A vacilante resistência aos transgênicos
O Brasil era o único dos três grandes produtores de soja a conter a disseminação de sementes transgênicas em seu território. Mas a paciente “estratégia de contaminação” da Monsanto associada ao poderoso ’lobby’ do agronegócio vem derrubando esta última fronteiraJean-Jacques Sevilla
Perto de destronar os Estados Unidos do primeiro lugar entre os exportadores de soja, o Brasil é o único dos três grandes países produtores que conteve até aqui a disseminação das variedades transgênicas desta leguminosa em seu território1. Atingida em cheio pela bancarrota argentina2, a Monsanto, empresa americana de biotecnologia que monopoliza 80% das vendas mundiais de sementes de organismos geneticamente modificados (OGM), espera logo receber os dividendos da paciente “estratégia de contaminação” – segundo a expressão da agrônoma Flavia Londres, animadora da campanha “Por um Brasil sem transgênicos” – que montou no Cone Sul.
Em setembro passado, o presidente Luiz Inácio: “Lula” da Silva, figura do altermundialismo3 e aliado histórico dos ecologistas, prometia “uma solução científica, não ideológica” para o quebra-cabeças apresentado pela proliferação, pelo jeito incontrolável, de plantações transgênicas ilegais na zona fronteiriça com a Argentina devido às deficiências crônicas dos serviços de fiscalização do Ministério da Agricultura4. Como a banalização dos transgênicos não causou debate no país vizinho, a Monsanto impôs seu monopólio no mercado local das sementes de soja. Há seis anos que sua variedade Roundup Ready, tolerante, graças à manipulação genética, ao herbicida Roundup, fonte de perto de 50% de seu faturamento, alimenta um intenso contrabando com destino aos estados brasileiros limítrofes.
Herança incômoda
Em vez de ficar circunscrito à região meridional, o comércio ilícito, encorajado pela perspectiva de uma próxima legalização, se estende agora para o norte do país
Confrontado com uma herança particularmente incômoda de administrar, o presidente brasileiro enviou ao Congresso, em 31 de outubro de 2003, um projeto de lei criando um Conselho Nacional de Biossegurança, composto de doze ministros e encarregado de decidir em última instância sobre todas as questões relacionadas com os transgênicos. Militante do sindicato dos seringueiros da Amazônia no tempo de Chico Mendes, o líder ecologista assassinado em dezembro de 1988, Marina Silva, Ministra do Meio Ambiente, salvou o que ainda era possível do princípio da precaução, inscrito, aliás, na Constituição, conservando a possibilidade de exigir um estudo de impacto antes da cultura experimental ou da comercialização dos vegetais transgênicos.
Note-se que a designação para o cargo de relator do projeto de lei do deputado federal do Partido dos Trabalhadores (PT), Aldo Rebelo, notoriamente favorável aos transgênicos, vai indubitavelmente facilitar a adoção de emendas que ameaçam reduzir consideravelmente as prerrogativas do Ministério do Meio Ambiente.
Lobby influentíssimo
Comandado pelo Ministro da Agricultura, Roberto Rodrigues, ex-presidente da Associação Brasileira de Agrobusiness e proprietário de uma plantação de soja de 4 000 hectares no estado do Maranhão, no Nordeste, o influentíssimo lobby dos grandes produtores agrícolas já mutilou o princípio de precaução, do qual o presidente se colocava como guardião antes de sua eleição. De fato, foi sob a pressão do único setor econômico poupado pela recessão que o chefe de estado suspendeu, em março, a moratória para os transgênicos por uma “medida provisória5“, aprovada sem resistência pelo Congresso, autorizando a comercialização da colheita, já em curso, da soja transgênica.
E isto desprezando as decisões judiciais em vigor : depois de uma ação impetrada conjuntamente pelo Instituto de Defesa dos Consumidores (Idec) e do Greenpeace, uma medida de salvaguarda, editada em setembro de 1998 por um juiz federal limita, à espera de um relatório oficial de impacto ambiental, o uso de transgênicos nas plantações experimentais sob controle público. Uma outra medida provisória, publicada no Diário oficial de 25 de setembro alargou substancialmente a brecha. Ela prevê, embora a semeadura tenha começado em outubro, o levantamento da interdição do cultivo de variedades transgênicas – no caso aquela patenteada pela Monsanto, pois é a única disponível no Brasil – até a próxima colheita, cuja venda está igualmente liberada.
Para aproveitar a anistia de fato que lhes é oferecida, os agricultores fora da lei devem, notadamente, comprometer-se, em um documento chamado “termo de ajuste de conduta”, a retirar suas sementes transgênicas de suas próprias reservas de grãos6. Além disso, dentro do mesmo registro de votos piedosos, a soja liberada só poderá ser comercializada no estado em que foi produzida. Os contraventores se expõem – virtualmente – a multas e ao bloqueio dos créditos nos bancos estatais.
O epicentro do tráfico de sementes
A Ministra do Ambiente, ícone do movimento verde internacional, vive engolindo sapos, não apenas em relação aos transgênicos e a importação de pneus usados
No estado do Rio Grande do Sul, epicentro do tráfico de sementes, os agricultores convertidos à Roundup Ready devido à economia de herbicidas organizaram desfiles de tratores para saudar a decisão do governo. Em vez de ficar circunscrito à região meridional, a mais afetada por uma “contaminação” difícil de avaliar pela falta de controle, o comércio ilícito, encorajado pela perspectiva de uma próxima legalização, se estende agora para o norte do país. Segundo o ministério da Agricultura, 13 a 14% da próxima colheita de soja serão transgênicos.
“Os produtores de soja do Rio Grande do Sul exportam legalmente os grãos transgênicos a granel para outros estados. Basta pagar o imposto de circulação de mercadorias”, explica Iwao Miyamoto, presidente da Associação Brasileira dos Sementeiros7. Os índios Caingangue de Cacique Doble, a 400 quilômetros de Porto Alegre, decidiram afrontar abertamente a proibição de cultivar transgênicos nas reservas indígenas. “Não podemos ficar em desvantagem em relação aos brancos”, proclama seu jovem chefe de 22 anos, Jacson Silveira8. Sua comunidade explora coletivamente mil hectares plantados, há três anos, com soja transgênica.
“Transgênico da política”
Sustentada pela alta contínua dos preços na bolsa de Chicago, devido à seca que afeta há dois anos os EUA, seu progresso representa uma ameaça a mais para a floresta amazônica
Marginalizados pela política do fato consumado, os ecologistas e seus aliados pularam nos tamancos. Amigo de José Bové e membro da coordenação nacional do Movimento Sem Terra (MST), João Pedro Stédile qualificou o chefe de estado de “transgênico da política”. O ex-governador do estado do Amapá e defensor intransigente do desenvolvimento sustentável na Amazônia, João Capiberibe, do Partido Socialista Brasileiro, demitiu-se de suas funções de vice-líder da maioria presidencial no Senado. Fernando Gabeira, deputado federal, ex-guerillheiro e fundador do Partido Verde, que ele abandonou depois, deixou o Partido dos Trabalhadores do qual Lula é o dirigente histórico. “Meu sonho não acabou, mas confesso que me enganei de sonho”, declarou na tribuna da Câmara na hora de oficializar a ruptura.
Já a Ministra do Ambiente, ícone do movimento verde internacional, vive engolindo sapos, não apenas em relação aos transgênicos e a importação de pneus usados, mas também a respeito do Plano Nacional de Desenvolvimento da Amazônia, que ignora soberbamente os ataques potenciais aos ecossistemas das obras de infra-estrutura previstas. Além do mais, o decreto presidencial regulamentando a etiquetagem obrigatória dos produtos contendo mais de 1% de transgênicos virou letra morta.
O murmúrio dos partidários de Marina Silva manifestou-se de novo depois da nomeação, por ordem presidencial, de Paulo Pimenta, deputado federal (PT) do Rio Grande do Sul, como relator da segunda medida provisória sobre a soja. Recentemente convertido à liberação total da soja transgênica, Pimenta acaba de participar, em companhia de sete parlamentares brasileiros, de uma visita guiada às instalações da Monsanto em Saint-Louis, no Missouri. “O jogo está feito”, limitou-se a constatar outro deputado do PT, Adão Pretto, representante do pequeno campesinato do Sul.
Ameaça à floresta amazônica
A Monsanto evitou lançar seus implacáveis detetives privados em cima dos utilizadores clandestinos da Roundup Ready no Brasil. A hora do suculentos royalties ainda não chegou
Descoberta nos anos 1960 pelos produtores de óleo do Rio Grande do Sul, o “ouro verde” brasileiro, está em primeiro lugar nas exportações9 e, desde então, conquistou as férteis “terras roxas” do Paraná e do Mato Grosso do Sul, os cerrados do Planalto Central, a Amazônia e até Roraima, o estado mais setentrional do Brasil, cobrindo hoje perto de 20 milhões de hectares. Sustentada pela alta contínua dos preços na bolsa de Chicago, devido à seca que afeta há dois anos as regiões produtoras dos Estados Unidos, seu progresso fulminante representa, a partir de agora, uma ameaça a mais para à floresta amazônica devastada há 30 anos pelo avanço da fronteira agrícola.
Eleito em 2002 governador de Mato Grosso, Blairo Maggi, o “rei da soja”, encarna o sucesso do “desbravador”. Ele é o primeiro produtor mundial individual com cerca de 300 000 toneladas de grãos colhidos este ano em suas fazendas.
O mercado vai, como profetiza o ministro brasileiro da agricultura, “determinar o que o país deve produzir?” no fim de outubro, durante a XXIa reunião patronal Brasil-Alemanha realizada em Goiânia, capital do estado de Goiás, no centro do país, Renate Künstat, ministra alemã da defesa do consumidor e da agricultura, lembrou sem rodeios a rejeição dos transgênicos por 70% de seus compatriotas. “Quem cultiva produtos transgênicos, deverá adaptar-se às regras rígidas do mercado europeu10“, ela deixou claro. Entre outros, o “filão limpo” montado pelo Carrefour nesta região está em perigo. Ora, a Holanda e a França absorvem 50% das exportações brasileiras de torta de soja destinada à alimentação animal.
Terreno minado
Será que a resistência do governo do Paraná será simplesmente um último e honroso combate antes da rendição ou primícias de uma guerrilha durável?
A Monsanto, é verdade, minou, minuciosamente, o terreno. Conhecida pela espionite implacável que exerce nos campos dos Estados Unidos e do Canadá, a companhia evitou lançar seus detetives privados em cima dos utilizadores clandestinos da Roundup Ready no Brasil. A hora de exigir os suculentos royalties aos quais sua patente lhe dá direito ainda não chegou. Enquanto espera, sua “estratégia de contaminação” apóia-se em campanhas publicitárias, orquestradas em escala nacional na época da semeadura, gabando a redução mirabolante dos custos de produção graças ao recurso à biotecnologia.
A maioral dos transgênicos, aliás, firmou, desde 1997, um acordo de cooperação técnica com a estatal Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agrícola) envolvendo a elaboração de uma gama de sementes de soja transgênica adaptadas à diversidade dos solos brasileiros. O dispositivo de pré-conquista foi terminado com a inauguração, em 2001, perto de Salvador, de uma fábrica (a mais importante do grupo fora dos Estados Unidos) que produz notadamente a Roundup. O Fundo de Desenvolvimento do Nordeste (Finor) financiou 80 milhões de euros de um investimento inicial de 300 milhões de euros.
Entretanto, a Monsanto ainda não está com a partida ganha. A Assembléia Legislativa do Paraná aprovou, por esmagadora maioria, em 14 de outubro, a proibição, até 31 de dezembro de 2006, da “cultura, manipulação (com exceção das culturas experimentais autorizadas), da importação, da industrialização e comercialização de transgênicos” em todo o território do estado fronteiriço com a Argentina. Posta em vigor em 27 de outubro e já contestada por recursos de sindicatos de agricultores junto ao Tribunal Federal Superior de Brasília, a lei se aplica notadamente ao porto de Paranaguá, principal centro de passagem das exportações brasileiras e paraguaias de soja, onde testes começaram a ser realizados a fim de detectar os carregamentos dos grãos transgênicos banidos. Simplesmente um último e honroso combate antes da rendição ou primícias de uma guerrilha durável? (tradução:Maria Elisabete de Almeida)
1 – Segundo o departamento de agricultura dos Estados Unidos (USDA), o Brasil vai exportar, na colheita 2003/2004, 26 milhões de toneladas para os Estados Unidos. Os Estados Unidos continuam, entretanto, o primeiro produtor (67 milhões de toneladas), à frente do Brasil (60 milhões de toneladas) e da Argentina (37 milhões de toneladas). Estes três países representam mais de 80% das exportações mundiais das quais a China é a primeira compradora.
2 – 1,75 bilhões de dólares de perdas para 4,94 bilhões de dólares de faturamento no ano fiscal de 2002.
3 – Neologismo oriundo da palavra de ordem « Um outro mundo é possível », do Fórum Social Mundial (N.T.).
4 -O Ministério da Agricultura só dispõe, em escala nacional, de 2 700 fiscais.
5 – Decreto que entra imediatamente em vigor antes de ser examinado pelo Congresso em um prazo de sessenta dias. Passado este prazo, a “medida provisória” só pode ser prorrogada uma única vez e pelo mesmo prazo de validade.
6 – Contrariamente aos grãos de milho transgênico colhidos, impróprios para a reprodução, os da soja transgênica podem – por enquanto – servir de sementes : a Monsanto já obteve do departamento americano de agricultura a autorização para pôr no mercado o “terminator”, a soja transgênica estéril (O terminator é um gene que no momento da germinação, produz uma toxina