A trilha sonora do neoliberalismo
Dos ritmos das pistas de dança às vozes das periferias, da música eletrônica French house, cujo principal expoente é o grupo Daft Punk, ao rap, a música – que nos últimos anos vem recuperando o sucesso comercial – conquista cada vez mais o gosto de uma boa parte das elites. O que está em jogo nesse processo de legitimação cultural?
Em 21 de junho de 2018, para a Fête de la Musique [Festa da Música], o Élysée, sede do governo francês, recebeu representantes da música eletrônica nacional. O DJ Kiddy Smile, que usava uma camiseta com os dizeres “Filho de imigrante, negro e homossexual”, e seus dançarinos fizeram sucesso. O partido Republicanos (a direita tradicional) e o Rassemblement National (ex-Frente Nacional) foram ofuscados. A escolha do presidente Emmanuel Macron sem dúvida era audaciosa, mas não ia contra a corrente do projeto de legitimação das músicas de sucesso conduzido havia muitos anos pelos preconizadores intelectuais – exceto os conservadores. De forma fascinante, desde então, a elite se junta a escolhas amplamente popularizadas e as apoia – o que surpreende. Acabou o fosso entre a elite e a massa? Acabou o gosto requintado, oposto a um gosto primário? Quais são, então, os valores que a elite atribui a essas músicas de grande consumo?
A música eletrônica, por exemplo, é enaltecida por uma exposição na Philharmonie de Paris.1 Celebra-se, ali, uma música que “leva o planeta, a juventude de Paris e de Berlim, os clubbers de Ibiza e de Goa, assim como a geração pós-revolucionária de Túnis e do Cairo a dançar. Desde 2010, ela se impõe como tendência artística fundamental da cultura contemporânea, influenciando todas as esferas artísticas”. O que se propõe é “conduzir o visitante a uma verdadeira experiência sonora, participativa e sensorial”. A música eletrônica, “que nasceu na comunidade LGBT”, é apresentada em sua “dimensão política e contracultural: queer, espírito de do it yourself, nomadismo festivo, iniciativas efêmeras e comunitárias”.2
A música eletrônica é aqui bastante ligada a suas precedentes: a disco music – lembremos o filme Os embalos de sábado à noite, com John Travolta, de 1977, que colocou na pista, de modo inesperado e bastante entusiasmado, um jovem de meio modesto, como se costuma dizer – e o techno. Ela é também reduzida à sua dimensão mais conhecida, a da trilha sonora do dancefloor, a pista de dança; mas ela não poderia, no entanto, ser qualificada como frívola. De fato, o dancefloor foi promovido a lugar de “mistura de minorias e de classes sociais”, com a ajuda do ecstasy, que permite entrar “em uma espécie de grande onda em que você não reconhece mais nem sexo nem raça”. A “dimensão política” está ligada ao fato de a música eletrônica convidar a uma “vontade de comunhão, de unidade geracional” e, de modo mais geral, a uma “nova relação com a alteridade”.
Essa apologia da festa-comunhão, do transe em que a ninguém é atribuída uma identidade, é uma leitura efetivamente política, em honra à harmonia a ser inventada, em que serão superados todos os antagonismos, todas as diferenças, em que a única alienação é a de nossas fronteiras íntimas. Assim, a música eletrônica torna-se emancipadora, digna de intervir para combater as perseguições a que são submetidas as minorias, e lugar de um momento de alegria, prefigurando enfim um mundo sem ódio, onde o indivíduo se regozija: “Se você busca o prazer e o imediatismo […], isso lhe cai muito bem”, resume Michka Assayas, historiador do rock, a propósito do dueto Justice, ao qual ele consagrou uma semana de difusões (Very Good Trip, France-Inter, nov. 2016).
As opiniões entusiasmadas da elite, porém, estão relacionadas também à potência seminal da música eletrônica. “A música eletrônica forja artes no século XXI?”, pergunta-se o programa Du grain à moudre (11 abr. 2019), destinado ao debate de ideias na rádio France Culture. A resposta é aparentemente positiva: “A música eletrônica é a invenção dessa personalidade artística contemporânea, o ‘semionauta’ que compila, aglutina, faz a mixagem, delimita, superpõe, em suma, pós-produz o real à sua maneira, como um DJ curador”. O “semionauta” – termo posto em circulação por Nicolas Bourriaud, ex-codiretor do Palais de Tokyo e ex-diretor da Escola Nacional de Belas Artes – é um programador de formas novas, cuja proposta é produzir percursos ou cenários originais entre os signos e os significados. Portanto, a obra de arte não é mais o resultado acabado do processo de criação, mas um “momento na cadeia inacabada das contribuições”, para citar o livro mais influente de Bourriaud, Esthétique relationnelle.3 A música eletrônica reorganizaria o real, o executaria, sem tentar colocá-lo em questão ou em perspectiva.
As instituições e os mecenas a aprovam. Eles têm razão. Essa música tem tudo para lhes agradar. Ela combina o prazer individual e a rejeição do político, substituído pela abertura para o outro, o dominado, o oprimido. Ela garante a hesitação da identidade singular, o tempo de uma festa, para o acolhimento em si de outras identidades possíveis. Ela propõe o “soltar-se” como modo de acesso a um momento de felicidade e de verdade. Ela se apoia na tecnologia, assinalando a entrada no “novo mundo” no qual as máquinas recolocam o humano em seu lugar. Ela cria zonas de autonomia temporária, microutopias hedonistas, confiantes no desaparecimento das grandes utopias de convulsão social.
Além disso, a música eletrônica é a junção inesperada da vanguarda e do sucesso. Coreógrafos, artistas plásticos e cineastas – de Gisèle Vienne, incluída com regularidade no Festival de Outono, a Xavier Veilhan, expondo na Galeria Perrotin – dela se apropriam, enquanto o French house, do grupo Daft Punk ao Justice, é exportada de maneira esplêndida. A música eletrônica, sobretudo resumida ao dancefloor, bem mais que suas riquezas musicais, carrega assim os valores sustentados pelo liberalismo cultural. Ela faz dinheiro, ela preconiza curtir o momento, ela celebra a sensação, ela oferece a eclosão dos desejos, tudo produzido pela alegria de não reconhecer nenhum limite.
O mais surpreendente é constatar que outra música popular, o rap, desfruta do favor dos doadores de notas favoráveis. Com quatro recompensas na cerimônia de premiação Victoires de la Musique em 2018, ela é hoje a música preferida dos franceses e figura regularmente entre as mais vendidas. No primeiro semestre de 2018, de acordo com os números do Sindicato Nacional dos Editores Fonográficos (Snep – Syndicat National des Éditeurs Phonographiques), Maître Gims e seu irmão, Dadju, estavam na dianteira da classificação, e o rap era a música mais escutada nas plataformas de streaming. Ora, neste caso também a elite se junta ao gosto da maioria. O escritor Thomas Ravier, em um artigo da Nouvelle Revue Française, publicada pela Gallimard, comparou, desde 2003, o rapper Booba aos escritores Louis-Ferdinand Céline e Antonin Artaud.4 Jean Birnbaum, responsável pelo Monde des Livres, prefere associá-lo a Léon Bloy e lhe consagrou uma entrevista no Le Monde (31 ago. 2018). Nela, ele deixa claro que, em seus últimos discos, “a reivindicação política foi abandonada em prol de uma predicação obscena responsável pela degradação humana”. De maneira mais precisa ainda, “redigidos sob o efeito da maconha ou ao volante de um bólide, […] seus textos não visam nem à emancipação social nem à edificação moral”. Na Escola Normal Superior, de 2015 a 2018, um seminário linguístico, “La plume et le bitume”, convidou rappers e estudou seus textos. A Radio France mudou o posicionamento de sua rádio Le Mouv’, que se tornou Mouv’, em 2015, centrando-se nas culturas urbanas. Os rappers são estudados nos manuais escolares (PNL, Médine), escritores coroados por diversos prêmios são rappers (Gaël Faye, David Lopez), as estrelas do rap fazem teatro (Abd Al Malik monta Les Justes no Théâtre du Châtelet de 5 a 9 de outubro de 2019), o teatro recorre ao rap (uma adaptação de Fourberies de Scapin, de Molière, foi apresentada no Théâtre 13, em Paris, na última primavera).
Em poucas palavras, o próprio gênero, com frequência ainda ontem considerado vítima do “ostracismo”, é hoje muito valorizado: “A literatura será rap ou não será!”, insistiu Thomas Ravier na Le Nouveau Magazine Littéraire (maio 2012); o rap teria “reescrito (e ultrapassado) a história da poesia”, segundo Les Inrockuptibles (12 jun. 2016). O canal Arte produziu em abril de 2019 uma websérie, Saveur bitume, coescrita por Rocé, do grupo La Rumeur, contando, como resume seu site, a história desses “cronistas sociais que queriam transformar o país, artistas e empreendedores que se juntaram para criar uma federação visando alcançar o topo das listas dos mais vendidos” para, em seguida, nos anos 1990, se despolitizarem. Em suma, entre a primeira indústria musical francesa e a fina flor da cultura, está o idílio.
Podemos nos perguntar o que motiva essa grande aproximação, confirmada pelos apoios institucionais. Seria a vertigem diante das cifras que outrora incitavam o desdém da massa vulgar e hoje os exortaria a reconhecer um valor no sucesso ressonante e tilintante (a banda PNL totalizou 12 milhões de visualizações de seu último clipe em 48 horas no YouTube)? Seria a admiração por aqueles que são sempre representantes de minorias, que usam uma linguagem “liberada” das exigências acadêmicas? Ou, ainda, seria o gosto descontraído de uma burguesia letrada para reencontrar uma parte de seu ideal em um mundo onde se juntam os símbolos da aversão e do desejo pelo consumo, e uma inclinação pela mensagem bem anticonformista? Louvemos a “alteridade” triunfante, que finalmente se integra tão bem ao modelo dominante, o que prova que tudo, apesar de tudo e sem transformação política, continua possível.
Em todo caso, é engraçado ver essa recepção calorosa – disposta a não levar em conta o que se gerou em outra situação (o sexismo, por exemplo) e a transformar, não sem condescendência, a pobreza literária em minimalismo –, testemunho da frivolidade impecável que hoje caracteriza uma boa parte dos arautos das camadas letradas.
Música eletrônica ou rap: hoje estão aí definitivamente em suas manifestações mais conhecidas das músicas reconciliadoras. É a voz da maioria, fundamentalmente pelas redes sociais, que se abstém de perguntar, que institui a norma – estética e, portanto, política – da vanguarda e do grande público, enfim unidos na mesma prostração com relação à indústria e à harmonia social em funcionamento. Nas manchetes, elas destronaram o rock dos festivais, das subvenções, dos locais de concerto – salvo quando ele é mumificado, academizado, sem disputa. Os “velhos” sempre voltam, como uma agradável lembrança dos tempos antigos, quando ainda se acreditava nos amanhãs que cantam. Inofensivos.
Parece que não havia mais possibilidade de se fazer entender nem para esses “irreconciliados” nem para quem mantinha aspirações “extremas” a uma revolução social e política. Aqueles que atacam os códigos, as normas, os costumes e, assim, expressam sua dissonância, como os punks outrora, em sua breve fulguração. Aqueles que não são rentáveis, que não estão nem um pouco de acordo com as armadilhas da democracia liberal, aqueles que se inserem na história, inclusive a do rock, e, inventando um eco distorcido, acentuam uma distância que torna sensíveis os velhos sonhos e ativa o desejo de mudar o mundo. São esses excluídos da “música ‘reconciliada’ (neutralizada) do mainstream, invertendo a exclusão submetida em relação polêmica, em negatividade, que transformam a história da arte musical pop. São eles que inventam as posturas aristocráticas da arte mais democrática, jamais inventada”, segundo a filósofa e música Agnès Gayraud, autora do estimulante Dialectique de la pop.5 Só se pode esperar que, cruelmente mas lisonjeiramente rejeitado nas margens, o rock possa desempenhar discretamente seu papel de perturbador da resignação.
Evelyne Pieiller é coautora, com Edgard Garcia, de Une histoire du rock pour les ados [Uma história do rock para os adolescentes], Au Diable Vauvert, Vauvert, 2019 (nova edição ampliada).
1 “Électro. De Kraftwerk a Daft Punk”, Philharmonie de Paris, de 9 de abril a 11 de agosto de 2019.
2 Électro. De Kraftwerk à Daft Punk, catálogo da exposição, sob a direção de Jean-Yves Leloup, Philharmonie de Paris – Textuel, Paris, 2019, 256p.
3 Nicolas Bourriaud, Esthétique relationnelle [Estética relacional], Les Presses du Réel, Dijon, 1998.
4 Thomas Ravier, “Booba ou le démon des images” [Booba, ou o demônio das imagens], La Nouvelle Revue Française, Paris, out. 2003.
5 Agnès Gayraud, Dialectique de la pop [Dialética do pop], La Rue Musicale – La Découverte, Paris, 2018, 528p.