A Rússia em busca de parceiros
Os resultados obtidos durante a época de Boris Ieltsin, assim como o colapso econômico, social e mesmo moral que daí decorreram, dissiparam muitos sonhos e destruíram muitas esperanças e expectativasPaul-Marie de La Gorce
Parece bem distante o tempo em que os presidentes Boris Ieltsin e William Clinton ostentavam cordialidade e até cumplicidade. Na Casa Branca, acabou-se a indulgência sistemática em relação ao ex-presidente da Federação da Rússia. Washington faz de conta que não leva a sério as advertências russas em relação ao projeto norte-americano de escudo antimísseis (National Missile Defense, NMD),1 mas considera a viagem do presidente Vladimir Putin a Cuba uma provocação. Até se acredita ter ouvido a responsável pelo Conselho Nacional de Segurança, Condoleeza Rice, afirmar que a Rússia ainda constituía “uma ameaça”.
Por seu lado, a imprensa norte-americana critica duramente o comportamento russo na Chechênia, o que se compreende. Porém, de forma mais discutível, apresenta os confrontos jurídicos entre o governo russo e poderosos empresários — Boris Berezovsky e Vladimir Guzinsky, detentores de uma parte importante dos meios de informação na Rússia — como uma ameaça à liberdade de imprensa. Há apenas alguns meses, ela denunciava as ignomínias desses “oligarcas”…
O balanço político
Com o advento de Ieltsin, no início da década de 90, toda a “classe política” manifestou um entusiasmo quase ilimitado por tudo o que fosse “ocidental”
Em poucas palavras, da época de Boris Ieltsin à de Vladimir Putin, o afastamento entre a Rússia e os Estados Unidos se aprofundou. Isso é devido, em grande parte, às mudanças da política russa. O estado de espírito, o comportamento, a linguagem dos responsáveis pela elaboração e pela gestão da política externa do país evoluíram consideravelmente. Após o advento de Ieltsin, no início da década de 90, toda a “classe política” havia manifestado um entusiasmo quase ilimitado por tudo o que fosse “ocidental”. A busca de um entendimento a qualquer preço com os Estados Unidos tornava-se mais que uma prioridade: era um dogma. Previa-se, oficialmente, a transformação da Rússia em um país capitalista moderno em “quinhentos dias”, segundo o programa apresentado por um dos primeiros governos da presidência de Boris Ieltsin. Egor Gaïdar, então primeiro vice-primeiro-ministro e respondendo pela Economia, aceitava publicamente acatar as orientações do grupo de assessores norte-americanos dirigido por Jeffrey Sachs. Os resultados obtidos, o colapso econômico, social e mesmo moral que daí decorreram, dissiparam muitos sonhos e destruíram muitas esperanças e expectativas.
O balanço político foi feito. As fronteiras da Rússia, na Europa, se aproximam das que tinha no início do século XVII. Vinte e cinco milhões de russos dependem agora de governos estrangeiros. Vários milhões deles já deixaram as repúblicas da Ásia central para viver na Federação da Rússia. Sem falar do caso limite da Chechênia, onde a comunidade russa praticamente desapareceu. A retração internacional da Rússia foi quase total: onde os avanços da política soviética haviam sido mais ousados, como na América Central ou na África meridional, mas também onde seu papel havia sido muito ativo, e às vezes determinante, como no Sudeste Asiático e, particularmente, no Oriente Médio.
Objetivos divergentes
As fronteiras da Rússia se aproximam das que tinha no início do século XVII. Vinte e cinco milhões de russos dependem hoje de governos estrangeiros
A questão iugoslava levou essa retração a seu paroxismo. De todas as crises internacionais dos dez últimos anos, ela foi, sem dúvida alguma, a única a afetar profundamente a sensibilidade russa, apesar dos esforços das autoridades para tentar influir sobre o rumo dos acontecimentos. A imagem da meia-volta efetuada pelo avião de Evgueni Primakov quando ia para Washington ficou na memória de muitos russos: seu primeiro-ministro acabava de ser informado, em pleno vôo, do início da guerra de Kosovo. Viram nisso a estrondosa demonstração do desprezo com que seu país era tratado pelos dirigentes norte-americanos.
Não é de estranhar, portanto, que o pessoal político e diplomático russo tenha atualmente uma psicologia totalmente diferente. Após o culto de uma intimidade sem falhas com os interlocutores ocidentais, principalmente norte-americanos, as autoridades conscientizaram-se de que havia, de fato, divergências de objetivos. Dizer que a política dos Estados Unidos visa essencialmente a impedir o ressurgimento de uma potência rival, à semelhança da finada União Soviética, hoje em dia não escandaliza mais. Tampouco afirmar que eles procuram manter a Rússia em seu estado atual de enfraquecimento ou mesmo acentuá-lo.
China e Rússia: preocupações comuns
Das crises internacionais dos dez últimos anos, a questão iugoslava foi, sem dúvida alguma, a única a afetar profundamente a sensibilidade russa
E, no entanto, a política externa russa não passou de um extremo a outro. De modo muito empírico, apresenta-se como um compromisso entre a busca, até há pouco tempo prioritária, de pontos de concordância com a política norte-americana, e a de convergências com outros parceiros igualmente preocupados com a “superpotência” norte-americana e que aspiram a um novo equilíbrio. O presidente Vladimir Putin encarna, a seu modo, essa arbitragem. Associado à gestão da presidência de Boris Ieltsin, certamente não esqueceu todos os motivos que, então, justificavam a primazia dada ao diálogo americano-russo. Mas também pertence à geração que conheceu o tempo dos grandes êxitos da política externa soviética em todos os teatros de operação do mundo, quando suas bases internas estavam em via de se desmoronar. Viveu a implacável experiência do rebaixamento da Rússia após o deslocamento da URSS. Sua política carrega a marca dessas provas em parte contraditórias, mas igualmente decisivas.
Desde sua eleição para presidente, e particularmente por iniciativa de Evgueni Primakov — então ministro das Relações Exteriores e depois primeiro-ministro — a aproximação com a China foi um dos eixos principais da nova política externa. As duas nações revelam preocupações comuns: diante dos Estados Unidos e seu “super-poder”, que implica em uma ruptura de equilíbrio inaceitável no cenário mundial; diante do Japão, complemento político e estratégico dos Estados Unidos no Extremo Oriente; em relação a um islamismo político radical: a Rússia teme seu contágio na Ásia central, nas comunidades muçulmanas que vivem no interior da Federação, tais como a dissidência chechena e a rebelião no Daguestão, ao passo que a China teme o exemplo no Sinkiang (região no Noroeste do país, que faz fronteiras com a Mongólia, Rússia e o Casaquistão).
O “arsenal” da China
Após o culto de uma intimidade sem falhas com os norte- americanos, as autoridades conscienti- zaram-se de que havia, de fato, divergências de objetivos
Não podendo ser econômicos e financeiros, os meios dessa aproximação assumiram, necessariamente, um caráter diplomático e militar. Mas, na prática, o governo chinês decidiu fazer da Rússia seu parceiro essencial para equipar com armamento moderno suas forças armadas. Uma decisão de grande alcance tanto para a China como para a indústria de armamento russa. Na realidade, se o poder chinês anuncia um orçamento militar de apenas de 19 bilhões de euros (cerca de 10 bilhões de dólares) para 2001, o aumento chega a 17,7 % em relação ao ano anterior, o maior em vinte anos. Além disso, especialistas ocidentais avaliam que o total das despesas militares chinesas, na realidade divididas em vários orçamentos, chega ao dobro ou ao triplo desse montante oficial.2
O ritmo de crescimento não tem nenhuma possibilidade de diminuir. Na verdade, as autoridades dos Estados Unidos e de Taiwan negociam o reforço da capacidade militar do segundo para um montante de 50 bilhões de dólares em dez anos. A China, certamente, não deixará de reagir a isso.3 É à Rússia que ela se dirige para todas as categorias de armamentos de nível tecnológico elevado, especialmente para a aeronáutica, os mísseis balísticos de médio e longo alcances e os tanques.4 A China já produz, mediante autorização, aviões Sukhoi SU-27 e, com o tempo, poderia querer adquirir o último modelo dos tanques russos, o T-90, equipado com mísseis solo-solo dirigidos a laser.5 Não há exagero em escrever que a Rússia vai se tornar, em grande parte, “o arsenal” da China.
Irã, um parceiro inusitado
Putin passou pela experiência do rebaixamento da Rússia após o colapso da URSS e sua política carrega a marca dessas provas, em parte contraditórias
A Índia é outro parceiro privilegiado de Moscou. No tempo da União Soviética, o poder indiano mantinha relações particulares com a Rússia a fim de conservar uma política de equilíbrio em relação aos Estados Unidos. Tendo em vista a explosão da URSS, as autoridades haviam reorientado sua política externa. A diplomacia russa conseguiu convencê-las do interesse, para elas, em reatar seu antigo diálogo. Como em outros casos, a Rússia já não tem meios econômicos ou financeiros para negociar, devendo limitar-se ao campo político e militar. É por isso que os contratos de armamentos simbolizam, mais que tudo, suas tentativas. Eles representaram um terço dos 4,4 bilhões de euros (cerca de 2,3 bilhões de dólares) de vendas de armas realizadas em 2000.
O Irã é, de certa forma, o caso mais extremo do campo de aplicação da nova estratégia da Rússia. No essencial, tudo os separa: o regime iraniano encarna a corrente do mundo muçulmano ao mesmo tempo fundamentalista e nacionalista, cujo vigor, e mesmo violência, a Rússia enfrenta no Cáucaso, e cuja influência combate abertamente a sua na Ásia central. Mas o Irã é considerado inimigo potencial pelos Estados Unidos: o que foi o bastante para que se estabelecesse um diálogo estreito entre Teerã e Moscou. E, ainda aí, a política russa utilizou os únicos instrumentos de que dispõe: as vendas de armas, depois do fornecimento de uma central nuclear, posta em operação com um ano de atraso, segundo os iranianos. Como se trata de armamentos de ponta, de mísseis de médio alcance, as reações hostis por parte dos Etados Unidos foram imediatas.
A superioridade esmagadora dos EUA
Desde a eleição de Vladimir Putin para presidente, a aproximação com a China foi um dos eixos principais da nova política externa
E é exatamente isso que os dirigentes russos querem evitar tanto quanto possível. É verdade que eles se engajaram numa política que visa a limitar as conseqüências da “superpotência” americana, ou até a contestá-la, mas sem perder de vista que seu diálogo com Washington continuará uma preocupação importante. Aliás, essa política obriga a isso. O peso da dívida externa e o pagamento de seus juros fazem pairar sobre o país uma ameaça permanente. Evidentemente, a alta do preço mundial do petróleo e do gás permitiu, há dois anos, um início de recuperação do Produto Nacional Bruto (PNB) russo — reduzido em mais da metade após o desmembramento da URSS. Mas o Estado também tem que enfrentar as despesas mais urgentes, principalmente o pagamento em dia dos funcionários e a recuperação de um sistema de aposentadoria completamente destruído. Em outras palavras, o governo russo é obrigado, permanentemente, a negociar com as instituições financeiras internacionais, onde as intervenções norte-americanas são preponderantes.
É necessário também acrescentar o efeito de uma correlação de forças em que a superioridade dos Estados Unidos é esmagadora. O orçamento militar russo não passa de uma modesta fração do orçamento norte-americano. O diálogo atual entre Moscou e Washington traz a marca disso, o projeto norte-americano de escudo antimísseis — o NMD — sendo seu ponto central. Os mísseis estratégicos russos deixariam de poder atingir objetivos em território norte-americano, enquanto os mísseis norte-americanos continuariam podendo atingir a Rússia. Moscou, cujo único instrumento militar realmente poderoso é o arsenal de mísseis nucleares de longo alcance, não pode deixar de reagir.
O futuro da política externa russa
Os contratos de armamentos com a Índia representam um terço dos 2,3 bilhões de dólares de vendas de armas realizadas no ano 2000
Inicialmente, foi Moscou que relançou as atuais negociações sobre a redução de armamentos estratégicos, os chamados START III: propôs que o número das cargas nucleares passasse dos atuais mais de 3.000, para a Rússia, e 3 500 para os Estados Unidos, para 1.500 para ambas as partes, e não mais os 2.500 anteriormente previstos.6 O governo norte-americano fica, assim, diante de um dilema: ou dá um novo passo rumo à redução dos armamentos herdados da guerra fria, conservando os meios de infligir a qualquer outro país do mundo destruições inaceitáveis, ou prossegue em seu projeto de escudo antimíssil, mas correndo o risco de ver a Rússia conservar um número mais elevado de mísseis nucleares estratégicos — e mesmo de os produzir mais para fazer fracassar um eventual sistema antimísseis através do único meio de que dispõe, a saturação.
Ao mesmo tempo, o governo russo propôs publicamente aos Estados europeus que desenvolvam com ele um outro sistema antimíssil, paralelamente ao sistema norte-americano.7 Independendo do que se possa pensar da eficácia dessas medidas, elas traduzem bem a convicção dos dirigentes russos de que o governo Bush está determinado a seguir em frente, pelo menos se o escudo antimísseis se mostrar tecnicamente realizável.
Definitivamente, o futuro da política externa da Rússia será decidido muito mais no âmbito interno do que no externo. Na realidade, seria necessário que aqueles que a conduzem conservassem efetivamente o poder, levando ao fracasso os “oligarcas” que encarnam a volta à época de Ieltsin e a busca, a qualquer preço, de um entendimento com os Estados Unidos. Também seria necessária uma recuperação econômica, pondo fim à constante dependência da Rússia em relação aos financiamentos estrangeiros. Seria necessário, finalmente, que a evolução da crise da Chechênia não acarretasse a paralisia e o descrédito do poder russo, ou a desestabilização da própria Federação da Rússia.
(Trad.: Iraci D. Poleti)
1 – Ler “Washington mise sur le bouclier antimissile”, Le Monde Diplomatique, setembro de 2000.
2 – Agence France Presse, 6 de março de 2001.
3 – Agen