A universalidade da causa da Palestina
Por suas alianças, interesses, influência ideológica, relações de família, de cultura ou de religião, o conflito entre palestinos e israelenses já estava presente no mundo externo. Inserida no contexto pós-11 de setembro, esta questão tornou-se mais universal e perigosa para o mundo, ao ser desfigurada no lógica do “choque de civilizações”Etienne Balibar
Por que razões apoiamos a causa palestina, a nosso ver, uma das que permitem avaliar a dignidade e a responsabilidade de um discurso político? Responderia apenas em meu próprio nome, mas na perspectiva de que haja uma grande convergência de opiniões, além dos que se mobilizam por uma “justa paz” no Oriente Médio. Presumiria a universalidade dessa causa. Mas não sua obviedade: não só porque não existe nada como tal na história e em política, mas porque, ao constatar dia após dia que estamos muito envolvidos no conflito para permanecermos neutros e demasiadamente distantes para controlar todos os dados, devemos, pelo menos, compreender que as dificuldades que se opõem a uma percepção “objetiva” da tragédia israelense-palestina também fazem parte das dificuldades de sua solução.
Em termos de justiça e de direito, esse conflito não comporta uma demarcação absoluta – não se trata de uma guerra dos “maus” contra os “bons” -, mas apresenta um desequilíbrio flagrante, que não cessa de se acentuar. Israel – uma das grandes potências militares do mundo, estreitamente ligada à hiperpotência norte-americana e dispondo de toda o arsenal da guerra moderna – afirma agir somente para proteger a população civil. Os israelenses têm razões históricas para se sentirem coletivamente ameaçados, de alguma maneira sempre “em adiamento”. Mas são os palestinos que lutam atualmente para sua sobrevivência enquanto povo.
Fato consumado
Por um lado, descendentes dos sobreviventes e dos que escaparam do maior genocídio da história moderna, a quem a comunidade internacional reconheceu o direito de constituir uma nação na área da “Terra Prometida” dos antigos hebreus, e aos quais se somou a emigração, livre ou forçada, dos judeus dos países árabes e de outras partes do mundo, os israelenses esbarraram em um ambiente hostil, onde seu direito à existência foi negado. Invertendo a situação, passaram da defesa à conquista.
Desde a guerra de 1948, desencadeada pelos países árabes, de que se beneficiaram para realizar uma limpeza étnica da qual se avalia melhor, a partir de agora, a amplitude e os conflitos que vieram em seguida, eles fazem parte do acordo das nações dominantes. Em 1967, ocuparam e colonizaram os 22% restantes da Palestina histórica, criando assim, contrariamente ao direito internacional, um fato consumado cada vez mais irreversível. A conseqüência lógica, reconhecida por uns e negada por outros, é a transformação dos palestinos em sujeitos de um grande “Estado judaico” ou uma nova transferência maciça da população ou ainda uma combinação de ambas.
Povo “supérfluo”
No exílio, um terço dos palestinos em condição, miserável, de refugiados sem que nem Israel aceite reconhecer-lhes um direito qualquer à volta, nem os países árabes pensem integrá-los
No exílio, um terço dos palestinos vive desde então a condição, sempre miserável, de refugiados sem que nem o Estado de Israel aceite reconhecer-lhes um direito qualquer à volta, nem os países árabes pensem integrá-los e conferir-lhes os direitos de cidadãos. Povo “supérfluo”, que a catástrofe coletiva o fez chegar à consciência nacional, eles esperam sempre que a comunidade internacional mantenha sua promessa de dar-lhes acesso à independência em um Estado viável. No local, foram dotados de uma Autoridade residual e são considerados coletivamente responsáveis pelos atentados à segurança de seus vizinhos.
Os observadores notaram que a sociedade civil palestina, sob ocupação, deu prova de uma surpreendente capacidade de resistência, cultivando terras, desenvolvendo a saúde e a educação, gerando artistas e escritores, organizando a solidariedade familiar e associativa. Desde a segunda intifada, o governo e o exército de Israel conseguiram romper os mecanismos, destruindo sistematicamente infra-estruturas e meios de existência, exercendo um terror de Estado assassino que visa indistintamente combatentes e simples habitantes, paralisando as administrações, ocupando as terras e atomizando os territórios. Simulando procurar um “interlocutor válido”, sistematicamente, eles favoreceram as divisões ideológicas e as lutas de clãs na sociedade palestina, de que obviamente não são os inventores. Está chegando a hora em que a dupla independência prevista pelos acordos internacionais será irrealizável, com conseqüências dramáticas – inclusive para Israel.
Saída catastrófica
Essa negação da própria existência do povo palestino, da Naqba até o muro em construção, justifica todas as formas de resistência e principalmente o terrorismo ao qual recorrem, contra a população civil israelense, diferentes organizações, islâmicas ou não? É preciso se fazer essa pergunta, não só para “responder” à argumentação de Israel e de seus defensores, mas por razões básicas. E em termos não só morais, mas também políticos.
O terrorismo pode ser explicado pelo desespero e a impotência, ou pela ideologia, ou pela simetria a que o terror de Estado induz. De qualquer maneira, ele é catastrófico para a luta do povo palestino
O terrorismo pode ser explicado pelo desespero e a impotência, ou pela ideologia, ou pela simetria a que o terror de Estado induz. De qualquer maneira, ele é catastrófico para a luta do povo palestino. Em primeiro lugar, corresponde exatamente à estratégia israelense de destruição da sociedade palestina, permitindo elevar continuamente o nível de violência exercido sobre ela, mesmo que essa elevação custe muito caro em matéria de vidas e de recursos. Por isso não é de espantar que o governo israelense mantenha a situação e provoque regularmente um novo impulso por suas próprias ações. Em segundo, ele paralisa no cerne da sociedade israelense as grandes forças que poderiam agir para inverter a política de conquista. Assim, põe em risco a possibilidade de acordos temporários como o de uma reconciliação entre os dois povos, o que dos dois lados abre apenas perspectivas niilistas. Enfim, ele incute em uma parte da população, principalmente entre os jovens, uma concepção sacrificatória do heroísmo e uma percepção do valor da vida humana exclusivamente referida à distinção amigo-inimigo, o que todas as experiências históricas provam resulta em uma decomposição da civilidade durante um período muito longo.
A utilização da violência terrorista, por uma parte da sociedade palestina, contra a violência colonial não muda nada na dessimetria da situação do ponto de vista do direito e da justiça: não confere a Israel nenhum direito de aniquilar seu adversário sob o pretexto de defesa. Mas corre o risco de distanciar indefinidamente a possibilidade de uma vitória sobre o ocupante, ou de torná-la sem objetivo. É, portanto, profundamente autodestruidor. Cabe ao povo palestino resolver o problema. Não se pode concluir que a comunidade internacional tenha simplesmente de esperar, sem se sentir responsável por isso, a criação de uma nova relação de forças, em que a “arma dos fracos” não aparecerá mais como a única possível.
Economia de violência mundial
Mas esses problemas mudaram completamente de natureza desde o 11 de setembro de 2001 e as guerras do Afeganistão e do Iraque. Ilustrando a “lei do pior”, característica da conjuntura, a colonização israelense e a resistência palestina foram captadas em uma economia de violência mundial, que tende a impor por toda parte a lógica do enfrentamento entre “forças do bem” e “forças do mal”, destruindo ao mesmo tempo o próprio significado político de seu conflito.
Conseqüentemente, há uma nova dessimetria fundamental, em que paradoxalmente cada um torna-se o espelho do outro. Israel sempre identificou a luta armada palestina com um destacamento do “terrorismo internacional”, prefigurando assim a “globalização do terror” para a qual empurram ao mesmo tempo o fundamentalismo islâmico e os Estados Unidos. Por sua vez, os palestinos, sempre solidários com um mundo árabe que, no entanto, não deixou de traí-los, são às vezes tentados a idealizar aqueles que consideram os inimigos mais irredutíveis de seus próprios inimigos: ontem Saddam Hussein, amanhã, talvez, Osama Bin Laden ou outro qualquer o substituirá. Instala-se a percepção de um combate global entre dois mundos hostis, Oriente e Ocidente, do qual o conflito israelense constituiria apenas um elo da cadeia e somente poderia ser resolvido por um contragolpe de uma “vitória” total de um campo ou outro. Os atores do drama se vêem, assim, sem capacidade de inicativa, salvo a de alimentar a espiral dos “contra-terrorismos” miméticos.
O terrorismo palestino corresponde exatamente à estratégia israelense de destruição da sociedade palestina, permitindo elevar continuamente o nível de violência exercido sobre ela
Essa tendência, à qual muitos deles resistem com todas as suas forças, é arruinante para os palestinos, transformados em símbolos de “guerras santas”, que não são suas, e vítimas de um futuro efervescente da região. É também muito inquietante para Israel, a menos que se imagine que ele pode construir para si uma fortaleza em estado de sítio permanente no meio do mundo árabe. Também nesse caso, muitos de seus cidadãos sentem ou pressentem, sem ter pensado até agora em todas as conseqüências disso. Ela representa, enfim, um perigo para o mundo inteiro, o de ver expandir o “choque entre civilizações”, absorvendo e desfigurando todos os problemas de territórios, de soberania e de cidadania, de colonização e de descolonização, de riqueza e de pobreza, de rivalidades religiosas e de distância cultural, condensado no conflito israelense-palestino. Por isso é de interesse de todos, particularmente dos países que pertencem ao mesmo espaço geopolítico, tentar, se ainda der tempo, colocar em prática soluções baseadas no direito dos povos à existência, à segurança e à reparação das injustiças a que foram submetidos.
Soberania associada
Ouve-se sempre dizer que o apoio à causa palestina envolveria novamente colocar em questão a legitimidade do Estado de Israel. Da mesma maneira que o uso do terrorismo por alguns não anula a justiça da causa palestina, a injustiça de sua política não coloca em dúvida a legitimidade da existência de Israel como entidade política “soberana” – o que não prejudica em nada nem as bases territoriais dessa soberania, nem âmbitos locais ou regionais nos quais os israelenses poderiam aceitar limitá-la para garantir as condições de sua existência democrática no futuro.
Mas dois fatos, aliás interdependentes, fragilizam essa legitimidade, e até mesmo correm o risco de recolocá-la em questão diante de grande parte do mundo. Um diz respeito à definição de Israel como “Estado judaico”. Efetivamente, não só este não pára de se estender em detrimento dos palestinos como, mesmo dentro de suas fronteiras, impõe a eles uma condição de segunda zona, privados de um grande número de direitos e excluídos da igualdade simbólica com os “verdadeiros” israelenses na posse de sua terra comum. O outro se refere a que, jurídica e moralmente, a legitimidade de Israel como Estado moderno não pode se basear nem em um mito de origem sagrada, nem na transformação de uma exterminação em massa da qual seus pais foram vítimas em um “direito soberano” que os colocaria acima da lei das nações, nem em sua força triunfante: ela depende do reconhecimento dos povos que os rodeiam e, sobretudo, daquele que eles “deslocaram” em um processo de colonização de uma natureza totalmente específica.
Por isso os israelenses têm necessidade de uma soberania dos palestinos igual à sua, e até mesmo associada a ela. É verdade que esse reconhecimento inicialmente foi negado pelo mundo árabe e continua a sê-lo por alguns outros, inclusive por muitos palestinos. Mas se Israel acabar de destruir a Palestina e o povo que a habita, esse reconhecimento será definitivamente impossível e, conseqüentemente, Israel jamais será um Estado “como os outros”.
Fórmulas abertas
Os israelenses têm necessidade de uma soberania dos palestinos igual à sua, e até mesmo associada a ela, senão Israel jamais será um Estado “como os outros”
O que podem fazer os de fora para exercerem influência sobre esse conflito, cuja transformação em disputa global ameaça sua própria segurança. Sem dúvida, somente os adversários atuais podem chegar a um acordo, que somente existirá se baseado na justiça. Com base nisso, todas as fórmulas do futuro estão abertas, e nós, “testemunhas” ou “amigos” externos não temos que decretar o que é reversível e o que não é na história de um século de luta entre os projetos nacionais desses dois povos instalados em uma mesma terra. Seu confronto desenvolve-se, todavia, cada vez menos, em um espaço fechado. Por suas alianças, seus interesses, sua influência ideológica, suas relações de família, de cultura ou de religião, palestinos e israelenses estão presentes no mundo externo; e vários países intervêm na vida de suas respectivas sociedades, por meio de seus programas de ajuda humanitária ou militar, seus investimentos e sua cooperação científica, suas relações de população, sua diplomacia…
Embora ninguém acredite que um acordo possa ser imposto do exterior, ninguém tampouco pensa que se possa dar sem uma mediação internacional. Além das Nações Unidas, que aí desempenham sua credibilidade histórica, muito depende dos Estados Unidos, da Europa e do mundo árabe. Não esperemos uma evolução da posição norte-americana, já que Bush acaba de relembrar e enfatizar, em companhia de Sharon, seu apoio à expansão israelense, e encontra-se à mercê de acontecimentos dramáticos no Oriente Médio e de mudanças de política interna aleatórias. A Europa ocupa uma posição chave, não só para fazer valer seu ponto de vista, mas para impor a participação dos países árabes nos procedimentos de mediação. Nenhum “roteiro para a paz” pode se dar sem esse reequilíbrio democrático, do qual dependem a confiança dos palestinos, o envolvimento de toda a região e a neutralização das lógicas de “choque entre civilizações”. Nenhuma mediação é possível se os “mediadores” são os protetores dos invasores
Portanto, é importante que nossas opiniões públicas se mobilizem nesse sentido. E que elas o façam sobre bases de princípio, mostrando-se tão intransigentes em relação a fatos passados e urgência atuais quanto em relação à justiça das últimas perspectivas, o que não é óbvio. É preciso que elas se mostrem capazes, o que ainda é menos óbvio, de t