A sonegação (in)conveniente
O perfil predominante dos sonegadores determina os efeitos da sonegação. Sua concentração entre os mais ricos torna o sistema tributário mais regressivo do que já é, ou seja, a sonegação contribui para aumentar as desigualdades sociais
Em tempos de crise fiscal, déficits orçamentários ganham as manchetes dos jornais e, rapidamente, os defensores do Estado mínimo se articulam para derrubar conquistas históricas da sociedade, cortando gastos, restringindo a prestação de serviços essenciais, vendendo patrimônio público e promovendo terceirizações, mas não sem antes terem patrocinado dispendiosas campanhas midiáticas para produzir dogmas anti-impostos e anti-Estado. Os escandalosos níveis de sonegação1 tributária, no entanto, parecem não sensibilizar muito a opinião pública, talvez pela conveniência de ajudarem a justificar os ajustes fiscais e a redução do tamanho do Estado.
A propaganda recorrente contra as coisas públicas e contra os tributos cria um ambiente propício para elevar a tolerância social à sonegação. Aliás, sonegadores famosos são normalmente muito respeitados nos meios sociais, e não pagar tributos adquire uma aura de sucesso entre aqueles que, inconformados com o Estado de bem-estar criado pela Constituição Federal de 1988, insistem em criticar os tributos e os gastos públicos. A sonegação, neste cenário, não é apenas tolerada, mas também invejada.
Nos últimos anos, por conta da crise econômica, tivemos uma queda acentuada na arrecadação dos tributos. Desde 2015, a arrecadação total tem sido insuficiente para cobrir os gastos primários do governo, e isso assusta os credores da dívida pública. Todas as soluções apresentadas, no entanto, são apenas no sentido de cortar gastos, nenhuma para recuperar a capacidade de arrecadar.
As alegações recorrentes de que as receitas tributárias já chegaram ao teto e de que os gastos cresceram de forma descontrolada não se sustentam numa simples análise da evolução histórica dos gastos e das receitas. De 1997 até 2018, o crescimento dos gastos sempre esteve sob controle, tendo, inclusive, reduzido sua taxa de crescimento a partir de 2014. Convém ressaltar aqui os efeitos positivos dos gastos públicos. Segundo Fagnani e Rossi,2 gastos de 1% com educação e saúde geram crescimento do PIB de 1,85% e 1,7%, respectivamente. No programa Bolsa Família e na Previdência Social, cada 1% eleva a renda das famílias em 2,25% e 2,1%, respectivamente. Ou seja, também do ponto de vista econômico, cortar gastos deveria ser a última das alternativas. Percebe-se, no Gráfico 1, que o problema está nas receitas, e não nos gastos. De 1997 a 2013 elas cresceram a taxas superiores à dos gastos. A partir de 2013, no entanto, começaram a declinar.
Entre 2013 e 2016, a arrecadação caiu 13,3%. É nesse contexto que os projetos reformistas se aceleraram. A crise fiscal apresentou-se como uma oportunidade sem precedentes para anular os principais esteios do Estado de bem-estar. Em 2016, antes que a receita voltasse a crescer, aprovou-se o congelamento dos gastos primários por vinte anos. Em seguida, veio a reforma trabalhista e as terceirizações, e, agora, apressam-se para aprovar a reforma da Previdência Social, que a desconstitui como um direito, transformando-a em mercadoria a ser adquirida no mercado financeiro.
Enquanto isso, a sonegação permanece solenemente ignorada. O Sonegômetro (Sinprofaz) aponta que, de 1º de janeiro a 15 de abril de 2019, já teríamos perdido para a sonegação mais de R$ 164 bilhões, valor 40% superior a todo o orçamento federal previsto para a educação em 2019. O valor anual estimado de sonegação é superior a R$ 500 bilhões, quatro vezes o déficit fiscal e cinco vezes a economia apontada pelo governo com a reforma da Previdência.3 Parece óbvio que, em épocas de crise fiscal, a primeira alternativa deveria ser a recuperação das receitas perdidas. No entanto, a sonegação talvez seja conveniente para os que defendem a redução do Estado.
A sonegação de tributos acabou se transformando numa fonte barata de financiamento do setor privado, além de aprofundar a regressividade do sistema tributário. Não há dúvida de que um dos fatores mais relevantes a facilitar a vida dos sonegadores é a inimputabilidade dos crimes contra a ordem tributária na esfera criminal. A interpretação de que tais crimes são de natureza material, e não de conduta, leva a uma quase total impunidade. Somente após se esgotarem todos os recursos na esfera administrativa, o que pode levar mais de dez anos, e somente se o devedor não pagar ou não aderir a algum programa de parcelamento é que esses crimes podem ser denunciados à justiça. Ou seja, sonegar passou a ser um ótimo negócio.
O perfil predominante dos sonegadores determina os efeitos da sonegação. Sua concentração entre os mais ricos torna o sistema tributário mais regressivo do que já é, ou seja, a sonegação contribui para aumentar as desigualdades sociais.
O estoque de processos referentes a créditos tributários da União que estão sendo discutidos no Conselho de Administração de Recursos Fiscais (Carf)4 nos dá uma boa ideia da enorme concentração do valor de autuações nas faixas superiores a R$ 100 milhões. Quase 70% do valor total se encontra ali, mesmo correspondendo a apenas 0,6% do total de processos (ver tabela).
Embora a maior parte dos processos se refira a autuações inferiores a R$ 15 milhões, os valores realmente expressivos encontram-se concentrados em uma parcela muito pequena de processos. Mais de R$ 225 bilhões estão sendo discutidos por 0,07%5 dos autuados. Ressalta-se que esses processos se referem a autuações realizadas pelos auditores fiscais da Receita Federal, ou seja, são casos de sonegação que foram identificados, fiscalizados.
Aliás, é relevante observar que o volume de autuações que se encontra em discussão administrativa no Brasil é extremamente elevado. Somente no Carf estão sendo discutidos quase 10% do PIB. Segundo Bernard Appy e Loreine Messias, o Brasil teria, em 2013, um volume de contencioso cinquenta vezes superior ao padrão mundial.6
O elevado valor de contencioso é coerente com o alto nível de sonegação. Segundo a Tax Justice Network, utilizando dados do Banco Mundial de 2011, o Brasil ocupa a segunda posição no mundo entre os países com maior sonegação, perdendo apenas para a Rússia.7
É difícil estabelecer todas as formas possíveis de sonegação, mas diversos relatos e notícias de autuações fiscais permitem definir algumas características que se repetem. Muitas medidas têm sido adotadas com vistas a limitar os espaços para sonegação em algumas situações, mas a maioria atua apenas sobre pequenos e médios contribuintes. Por exemplo, a retenção do IRPF sobre o pagamento de salários dificulta a possibilidade de os trabalhadores virem a sonegar. Também a substituição tributária prevista na legislação do ICMS cria dificuldades para a sonegação dos comerciantes na revenda dos produtos.
Uma das formas mais tradicionais de sonegação se dá pela venda sem nota fiscal ou pelas famosas notas calçadas,8 esta última dificultada hoje em dia pela nota fiscal eletrônica. Tendo em vista que mais de 50% da carga tributária provém do consumo, os artifícios utilizados para não emitir notas fiscais podem representar volumes bastante expressivos de sonegação, que são apropriados como lucros dos comerciantes. Quando se compara o valor arrecadado de ICMS com a participação do consumo total nas contas nacionais, percebe-se uma tendência de queda, que pode ser explicada por muitos fatores, inclusive pela sonegação (Gráfico 2).
Embora essa seja uma forma tradicional de sonegação, os maiores volumes são representados mais por planejamentos tributários abusivos, que consistem em simular operações desconectadas de substância econômica, para se aproveitar de brechas existentes da legislação.
Um exemplo são as manipulações de preços em operações de comércio internacional entre empresas vinculadas, com a finalidade de transferir lucros para paraísos fiscais. Nas Ilhas Virgens Britânicas, por exemplo, o número de companhias registradas é mais de quinze vezes superior ao de habitantes locais. São mais de 500 mil empresas para menos de 30 mil habitantes,9 a maioria delas fictícias, que servem apenas para intermediar operações de comércio de bens e serviços, permitindo que os lucros tributáveis fiquem escondidos e sem tributação nesses locais.
A Global Financial Integrity (GFI – 2014)10 estima que, de 2010 a 2012, o Brasil tenha perdido, em fluxos financeiros ilícitos, cerca de US$ 33 bilhões ao ano. Outro estudo produzido pelo Instituto Justiça Fiscal e pela Latindadd (2017)11 revelou que, entre 2009 e 2014, o setor de exportação de minério de ferro teria produzido uma perda anual de recursos de US$ 5,6 bilhões ao ano, totalizando, no período, US$ 39 bilhões de evasão de divisas, o que representa cerca de US$ 13,3 bilhões em sonegação de tributos.
Outro mecanismo utilizado com bastante frequência é a apropriação indevida do ágio interno em reorganizações patrimoniais das companhias. Com a Lei n. 9.935, de 1997, a amortização do ágio constituiu um incentivo fiscal criado no âmbito do programa de privatizações.12 No entanto, essa legislação continuou sendo usada por grandes grupos econômicos nacionais e internacionais na aquisição de empresas no país, ou simplesmente em processos de reorganizações societárias intragrupo, como parte de planejamentos tributários agressivos. Notícias recentes dão conta de que o Banco BTG Pactual perdeu uma disputa no Carf de quase R$ 2 bilhões, referente ao uso indevido do ágio.13
O combate à sonegação é importante não apenas para garantir recursos para as políticas públicas, mas também para promover justiça e proteger a concorrência. Não há dúvida de que as vantagens obtidas pelos sonegadores tendem a possibilitar monopólios econômicos, pela concorrência desleal, ou a produzir sonegação endêmica, quando todos os agentes passam a sonegar da mesma forma.
Por fim, sem exaurir todas as possibilidades para garantir o financiamento dos direitos sociais, nenhum governo que jurou cumprir a Constituição poderia propor medidas que a inviabilizem. O combate eficaz à sonegação e a revisão dos principais benefícios fiscais concedidos são ações necessárias e, em tempos de crise, absolutamente imprescindíveis.
*Dão Real Pereira dos Santos é diretor do Instituto Justiça Fiscal e membro do Coletivo Auditores Fiscais pela Democracia.
1 Tratamos sonegação em seu sentido amplo, e não em seu sentido jurídico de crime contra a ordem tributária. Assim, quando dizemos sonegação, estamos nos referindo às fraudes tributárias e também a outras formas de evitar o pagamento dos tributos.
2 Eduardo Fagnani e Pedro Rossi, “Desenvolvimento, desigualdade e reforma tributária no Brasil”. In: Vários autores, A reforma tributária necessária: diagnósticos e premissas, Anfip/Fenafisco, 2018, p.141-161.
3 O governo estima uma economia de R$ 1 trilhão em dez anos com a reforma da Previdência.
4 Mais conhecido como Conselho de Contribuintes, que julga, em segunda instância, recursos contra lançamentos de tributos não pagos, lavrados pelos auditores fiscais da Receita Federal do Brasil.
5 Relevante observar que a unidade de controle são processos administrativos. Para facilitar a análise estamos considerando que cada processo se refere a uma empresa autuada. Pode haver situações de uma mesma empresa estar discutindo mais de um lançamento.
6 Bernard Appy e Loreine Messias, “Litigiosidade tributária no Brasil”, O Estado de S. Paulo, 17 mar. 2014.
7 “No mundo, Brasil só perde para Rússia em sonegação fiscal, diz estudo”, Valor Econômico, 9 nov. 2013.
8 Prática comum na época das notas em várias vias. A via destinada ao fisco apresentava um valor bem menor do que a via do comprador.
9 Organização Pan-Americana da Saúde, “Ilhas Virgens Britânicas”, Saúde nas Américas, 2012.
10 Dev Kar, “Brasil: fuga de capitais, os fluxos ilícitos, e as crises macroeconômicas, 1960-2012”, Global Financial Integrity, 2014.
11 Instituto Justiça Fiscal, “Subfaturação no setor de mineração no Brasil evade US$ bilhões do orçamento público”, 17 jul. 2017.
12 Clair Hickmann et al., “Tributação da renda da pessoa jurídica: instrumento da guerra fiscal internacional ou do desenvolvimento?”. In: Vários autores, A reforma tributária necessária: diagnóstico e premissas, p.303.
13 Beatriz Olivon, “BTG perde disputa bilionária sobre uso de ágio no Carf”, Valor Econômico, 23 jan. 2019.