A rota do parto para as mulheres de Fernando de Noronha
Apesar de ser reconhecido pelos resultados positivos no que tange à redução da morbimortalidade materno-infantil no estado de Pernambuco, o Programa Mãe Coruja encontrava em Noronha desafios outros, os quais emergiam a partir de uma conjunção de impedimentos que levam a gestante noronhense a se deslocar da ilha até o continente para parir
Parece que sou eu, a ilha e um mundo desconhecido se abrindo diante de mim. (Nota de bordo, 24 de setembro de 2018).
Foi com essa frase que iniciei o meu primeiro diário de bordo em Fernando de Noronha. Eu estava certa. Um mundo desconhecido parecia se revelar aos poucos pra mim, e ainda se revela a cada dia que acompanho notícias vindas de lá.
Em setembro de 2018 fui convidada pelo Programa Mãe Coruja Pernambucana[1] para realizar um diagnóstico sociocultural em Fernando de Noronha, a fim de subsidiar a implantação desse programa na ilha. A justificativa principal dessa implantação se deu pelo fato de que o arquipélago de Fernando de Noronha não possui estrutura para realização de partos. Desde então tenho me debruçado a pensar sobre as rotas percorridas pelas mulheres que engravidam em território insular.

Apesar de ser reconhecido pelos resultados positivos no que tange à redução da morbimortalidade materno-infantil no estado de Pernambuco, o Programa Mãe Coruja[2] encontrava em Noronha desafios outros, os quais emergiam a partir de uma conjunção de impedimentos que levam a gestante noronhense a se deslocar da ilha até o continente para parir.
No dia 24 de setembro de 2018, cheguei à Fernando de Noronha para fazer o reconhecimento dos espaços, serviços oferecidos, instalações físicas para o funcionamento do programa e organizar o I Encontro do Mãe Coruja Pernambucana em Noronha, junto à população composta por servidoras/es e moradoras/es que tinham o interesse em construir coletivamente uma proposta adequada à realidade da Ilha.
Nos encontros, que se prolongaram por 02 dias, aspectos como solidão materna, dificuldade de transferência escolar de filhas/os acompanhantes da gestante e até mesmo licença maternidade precoce, ou seja, a concessão da licença maternidade por parte das empresas contratantes antes do nascimento da criança, a fim de viabilizar os três meses de ausência do trabalho no último trimestre da gestação; apareceram como principais problemas apontados durante o encontro. Em outubro dei início à imersão com a qual resultou no diagnóstico sociocultural, fruto da experiência vivida durante 03 (três) meses em que fixei moradia na ilha de Fernando de Noronha.
O distrito estadual de Fernando de Noronha possui serviço de saúde universalizado através do SUS e não conta com clínicas e serviços particulares. No entanto, só possui um hospital público de assistência para ocorrências de baixa complexidade. A inviabilidade da realização de partos na ilha decorre de uma sobreposição de regulamentações, entre elas, o estabelecimento de diretrizes para a instalação de Centro de Parto Normal – CPN –, regulamentado pela portaria nº 11 de 2015 pelo Ministério da Saúde, que deve atender a parturientes classificadas de baixo risco, e preconiza, dentre outras, os equipamentos e equipe mínimos necessários para a realização de partos normais, os quais devem estar localizados a tempo inferior a 20 minutos de distância de uma unidade de referência materno-infantil[3] de média ou alta complexidade.
Fernando de Noronha é um arquipélago de ilhas oceânicas, distante da capital pernambucana a 541 km, sendo 70% da sua extensão territorial configurada como Área de Proteção Ambiental, áreas estas administradas pelo governo federal. O tráfego de pessoas entre o continente e a ilha se dá apenas por avião, que perfaz uma média de 50 minutos de voo. Tempo este que inviabiliza o cumprimento da portaria em tela, dentre outras recomendações para realizar atendimento em caso de intercorrência no parto. Somado a isso, regulamentações ambientais determinam o controle de voos na ilha, sendo impossibilitada a ocorrência de voos noturnos. Em função desses obstáculos, as possibilidades de salvo aéreos que conduzam gestantes, que porventura venham a ter complicações no parto, são nulas nessas condições.
Sendo assim, ao completar 28 semanas de gestação, as mulheres residentes do distrito migram até o continente para aguardar o parto e os primeiros cuidados do puerpério. A determinação de semanas decorre de outra regulamentação, agora pela Agência Nacional de Aviação, que orienta a ocorrência de embarque de mulheres grávidas até às 28 semanas, variando de companhia aérea para o cumprimento deste limite.
Todas essas regulamentações culminam atualmente em itinerários percorridos pelas gestantes para que possam parir no continente, tendo os destinos Recife/PE ou Natal/RN, como os mais recorrentes. Apesar do governo estadual suprir todas as despesas desse deslocamento e, quando apresentada a necessidade, a alocação dessas gestantes em hotéis, esses itinerários comumente são referidos como incômodos por parte das gestantes. Em nome de uma série de regulamentos sobre cuidados, as gestantes se veem impedidas de decidir sobre seus próprios corpos e, assim, onde seus corpos irão parir.
Na sociedade brasileira, mulheres grávidas se transformam num corpo-estado que carrega além do feto, as regulamentações, decisões e coerções à revelia dos seus desejos individuais. Os cuidados estatais borram o poder de agência (Bourdieu, 1984) de corpos grávidos que carregam em si o signo da adequação às legislações vigentes: não pode abortar, não pode embarcar num avião após 28 semanas, dentre outras impossibilidades que invisibilizam o poder de escolha da mulher grávida.
Em Fernando de Noronha, essas decisões regulamentares recaem sobre uma itinerância muitas vezes indesejada. As estratégias de resistências dessas mulheres são muitas, na ilha presenciei gestantes que se negaram a sair do seu território na semana prevista, casos assim, passam a ser encarados como problemáticos, tendo em vista os riscos que são advertidos como o nascimento sem atenção médica apropriada.
Exemplo disso foi o caso da condução coercitiva de uma gestante, para embarque imediato com destino ao continente, para que ela pudesse cumprir as regulamentações que impedem o parto na ilha. A gestante, que havia completado 34 semanas de gestação, gravidez está classificada como de risco habitual, declarou não querer sair de Fernando de Noronha por temer infecção por Covid-19, tendo em vista que àquela altura a ilha tinha zerado os casos de pessoas com o vírus, enquanto no continente os casos estavam em plena subida da curva de contágio, já que era maio de 2020.
Este caso teve repercussão em diversas mídias convencionais, e suscitou uma série de discussões em torno da situação vivenciada pelas gestantes naquela ilha. Acompanhando as notícias vindas de Noronha nesse período pandêmico, percebi o aumento de casos de pessoas infectadas pela Covid-19 após a reabertura da ilha para fins turísticos, reabertura esta que aconteceu no dia 05 de setembro de 2020, quando a administração da ilha havia anunciado que das 94 pessoas infectadas do início da pandemia – meados de março de 2020 – até final de agosto, todas haviam tido alta clínica. Estes casos passaram a aumentar significativamente e até o momento do fechamento deste texto, o registro de casos passou para 151 notificações de pessoas com Covid-19 ao longo da pandemia. Destes, um fato me chamou singular atenção, foi o caso da transferência de um morador de 28 anos para tratamento no continente por insuficiência respiratória aguda, fato este registrado no dia 22 de outubro deste mesmo ano.
Essa situação ilustra o cenário precário quanto ao atendimento de pacientes que demandem de cuidados de média ou alta complexidade. Cabe ressaltar que a questão é estruturante, dada a inadequação do hospital para recepção não apenas de mulheres gestantes, mas de qualquer caso que demande atenção de médio ou alto risco. Todos esses casos são resolvidos com a transferência para o continente das pessoas necessitadas de cuidados especiais. No entanto, quando da ocorrência de um caso urgente que demanda esses cuidados no período noturno, o que resta é torcer para que a pessoa não venha a óbito antes do raiar do dia. Isso já seria motivo suficiente para equipar o único hospital insular e realizar atendimento de média e alta complexidade.
O que se argumenta pelo estado de Pernambuco são os altos custos diante da pouca ocorrência de partos e atendimentos que demandem cuidados específicos: cirurgias, pronto atendimento em casos graves, dentre outros. A dúvida que paira seria então: por qual motivo, em casos especiais, não se viabiliza voos noturnos de salvo aéreos? Para isso, um diálogo entre governo estadual e federal precisaria ser estabelecido.
Se eu tinha razão sobre o mundo desconhecido que se abria diante de mim, talvez muitas variáveis ainda se escondam nas franjas da ilha de Fernando de Noronha. Porém, enquanto essa celeuma está instaurada, as mulheres são atravessadas pela rota do parto que, invariavelmente, tem como destino o continente, como um impedimento tácito de se nascer na ilha.
Camilla Iumatti Freitas é antropóloga formada pela Universidade Federal de Alagoas, doutoranda em Antropologia pela Universidade Federal da Paraíba. É pesquisadora na área de saúde, corpo e gênero na perspectiva da antropologia feminista.
[1] O Programa Mãe Coruja Pernambucana é um programa do governo do Estado de Pernambuco, regulamentado através da lei 13.959 e tem 11 anos de atuação em 105 municípios do continente pernambucano. Se trata de um programa intersetorial cujo objetivo de sua criação em 2007 era a redução da morbimortalidade materno-infantil.
[2] Este programa acumula diversos prêmios de gestão voltada à atenção da saúde reprodutiva da mulher e da criança, dentre eles o prêmio da ONU Mulher de políticas intersetoriais para mulheres, em 2014.
[3] O tempo médio de Fernando de Noronha/PE para Recife/PE de avião é de 50 minutos a 1 hora e de Fernando de Noronha/PE para Natal/RN é de 45 minutos a 50 minutos.