A V República em coma político
Nenhuma Constituição ocidental dá tanto poder a uma pessoa quanto na França, onde o presidente encarna uma espécie de “monarca republicano”. Imposta pelo fogo da Guerra da Argélia sobre os escombros da IV República, essa visão das instituições ainda faz sentido enquanto se multiplicam os desafios coletivos, sejam sociais, sanitários ou geopolíticos?
Visivelmente interpelado pela amplitude da mobilização contra a reforma da previdência, este político do partido Les Républicains deixa escapar um grito sincero: “Vocês se dão conta: se a gente estivesse na IV República [1946-1958], o governo já teria sido derrubado”.1 E o homem, que é oponente do presidente Emmanuel Macron, vangloria os méritos da “estabilidade” das instituições francesas. Ainda assim, tanto o Élysée (palácio presidencial) quanto o Matignon (residência do primeiro-ministro) parecem, desde o início do movimento dos coletes amarelos, fortalezas sitiadas jogando sobre a multidão de manifestantes o óleo fervente da repressão policial.
Ainda que tudo indique que a reforma da previdência seja rejeitada pela maioria dos eleitores – greves múltiplas e de longa duração, manifestações frequentes em toda a França, fundos de greve bem alimentados –, nada na Constituição permite que se impeça essa mudança legislativa. O chefe de Estado e seu governo dispõem de todo um arsenal jurídico, a começar pelo artigo 49-3, que lhes permite desprezar as oposições populares, por mais maciças que sejam.2 E isso mesmo com uma legitimidade eleitoral frágil: Macron só teve 17% votos dos inscritos na eleição presidencial de 2017 e apenas 47% no segundo turno, enquanto Jacques Chirac tinha tido 62% numa confrontação idêntica com a extrema direita. Pela primeira vez, a Assembleia Nacional foi eleita por uma minoria de eleitores, e a abstenção atingiu o nível recorde de 57,36% nas eleições legislativas de junho de 2017. Tendo chegado ao poder nessas condições, o partido La République en Marche se protege atrás do “mandato” confiado pelos eleitores, mandato sujeito a interpretações, em particular sobre as aposentadorias. Como se estes tivessem assinado um cheque em branco.
Traumatizados pela extrema instabilidade da IV República, os redatores da Constituição de 1958 quiseram conferir às instituições uma solidez a qualquer prova, o que ganhou o apelido de “golpe de Estado permanente” sob a pluma então afiada de François Mitterrand.3 “Nunca, desde o fim do século XIX […], a vida política conheceu tal estabilidade”, escrevia com ênfase o historiador Mathias Bernard no mesmo tom do discurso dominante.4
A maioria parlamentar viu sua submissão ao Executivo acentuada pela inversão do calendário eleitoral decidida pelo primeiro-ministro Lionel Jospin em 2001: desde então, com a votação presidencial precedendo sistematicamente as legislativas, a eleição dos deputados depende tanto, se não mais, do conquistador do Élysée do que de seus eleitores. Interrogada sobre as deserções em seu grupo (uma dúzia desde 2017), a deputada do partido La République en Marche da região de Yvelines, Aurore Bergé, confirmou isso candidamente em coletiva de imprensa no dia 29 de janeiro de 2020. Ao evocar a provocação de Cédric Villani, apesar da advertência de Macron, ela exclamou: foi o “presidente da República que permitiu que ele se tornasse parlamentar, como permitiu a mim e a todos os deputados da situação”.5 Nessa visão, os deputados se transformam em representantes do chefe de Estado junto a seus concidadãos, esquecendo que eles deveriam ser antes de tudo os porta-vozes de seus eleitores.
Imperiosa necessidade democrática
Protegido contra os sobressaltos da vida parlamentar, o governo pode “reformar” sem temer, sob a ordem da única autoridade que conta: a Presidência da República, ela mesma intocável por cinco anos. Macron não corre o risco de ter nenhum de seus projetos recusados ou vetados pelo Senado. O referendo de iniciativa popular é concebido como uma exceção difícil de ser realizada. Pensando derrubar as acusações de autoritarismo que se multiplicam em sua direção,6 o chefe de Estado na verdade confirmou o diagnóstico de decadência da democracia francesa. “Uma ditadura é um regime no qual uma pessoa ou um clã decide as leis”, afirmou em 24 de janeiro de 2020, mal escondendo sua raiva. “Uma ditadura é um regime no qual não se mudam jamais os dirigentes”.7 Ainda que pudéssemos contestar o termo “ditadura”, não podemos negar que a Constituição atual permite efetivamente que um “clã” “decida as leis” a despeito do “respeito ao outro” (o opositor, o eleitor, o cidadão). A “virada do rigor” decidida em 1983 por Mitterrand violando seus compromissos eleitorais de 1981 foi um sinal precursor.
Essa lógica não impede que o chefe de Estado se coloque excepcionalmente sob o julgamento dos cidadãos, mesmo que a Constituição não o obrigue a isso. Mas ele o faz, soberanamente, segundo sua boa vontade, ao convocar, por exemplo, um plebiscito a cujo resultado ele tem a liberdade de obedecer ou não: em 1969, o general De Gaulle pediu demissão após a rejeição do projeto de regionalização pelos eleitores, o que não foi o caso de Jacques Chirac, que, em 2005, depois da vitória do “não” no referendo sobre o Tratado Constitucional Europeu, se contentou em responsabilizar seu primeiro ministro, Jean-Pierre Raffarin. Seu sucessor, Nicolas Sarkozy, foi pior: ele ignorou o voto, recusando um novo referendo sobre um tratado idêntico em 2008 (Tratado de Lisboa), o que era imposto pelo princípio do paralelismo das formas jurídicas. No caso da reforma da previdência de 2010, ele chegou a contradizer abertamente suas promessas de campanha.
A “estabilidade”, portanto, custa caro para a democracia francesa. O descrédito nos últimos anos da IV República, cujo debate institucional herdou, permitiu por muito tempo que se impedisse qualquer reflexão sobre a imperiosa necessidade democrática. Invocada desde então como um talismã, a “estabilidade” inverte as hierarquias, relegando a legitimidade popular ao segundo plano: importa que o poder dure, não necessariamente que tenha apoio dos cidadãos. Ainda que um regime parlamentar possa desfigurar a democracia sob o efeito de uma obsessão similar, a concentração atual dos poderes na mão presidencial, sem equivalente no Ocidente democrático, torna a vida política dependente das qualidades pessoais do locatário do Élysée, que pode usar e abusar de sua situação sem contrapeso. Superdeterminante, a eleição presidencial se torna para o eleitor uma espécie de fuzil de um tiro só que erra regularmente o alvo de suas aspirações políticas. Monolítica, a prática institucional anestesia qualquer debate contraditório. “Não há mais democracia quando nada do que vem do povo é ouvido”,8 escreveram quinze personalidades em uma tribuna no dia 29 de janeiro de 2020. Ao fazer isso, a legitimidade do poder não é atingida?9
Pois a democracia surgiu, com o político Clístenes de Atenas, na Grécia antiga, para responder às contradições que atravessam a sociedade e fornecer uma solução vinda de um processo aceito por todos.10 Assim, ela é ao mesmo tempo um instrumento de adaptabilidade e uma busca por estabilidade. A história da França oscila entre, por um lado, a aspiração ao chefe tranquilizador que ignora qualquer contestação, como Napoleão III liquidando fisicamente os oponentes ao golpe de Estado de 1851, e, por outro, a representação política dos conflitos que permite as evoluções necessárias, como foi o caso no final do século XIX, período que não deixa de lembrar o atual. Depois da queda do Segundo Império, do massacre da Comuna de Paris e da breve passagem de Adolphe Thiers pelo poder, o presidente Patrice de Mac-Mahon (1873-1879) tentou estabilizar e legitimar um regime de ares monarquistas. Duas eleições legislativas e senatoriais consecutivas vencidas pelos republicanos conduziram à sua demissão e à instalação da III República. Qualificaríamos hoje de desestabilizadora a célebre interjeição do deputado Léon Gambetta a Mac-Mahon em 15 de agosto de 1877: “Quando o povo terá se pronunciado, será preciso se submeter ou se demitir”? Se, na época, a Câmara dos Deputados, depois o Senado, pôde ser eleita contra a vontade presidencial, foi precisamente porque as duas legitimidades não eram interdependentes. Na verdade, a questão hoje ainda é: qual é o papel da democracia na construção do contrato social?
A estabilidade política, alfa e ômega de todos aqueles que se assustam com qualquer tipo de mudança, frequentemente gera como consequência a instabilidade social. Claro, podemos dizer, como o primeiro-ministro Jean-Pierre Raffarin, que “não é a rua que governa” e que “a política foi justamente inventada para substituir a violência”.11 Mas o que foi inventado há mais de 2 mil anos por Clístenes para substituir a violência não foi a política em geral, mas a democracia. E, quando a tensão social se exacerba (manifestações repetidas e maciças, greves em profusão etc.), o recurso ao sufrágio universal não deveria permitir que os conflitos fossem decididos, em vez do autoritarismo presidencial?
Essenciais, as relações de força ideológicas e as lutas populares devem encontrar sua expressão nas instituições, sob pena de vê-las surgir sob outras formas. Muito logicamente, diante do bloqueio das instituições hoje, quando as desigualdades econômicas e sociais aumentam, formas de violência se desenvolvem, cujo símbolo reside nas violências aos domicílios dos eleitos da situação durante o verão de 2019 e o inverno de 2019-2020. Manifestantes constroem até mesmo guilhotinas de papelão. Do presidente do Senado, Gérard Larcher, ao antigo guarda dos selos Robert Badinter, passando pelos principais chefes políticos, todos pedem calma. Mas, para ser crível, a condenação dos excessos deve levar em conta a violência social sofrida pela população e a resposta policial extremamente brutal às manifestações. Pode haver respeito aos eleitos quando estes não respeitam os eleitores? A adoção do Tratado de Lisboa pelo Parlamento abriu uma ferida que não fechou. Isso explica, sem dúvida, a popularidade do referendo de iniciativa cidadã reivindicado por diversas associações e manifestantes desde o movimento dos coletes amarelos.
O povo, um conceito desprezado
Claro, a natureza das instituições não explica tudo. Alain Supiot, professor do Collège de France, demonstrou como, ao apresentarem a globalização como um fato de natureza e não como uma construção humana discutível, as principais forças políticas podem constituir uma deficiência diante dos eventos ou um fator agravante de derivas gerais. A nocividade da Constituição atual explode, assim, em pleno dia ao aumentar o efeito das negações da esquerda de governo, das confusões ideológicas surgidas com o desaparecimento da União Soviética e do aperto imposto pelos tratados europeus. Depois da queda do Muro de Berlim, a globalização serve de bússola ideológica para os dirigentes ocidentais. As instituições, por isso, ampliaram a distância entre os cidadãos e os representantes.12 Então não é por acaso que se vê como a ideologia oficial despreza o próprio conceito de povo13 quando este aparece como um estandarte nas manifestações que se multiplicam pela França. É essa divergência que subentende a famosa sentença de Jean-Claude Junker, então presidente da Comissão Europeia: “Não há democracia contra os tratados que já foram ratificados”. Como então qualificar o Brexit?
Ao deixarem a “estabilidade” nas mãos somente do chefe de Estado, em vez de fazerem disso um assunto político arbitrado pelos eleitores, as instituições atuais mergulham a França em um coma político profundo, permitindo aos dirigentes fechar os ouvidos a qualquer contestação. Contradição inesperada: enquanto, no espírito de seus criadores, a V República deveria dar à França toda a sua força para enfrentar as questões internacionais de então, elas favorecem hoje a submissão do Estado a todas as ordens da globalização financeira ou de Bruxelas. Diante de uma geopolítica em movimento, a Constituição francesa estampa sua especificidade: a quase impossibilidade de derrubar o governo ou mudar a situação ao longo do mandato.
Evidentemente, uma mudança de instituições não reestabelecerá num toque de mágica uma vida democrática mais adaptada às necessidades da população e aos interesses do país. Só há sentido se ela se apoiar em uma reconstrução do povo republicano, quer dizer, em uma reapropriação da coisa pública pelos cidadãos. Ao construir a relação de forças, o movimento social deve, como sempre, fazer evoluir o direito. É o sentido das reivindicações de milhares de manifestantes e de militantes que pedem novas instituições.14 “Não podemos resolver um problema”, dizia Albert Einstein, “com o mesmo modo de pensar que aquele que o gerou.”
*André Bellon é presidente da Associação por uma Constituinte; e Anne-Cécile Robert é jornalista do Le Monde Diplomatique.
1 Entrevista informal com os autores.
2 Cf. Bastien François, Le Régime politique de la Ve République [O regime político da V República], La Découverte, Paris, 2010 (1. ed. 1998).
3 Plon, 1964.
4 Mathias Bernard, Histoire politique de la Ve République [História política da V República], Armand Colin, Paris, 2008.
5 Assembleia Nacional, coletiva de imprensa, 29 jan. 2020.
6 Ler Mathieu Chaigne, “Le moment autoritaire d’Emmanuel Macron?” [O momento autoritário de Emmanuel Macron?], Figarovox, 10 jan. 2020. Disponível em: lefigaro.fr.
7 Radio J, 24 jan. 2020.
8 “Non, monsieur Macron, nous ne sommes plus en démocratie” [Não, senhor Macron, não estamos mais na democracia], L’Humanité, 29 jan. 2020.
9 Ler “Bonapartisme ou Constituante” [Bonapartismo ou Constituinte], Le Monde Diplomatique, abr. 2014.
10 Ler “Pas de démocratie sans conflit” [Não há democracia sem conflito], Le Monde Diplomatique, jun. 2009.
11 Tuíte de 26 de julho de 2019.
12 Cf. Alain Supiot, L’esprit de Philadelphie. La justice sociale face au marché total [O espírito da Filadélfia. A justiça social diante do mercado total], Seuil, Paris, 2010.
13 Ler “Peu(ple) leur chaut!” [Pouco (povo) importa!], Le Monde Diplomatique, nov. 2003.
14 Ler Martin Cadoret, “Ces mouvements citoyens qui veulent renouveler la démocratie” [Esses movimentos cidadãos que querem renovar a democracia], Reporterre, 9 mar. 2017. Disponível em: reporterre.net.