A sabedoria do povo Na’Vi
Os números divulgados pela The Global Assessment Report on Biodiversity and Ecosystem Services, órgão intergovernamental estabelecido pelos Estados membros da ONU, em seu último relatório, o IPBES/2019, apontam para a avalanche de mais de um milhão de novas espécies que entrarão nas listas das “ameaçadas” de extinção, como consequência direta do aquecimento global. Segundo o órgão, isso representa um impacto sem precedentes para o equilíbrio dos ecossistemas do planeta, contudo, o quadro é ainda pior, pois a estimativa está muito aquém da tragédia biológica que se experimentará, e já se experimenta, nos mais diferentes biomas terrestres. Isso decorre de pelo menos dois motivos diferentes.
O primeiro deles é de fácil apresentação e está relacionado ao próprio desconhecimento científico da diversidade existente no planeta. De pequenos e microscópicos seres até mamíferos, passando por tantos e tantos grupos de espécies animais e vegetais, a ciência não dispõe de um catálogo completo da vida da Terra e jamais o teria.
A vida é um processo dinâmico e a evolução é a sua força motriz, de modo que há uma mudança contínua na variedade de organismos existentes, esse processo é mais veloz nas formas de vida mais simples, cujas modificações levam a formação de novas espécies ou variedades genéticas em um curto espaço de tempo, dada as suas breves gerações.
Morte silenciosa
Podemos ter em um único tubo de ensaio uma população de bactérias maior do que a população humana do planeta multiplicado por 100, e no prazo de uma semana essas bactérias terão experimentado, em número, todas as sucessivas gerações humanas que já passaram por aqui, desde a origem das civilizações. Isso não quer dizer que os grandes animais e plantas não estejam em processo contínuo de transformação evolutiva, apenas o tempo necessário para se as mudanças se consolidem e novas espécies se constituam, requerem alguns milhares ou milhões de anos.
O processo evolutivo jamais cessou desde a origem da vida na Terra, e nem cessará até que as últimas formas de vidas ainda coexistam por aqui. Sendo assim, cada espécie pode ser pensada como um complexo de seres vivos (populações), distribuídos no ambiente de modo finito, ocupando discretos nichos ecológicos, mas cada uma fazendo parte de picos históricos de combinações genéticas únicas, conforme propunha Theodosius Dobzhansky1 – a espécie – atesta a inseparável relação entre a genética, o meio ambiente e a evolução.
De modo que, ainda que dispuséssemos de todos os meios técnicos e humanos para registrar todas as formas de vida existentes no planeta, muitas jamais serão conhecidas, porque antes que as encontrássemos, elas já terão desaparecido. Apesar da sua ausência nos catálogos biológicos sua extinção, também poderá resultar em impactos ecológicos importantes. Afinal, como todas as espécies, elas também faziam parte de um ecossistema complexo e se relacionavam com tantas outras formas de vida. Talvez fossem predadoras, ou talvez servissem alimento essencial para outras – na verdade as duas coisas devem ocorrer ao mesmo tempo. Assim, o desaparecimento de uma espécie “desconhecida” poderá ser a causa do colapso de uma cadeia alimentar.
Corais
Um exemplo dessa intrincada complexidade pode ser constatada no “branqueamento dos corais”2. Os recifes de coral são gigantescas formações biológicas nos oceanos, a poucos centímetros da superfície e se constitui em um imenso viveiro de espécies marinhas. Os mais famosos estão localizados no mar do Caribe e na Oceania, próximos ao litoral da Austrália, e todos eles estão morrendo, devido ao aquecimento global. No lugar de um ecossistema vivo, pulsante, complexo, repleto de formas marinhas, onde uma vastidão de peixes se alimentavam e ao mesmo tempo serviam de alimento para tantos outros, há um desastre em curso, esse ecossistema está morrendo, está se transformando em um “deserto”, o branqueamento dos corais é um fenômeno global.
Centenas de milhares de quilômetros de corais já desapareceram no mundo. Uma tragédia silenciosa e sem precedentes acontece sob a superfície calma e límpida dos oceanos. O desaparecimento desses corais está associado à morte de pequenos microrganismos que coexistem no interior dos animais que formam o coral. Esses microrganismos, principalmente algas, garantem a sobrevivência do coral, mas com o aumento da temperatura e do nível dos oceanos não conseguem mais fazer a fotossíntese e tem sido a morte desses pequenos e tão pouco conhecidos seres, que hoje vivemos uma e talvez a maior ameaça a vida marinha de todo o planeta.

O colapso da diversidade
Os estudos das comunidades de seres vivos do nosso – que não é nosso – mundo, nos leva ao interior de várias universidades e Institutos de Pesquisa e Proteção Ambiental do mundo todo, foi ali que os cientistas compreenderam que a conservação ambiental não consiste em criar santuários, para onde uma ou mais espécies devam ser levadas e cuidadas para que não desapareçam. A percepção de um grande zoológico de preservação, ao estilo de uma arca de Noé, com a finalidade de assegurar a continuidade da vida no planeta, é incorreta, impraticável e ineficaz.
A sobrevivência de um grupo de organismos, qualquer que seja ele, depende da interação com outras espécies. Como vimos antes, as populações de seres vivos dependem de suas interações com outras espécies e também com o meio ambiente, o chamado habitat. Sua capacidade de explorar, ocupar, adaptar e, portanto, de evoluir dependem dessas interações, assim como o meio ambiente físico e químico também se mantém graças a todos esses ciclos biológicos e geoquímicos. Mas, para que isto ocorra é necessário um acervo vasto e amplo de diversidade genética no genoma das populações.
O genoma é conjunto de informações – genes – presentes no DNA de uma espécie, bem como todas as suas características e propriedades operacionais. Tudo isso faz parte do patrimônio evolutivo de uma espécie, ou de uma população de indivíduos. Quando se fala em genoma humano, não nos referimos às características genéticas de alguém, mas de toda a nossa espécie, o que inclui a nossa história adaptativa. Podemos imaginar que a sobrevivência de uma espécie ou de uma população dependa dessa rede de informações adquiridas ao longo do tempo, o que permitirá a cada organismo produzir suas defesas, enzimas, elementos atrativos e tantas outras substâncias. Um indivíduo pode morrer, mas as informações genéticas dele estão asseguradas no genoma dos demais membros do grupo e assim serão transmitidas adiante.
Acontece que essas informações “trabalham” como se fossem um sistema operacional integrado com as demais espécies ou populações com quem convivemos, quer dizer, nossas informações genéticas estão conectadas com as informações das bactérias – benéficas ou não – por exemplo, aquelas que vivem em nosso organismo em um tipo de mutualismo. O mesmo acontece com os outros organismos com quem compartilhamos o ambiente. Pense, por um momento, como se estivesse vivendo em uma floresta como aquela que o diretor James Cameron retratou no filme Avatar, e de forma poética considere a árvore da vida dos Na’Vi e de todos os habitantes de Pandora. É assim, de certo modo, que os pesquisadores entendem que a preservação é possível. É necessário não só garantir a sobrevivência das espécies, como também garantir a sobrevivência da diversidade genética de uma espécie e de suas populações.
Habitat
Não basta preservar uma espécie, se o percentual de variabilidade contido no seu genoma for perigosamente reduzido. Aquela espécie ou população estará inviabilizada do ponto de vista adaptativo. Mesmo que daquela espécie uma quantidade de dezenas, centenas ou até milhares de exemplares – não importa – sejam capturados e mantidos vivos, se a sua diversidade genética não foi preservada, bem como o seu habitat, esses animais ou plantas estarão irremediavelmente perdidos como grupo genético, pois serão potencialmente incapazes de evoluir e sobreviverem por si só. Será apenas uma questão de tempo.
Algo parecido tem acontecido com os guepardos na África3, focas no Hawai4 e o pirarucu no Brasil5, só para citar três casos emblemáticos. Esses animais ainda existem, podem ser encontrados no meio ambiente, mas suas diversidades genéticas foram tão seriamente reduzidas que é possível admitir que não sejam mais espécies aptas a sobrevirem com o que lhes resta de diversidade genética.
Quando um único gene é extinto em uma espécie, porque o último animal portador daquele gene morreu, sem que tivesse a chance de transmiti-lo a qualquer um dos seus descendentes, então podemos afirmar que uma história de milhões de anos de evolução também tenha se perdido. Embora as extinções de organismos ou de genes façam parte da Grande História da vida na Terra, o que se prenuncia hoje diante da tragédia anunciada das extinções em massa é a perda de um acervo sem precedentes de possibilidades genéticas, que demoraram milhões e milhões de anos para evoluírem. Por causa disso, ou também por isso, o que está acontecendo e também está prestes a acontecer, somente poderá ser comparado ao cataclisma do choque de um grande meteoro com a Terra. A diferença é que agora temos o homem a pilotar o meteoro.
Espécie superior
Argumentos considerados “românticos”, como o simples direito à vida dessas espécies, não costumam resistir à mais primordial das crendices de certa, e numerosa, facção doutrinária da humanidade, que entende que o Todo-Poderoso teria ofertado a sua espécie favorita, toda a natureza, exceto a maçã, para saciar a sua fome e para seu uso e abuso. Portanto, essa maioria da humanidade ainda entende que a nossa espécie é superior às demais. Se essa mesma espécie já faz algo similar com o seu semelhante, escravizando e oprimindo – utilizando dos mesmos argumentos da superioridade – imagine o que ela não faria então com os animais, as plantas, e outros seres?
Então devemos apelar para a sua própria ganância, ou quem sabe para a sua própria saúde ou ainda a sua própria sobrevivência e tentar justificar a importância da preservação. São dos estudos da diversidade de moléculas isoladas da natureza que são compreendidos os mecanismos de ação das drogas sintéticas ou naturais, muitas serviram de inspiração para o conhecimento e o desenvolvimento de medicamentos, que revolucionaram a indústria farmacêutica no último século: cardiotônicos, antidepressivos, antitumorais, anestésicos, antiinflamatórios, estimulantes, relaxantes, imunoterápicos, vacinas, soros e tantos outros fármacos.
A maioria dessas pesquisas foi iniciada a partir de estudos com plantas ou animais selvagens, encontrados nos mares, nas savanas, nos cerrados, nas caatingas, nas campinas, mas sobretudo nas florestas tropicais do planeta, dada a sua óbvia exuberância e diversidade genética.
Programas de conservação
Programas de conservação ambiental têm sido implementados em diversos países, inclusive no Brasil. O alcance desses programas é um entre tantos assuntos que poderiam ser discutidos tendo em vista a possibilidade de garantir o mínimo de preservação necessária para assegurar às gerações futuras de seres humanos, a sustentação dos ecossistemas globais.
No entanto, esses programas além de serem tímidos diante das exigências, podem não ser competentes, se as diretrizes da conservação ambiental não forem orientadas por estudos e métodos que possam assegurar o alcance desejado da preservação.
Empresas, governos municipais, estaduais ou federais, muitas vezes, cedem à pressão midiática e propõem santuários macrozoológicos ou corredores de espécies interligando áreas de preservação remanescentes. O manual que as empresas e os governos seguem não irão impedir a extinção de populações genéticas dos organismos. Esse manual é orientado por aquilo que se pode mostrar ao público, do alto ou do chão, o que se deseja mostrar é a mancha de vegetação, algumas aves e quem sabe uma onça. Talvez até as empresas não se sintam responsáveis pelo desastre, porque, afinal, fizeram a “lição de casa” da preservação.
Existem metodologias, estudos, monitoramentos, planos de manejo, tudo para verificar a eficácia das medidas de preservação das espécies e de seus genes. Esses estudos não são caros, não requerem um pessoal excepcionalmente treinado, na verdade temos no Brasil uma população de estudantes, pesquisadores, mestres, doutores que hoje vivem de “bico” e que poderiam ser engajados em programas de monitoramento e preservação. Ou ainda, em estudos capazes de prever, prevenir, orientar os planos de conservação.
Todas essas ações são produtos de pesquisas científicas intensas, realizadas em institutos e universidades espalhadas pelo mundo todo e que raramente aparecem na TV.
Uma nova era medieval
O que nos leva a última e mais recente tragédia da nossa sociedade “moderna”. O obscurantismo. Uma onda fundamentalista varre o mundo arrastando a tolerância, o bom senso, a sensatez, a moderação, e como não poderia deixar de ser, a ciência e os cientistas. Sem fugir do tema, isso somente foi possível devido à amplitude dos canais de disseminação dessas convicções medievais, atrelada ao corolário dos medos conspiratórios e sorrateiros difundidos como uma ameaça ao que a civilização “de bem” tem de mais caro, a família, a propriedade e a tradição judaico-cristã.
A ciência tem sido sistematicamente acusada de aliada dessa conspiração. Ela é responsável por atravancar o desenvolvimento das obras humanas civilizatórias, sobretudo aquela que é a mais “nobre” de todas, ou seja, a ocupação da terra e a sua lavra.
Os disseminadores dessas teses não se interessam pelo sitiante, mas pelo destemido produtor rural e o seu maquinário desbravador do mundo selvagem. A ciência é obstrutiva e faz isso de diferentes maneiras, seja através da falsa ideia de um iminente aquecimento global com o intuito manter florestas intocadas, ou pior, procura defender a sobrevivência de povos silvícolas, que como já foi sugerido pelo mandatário da nação, vivem em condições muito próximas à pré-história, a barbárie e, portanto, praticando ritos e obscenidades não muito distantes do que se poderia ver na África subsariana. A ciência é uma ameaça a fé, a igreja, ao templo e com certeza, aos bons costumes cristãos neopentecostais.
Talvez seja este o maior desafio dos próximos 15 ou 20 anos. Uma geração que está sendo forjada, sobretudo no Brasil, pelo fundamentalismo religioso mais reacionário e que não deverá recrudescer nesse estreito e decisivo espaço de tempo. Talvez porque a sua preservação é também o instrumento mais eficaz de preservação do Estado que aqui se inaugurou, de forma incipiente no golpe de 2016, mas que se consolidou a partir de 2019.
O Estado que desmata e autoriza desmatar, o Estado que deprecia a ciência, desautoriza e achincalha os seus pesquisadores mais renomados é o mesmo Estado que institucionaliza o medo e se arma literalmente para se perpetuar no poder.
1 Dobzhanky T. Genética do Processo Evolutivo. São Paulo, Polígono, EDUSP 1973.
2 Sully S., Burkepile, D.E., Donovan, M.K. et al. A global analysis of coral bleaching over the past two decades. Nat Commun 10, 1264 (2019).
3 Dobrynin, P; et al. Genomic legacy of the African cheetah, Acinonyx jubatus. Genom Biol. 10, 16, 277 (2015).
4 Schultz JK; et al. Extremely Low Genetic Diversity in the Endangered Hawaiian Monk Seal (Monachus schauinslandi), Journal of Heredity, 100, 1, 25 (2009).
5 Vitorino CA; et al. Low Genetic Diversity and Structuring of the Arapaima (Osteoglossiformes, Arapaimidae) Population of the Araguaia-Tocantins Basin. Front. Genet., 24 (2017).
Douglas Mascara é mestre em Genética Ecológica e doutor em Genética Molecular ambos pela Universidade de São Paulo (USP). Foi professor e coordenador de pesquisas da Universidade Federal de Santa Catarina- UFSC (1989 a 2000) e atualmente leciona na Universidade de Mogi das Cruzes/SP.