragmentação (social), em qualquer lugar que se encontre.
A crise financeira do Biocapital
Temos aqui toda a dimensão da crise financeira. A poupança da coletividade (em particular dos Fundos de Pensão) foi mobilizada para financiar os gastos públicos. Isso determinou: (1) a privatização da criação monetária; (2) a transformação dos direitos (dos serviços públicos) em mercadorias às quais os pobres terão acesso por meio do crédito; (3) enfim, a implementação de uma nova tecnologia de poder.
O direito se torna um débito, e o crédito aparece como solução ilusória do inevitável descompasso entre precarização do trabalhador e um trabalho cuja qualidade depende do acesso aos serviços de educação, saúde, moradia, telefonia, transporte, isto é, as redes cada vez mais vastas e abrangentes de welfare.
Como “poupador”, o trabalhador cuja poupança é investida – por seu Fundo de Pensão – em obrigações e ações aderirá às pressões para que o retorno dessas aplicações seja o maior possível. Como trabalhador, ele será vítima dessas pressões sobre suas condições de trabalho e remuneração. Uma esquizofrenia que se desdobra, fragmentando a composição social do trabalho, na medida em que os empregados dos setores “protegidos” da grande indústria ou da administração pública, por um lado, têm condições de financiar os gastos sociais (comprando obrigações) e, pelo outro, terão interesse cada vez maior em normalizar a vida dos pobres que precisam do welfare.
Temos aqui os elementos para entender as bases eleitorais do populismo neoliberal e, ao mesmo tempo, o declínio do movimento sindical e dos tradicionais partidos de esquerda. Um declínio tão mais violento quanto sua obstinação em organizar unicamente os interesses do trabalho industrial.
O Biocapital deve necessariamente assumir como já dadas as dimensões produtivas da vida. Assim, seus lucros não são injustos só porque reduz o trabalho a fator de produção (como era o caso no regime industrial), mas porque o principal fator produtivo é uma cooperação social que precede a relação de capital. Por isso, no novo regime de acumulação, os preços do pulso do telefone celular ou da assinatura da TV a cabo, bem como as tarifas de água, luz, gás, moradia, transportes ou o copyright dos softwares são politicamente determinados.
Assim, o Biocapital está preso a uma nova e violentíssima contradição: aquela na qual se encontram as concessionárias privadas de serviços públicos no Brasil. Elas devem pressupor (e não mais determinar) a cooperação produtiva entre redes técnicas de distribuição e redes sociais. Se nas favelas não se paga e se multiplicam os “gatos”, não há como “demitir” as famílias e os moradores, nem como “cortar” os serviços. O Biocapital não emprega os pobres senão de maneira precária (pois os inclui mantendo-os excluídos), mas também não tem como demiti-los! A crise do subprime foi uma tentativa de resolver esse descompasso, atribuindo aos pobres um poder de compra que não tinham para adquirir sua própria moradia e espalhando o risco subsequente em todo o sistema bancário.
As lutas dos pobres e o “fazer multidão”
Na crise, o Biocapital está nu. A figura central do “pobre” aparece em toda a sua potência. Precisamos apreender a centralidade produtiva da figura do “pobre” no horizonte político desenhado pelas suas lutas.
Com efeito, o capitalismo global e financeiro mobiliza a sociedade por fora e para além da relação salarial. Trata-se, como dissemos, de um regime inclusivo, pois ninguém e nenhum lugar ficam de fora. O Biocapital, por um lado, precariza sistematicamente o emprego (quer dizer, reduz suas formas de proteção e o descola de qualquer forma de integração social) e, pelo outro, mobiliza os excluídos enquanto tais, enquanto pobres: informais, precários, desempregados, imigrantes estrangeiros, ilegais, jovens, índios, negros, mulheres. A telefonia móvel é o paradigma desse regime de acumulação que investe a vida como um todo. A difusão das relações de crédito e débito constitui sua tecnologia de poder: o Biocapital explora nossas relações sociais vitais e nos governa pela modulação infinita de inclusão e exclusão que nos reduz a fragmentos (individuais) que competem entre si no mercado.
Diante disso, as principais lutas dos últimos 15 anos aparecem sob nova luz. Nelas reconhecemos uma nova composição social dos movimentos: a greve metropolitana contra a privatização dos transportes na França (em 1995): a guerra da água em Cochabamba (em 2002); os movimentos endêmicos dos secundaristas das maiores cidades brasileiras em defesa do passe livre nos transportes coletivos; o movimento do copyleft em prol da socialização do conhecimento. As lutas dos imigrantes ilegais nos Estados Unidos ou na França; as organizações dos piqueteros argentinos; a insurreição das periferias francesas; as ocupações dos trabalhadores sem-terra no Brasil; as reivindicações dos povos indígenas e do movimento negro e quilombola. Temos uma multiplicidade de sujeitos: trabalhadores dos serviços e usuários; estudantes; moradores; imigrantes; desempregados; jovens de origem estrangeira. Por sua vez, também as formas de luta são múltiplas: greves, manifestações, piquetes nas estradas, levantes quase insurrecionais e redes de produção.
Ora, a multiplicidade não é um obstáculo para que esses movimentos organizem sua autonomia e encontrem algumas convergências de novo tipo. Lembremos as grandes mobilizações mundiais para reivindicar nova governança global: foi o caso em Seattle e Gênova; assim como nas oceânicas manifestações contra a segunda guerra do Iraque.
As várias edições do Fórum Social Mundial continuam sendo o teatro desse debate. Ao mesmo tempo, é na América do Sul que esse conjunto de lutas de novo tipo conseguiu definir um terreno de inovação constituinte que atravessa quase todos os seus governos progressistas, embora não se resolva neles. É o devir-indígena da Bolívia e do Equador, a defesa da mudança “bolivariana” pelas multidões metropolitanas de Caracas, o reconhecimento das organizações piqueteras argentinas e, enfim, o devir-pobre que qualifica, para além da sua moderação e ambiguidade, as políticas públicas dos governos Lula: desde as de distribuição de renda até as de acesso dos pobres e dos negros ao ensino superior, passando pela demarcação das reservas indígenas e as políticas culturais radicalmente democráticas.
A especificidade sul-americana está na centralidade da figura do pobre! Se o Biocapital subordina os pobres como tais, as lutas dos pobres se transmutam. Eles não precisam mais entrar na armadilha da reivindicação de um emprego, nem na procura de sua homologação nacional. Em suas lutas, os pobres são muitos e podem continuar a sê-lo de maneira ainda mais rica, não apenas porque são numerosos, mas porque são diferentes e essa diferença é a riqueza dos pobres. Mais uma vez se manifesta sua mobilização produtiva sem aquela homogeneização fabril que o emprego assalariado determina, o que lhes permite afirmar suas diferenças: é o caso da luta dos negros por políticas afirmativas e dos indígenas pelo reconhecimento de suas terras, dos favelados pelo reconhecimento de seu trabalho de autoconstrução do espaço urbano.
Enfim, tudo isso indica um devir-pobre da política, isto é, uma política da multidão: um devir-negro, mulher, indígena que desdobra a multiplicidade dos movimentos no âmbito da cultura e do conhecimento, dando cidadania às cosmologias ameríndias bem como aos sincretismos afro-americanos que permitem romper com a modernidade capitalista e a relação instrumental que ela determina entre homem e natureza.
Essa política da multidão não poderá afirmar-se sem amadurecer em termos de um projeto capaz de se constituir, dentro da crise global do Biocapital, em uma alternativa radical. Na multiplicidade das figuras e das lutas de um trabalho que corresponde aos próprios modos de vida podemos apreender uma multidão produtiva e radicalmente democrática, quer dizer – como diz Negri –, um conjunto de singularidades que cooperam entre si se mantendo como tais.
Mas, a multidão não é uma condição sociológica e, ainda menos, o resultado do determinismo das tecnologias de redes. Sem o “fazer multidão”, o que temos é o governo biopolítico dos fragmentos dentro da modulação infinita das relações de inclusão e exclusão.
A crise nos obriga a enfrentar esse desafio e, ao mesmo tempo, nos revela uma perspectiva política: aquela da alternativa ao mercado e ao Estado que, nos planos de socorro ao sistema financeiro, se revelam como as duas faces de uma mesma dinâmica da exploração. A alternativa é aquela indicada pelas próprias lutas: a defesa e a constituição de uma nova propriedade (da terra, dos serviços, da moradia, do conhecimento) e de uma nova distribuição da renda (uma renda universal de cidadania que reconheça a dimensão produtiva da vida como um todo), algo que chamamos de comum, a base comum da cooperação das singularidades.
A constituição do comum é o horizonte de luta pela afirmação da riqueza dos pobres, diante da pobreza dos ricos e seus bancos quebrados. Essa riqueza é potência de significação, afirmação de uma poética da vida, o “fazer multidão” contra o prosaísmo insensato do neoliberalismo e de sua socialização antissocial.
*Giuseppe Cocco é professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e é autor, entre outros, de GLOBAL – Biopoder e luta em uma América Latina globalizada (Record, 2005), escrito em conjunto com Antonio Negri.