A violência do Estado brasileiro
A quem interessa manter a insuficiência, a ineficiência, a ineficácia ou até a eliminação das políticas públicas em áreas como saúde, educação, cultura, segurança, mobilidade urbana, infraestrutura, saneamento básico? Se um governo não está disponível para aprimorar e assegurar políticas que visem melhorias da vida de seus cidadãos, a quem ele serve?
Estado e governo são aparatos distintos de poder. O Estado em sentido estrito se faz representar para os cidadãos por meio das suas instituições. Os governos atuam no comando político das instituições públicas de forma direta, por intermédio de seus gestores na operacionalização das políticas.
No Brasil há uma percepção da sociedade de que o Estado não se faz presente em algumas áreas, principalmente em sua dimensão material. As “ausências” podem ser particularmente percebidas na cultura, educação, saúde, uso e ocupação da terra, no transporte e na mobilidade urbana. Estar ausente ou presente, em se tratando de políticas públicas tem se confirmado uma escolha política.
Há uma intencionalidade explícita quando os governos não investem em determinados tipos de política pública. Os abandonos são propositais. Como estratégia de governo, não investir é a mesma coisa que deixar acabar. Os argumentos para o abandono são comumente justificados com falácias sobre a ineficácia dos equipamentos públicos e a morosidade de sua operacionalização.
A não destinação de recursos para determinadas áreas faz com que assistamos espaços públicos sendo sistematicamente deteriorados, museus sendo transformados em ruínas e cinzas, a inexistência de saneamento básico, edificações escolares decadentes, professores mal remunerados, universidades e hospitais sem infraestrutura adequada, unidades de saúde sem médicos e transporte público precário. A presença política do Estado nestas instituições públicas é percebida pelas formas e pelas escolhas de gestão.
Para a população, umas das formas mais atuantes de demonstração do Estado é a sua completa ausência em áreas cruciais para o desenvolvimento humano e social. O não investimento em direitos básicos aumenta o nível de desigualdade social pela qual o Brasil é mundialmente conhecido.
Friedrich Engels (1820-1895) estudou as raízes da desigualdade social na obra “A situação da classe operária na Inglaterra”, e avaliou que a Lei dos Pobres, aprovada em 1601 no reinado de Elisabeth, não resolvia o problema da pobreza. Esta Lei estabelecia como dever do Estado, conceder assistência e subsídios mínimos aos pobres por meio de gêneros alimentícios e moedas. Para o autor, a assistência dada pelo Estado mal mantinha vivos os súditos da rainha.
Enquanto para Engels não havia razão para sua naturalização da desigualdade social, para Thomas Malthus (1766-1834) a promoção da pobreza e da miséria era parte do processo natural. A teoria malthusiana preconizava que a assistência prevista na Lei dos Pobres não tinha sentido. Sua intenção era eliminar a assistência social feita pelo Estado, sob o argumento de que a Lei só favorecia a preguiça e condenava as pessoas à dependência.
Na Inglaterra, no século 19, com a consolidação da Revolução Industrial, houve um agravamento da pobreza, mesmo com o avanço tecnológico. Um contexto marcado por sublevações sociais e novas formas de proteção social, muitas delas inspiradas na teoria malthusiana de controle demográfico da população.
O pensamento malthusiano encontrou nas classes mais favorecidas muitos adeptos. Desta forma, a classe que possuía o poder socioeconômico impôs aos indivíduos a harmonização das necessidades aos recursos materiais e humanos geridos dentro da lógica da escassez, ou seja, eles receberiam assistência, pouca ou nenhuma. Consolidou-se aí, portanto, uma compreensão perversa da relação do Estado, governo e sociedade por intermédio da preservação da estrutura desigual das necessidades humanas, limitadas à manutenção da existência física dos indivíduos.
Este é apenas um exemplo citado a partir da obra de Engels. Existem na história da humanidade, diferentes realidades e contextos quando tratamos de direitos sociais. A partir deste exemplo entendemos que o capitalismo em suas diversas fases, quando amplia o desenvolvimento científico e tecnológico, sacrifica e submete a classe que não possui capital, mas vende sua força de trabalho para ele, condenando-a a lutar quotidianamente pela satisfação de suas necessidades mínimas. Sem uma ação efetiva do Estado para eliminar a desigualdade social, a provisão dos direitos dos indivíduos e o seu acesso aos bens materiais de forma ampla e igualitária, não acontece.
Para trazermos esta perspectiva de análise aos tempos atuais, pensemos por um momento no acesso dos indivíduos pertencentes à classe social de baixa renda ou sem renda, à saúde pública.
No caso do setor de saúde, ao olharmos para o cotidiano e ao realizarmos uma leitura atenta das informações veiculadas pela imprensa, constatamos que a população pobre, miserável e de baixa renda não tem tido acesso ao atendimento de suas necessidades básicas.
Nada ilustra melhor isto do que as matérias jornalísticas diárias que expõem de forma reveladora o caráter problemático das políticas de saúde promovidas pelo Estado, que subjuga as necessidades dos indivíduos às restrições de seu próprio funcionamento. Só para exemplificar citamos a superlotação dos pronto atendimentos dos hospitais, os agravos à saúde dos portadores de doenças crônicas que poderiam ser prevenidos e a negação do acesso a tratamentos que poderiam salvar a vida dos pacientes com quadro clínico grave.
O que constatamos no discurso dos gestores públicos é que eles sustentam que existem muito mais pessoas para serem atendidas em suas necessidades básicas do que disponibilidade de recursos do Estado. Todavia, ao olharmos para os segmentos da população pertencentes às classes sociais de alta renda observamos que elas têm tido amplo acesso aos serviços de saúde por meio dos setores privados, pagando-os, ao passo que, as classes menos favorecidas dependem, por incapacidade financeira, exclusivamente do Estado que vem se mostrando deliberadamente omisso ou ausente, determinando um agravamento da desigualdade social.
Ao observar que as classes sociais localizadas na base da pirâmide não podem se qualificar para a cidadania e ter o direito à saúde garantido, é possível identificar no século 21 a permanência das concepções malthusianas sob a forma do Estado liberal. Sendo assim, a ideia do Estado liberal como promotor e provedor das políticas públicas em sintonia com as necessidades do conjunto da sociedade, é incompatível.
O que de fato ocorre é que o Estado liberal em sua transformação histórica tem sobreposto permanentemente os interesses do mercado aos interesses dos mais fracos e dos mais pobres.
Dois exemplos são suficientes para identificar a lógica de mercado adotada pelo Estado liberal no setor público de saúde. O primeiro, diz respeito ao acesso às tecnologias mais complexas de diagnóstico e tratamento. Ao realizar uma leitura do Relatório de Gestão de 2017 da Secretaria de Atenção à Saúde do Ministério da Saúde do Brasil, publicado em 2018, surpreendemo-nos com a constatação de que, apesar de um volumoso e representativo gasto de recursos públicos destinados para os setores privados detentores dessas tecnologias, aproximadamente em torno de 2% da população tem acesso à ela. Ressalva-se, portanto, que as pessoas não possuem êxito no acesso aos serviços de alta tecnologia, apesar da pesada carga financeira que ela impõe aos cofres públicos. Estas pessoas literalmente são alijadas da possibilidade de tratamento de suas morbidades ou são submetidas à sacrifícios hercúleos na busca de atendimento no serviço privado. Alternativas como a criação de serviços estatais de alta tecnologia para o setor de saúde pública são desprezadas pelos gestores, o que tem garantido os interesses dos serviços privados e os altos custos destes.
Conforme dados divulgados pela Agência de Notícias do Instituto Brasileiro de Geografia Estatística (IBGE), a pobreza no Brasil aumentou e atingiu o número de 54, 8 milhões de brasileiros. Isso significa um aumento de mais de dois milhões de pessoas em 2017 que viviam com menos de R$ 406 por mês e um acréscimo de 25,7 para 26,5% no nível de pobreza dos brasileiros. A metodologia utilizada pelo IBGE foi a mesma adotada pelo Banco Mundial, que considera rendimentos abaixo de US$ 5,5 dólares diários, um risco para o ser humano em qualquer lugar do mundo.
O segundo exemplo diz respeito ao alto preço dos medicamentos em razão da proteção patentária que resguarda os interesses dos grandes monopólios farmacêuticos e impede o acesso dos mais pobres aos insumos e medicamentos. O Estado ao não buscar soluções para o problema da falta de acesso a tais insumos revela a sua opção política em privilegiar os lucros das grandes corporações, na medida em que tais empresas demandam para o Estado apenas seus interesses lucrativos. Como resultado, a igualdade de acesso inexiste para as classes de baixa renda. Aqui encontramos novamente, em lugar da imparcialidade da abordagem política no sentido da autonomia do Estado em relação ao mercado, a operacionalização de políticas públicas na lógica da escassez.
Indagamos, finalmente, a quem interessa manter a insuficiência, a ineficiência, a ineficácia ou até a eliminação das políticas públicas em áreas como saúde, educação, cultura, segurança, mobilidade urbana, infraestrutura, saneamento básico? Se um governo não está disponível para aprimorar e assegurar políticas que visem melhorias da vida de seus cidadãos, a quem ele serve?
O cidadão empobrecido caminha para o Estado toda vez que se dirige à unidade de saúde, ao hospital ou quando leva seu filho à escola. Ele se ressente da presença do Estado quando sacoleja dentro de ônibus lotados, quando cai de bicicleta em ruas esburacadas, quando a água não entra na sua casa ou quando é acometido por uma doença devido à falta de saneamento básico no seu munícipio.
Há uma escolha do Estado em conceder de forma paliativa, ou muitas vezes em não conceder, direitos que possam efetivamente acabar com a pobreza ou eliminá-la por completo. O cidadão que repete que foi abandonado pelo Estado, deve entender que o Estado está presente na escassez e no abandono. Investir ou não são questões de decisões políticas. Acabar com a pobreza também. Qualificar os equipamentos públicos e garantir um serviço eficiente ao cidadão também é uma opção política. O “seu” José e a dona Maria não têm condições para fazer lobbies no Senado e no Congresso Nacional para que os deputados e senadores defendam seus direitos, em condições paritárias aos ruralistas, às escolas privadas e às grandes corporações. Eles acreditam que o voto concedido aos seus representantes seja a garantia dos seus direitos atendidos. Na prática, no entanto, o que vemos é a continuação da lógica perversa do controle social de Malthus, por meio da manutenção da escassez e da restrição do acesso aos bens e direitos. Morte aos pobres, morte aos seus direitos sociais e trabalhistas, morte aos serviços públicos gratuitos. Uma das expressões mais perversas dessa lógica é a completa morte da aposentadoria para os pobres, conforme o novo projeto que se desenha pelo atual governo. O combate à pobreza se traduz na violência com que são atacados os direitos humanos, peculiar e emblematicamente, por exemplo, nas limitações impostas aos povos autóctones do Brasil. Os Direitos Humanos, se traduzem no respeito à diversidade cultural, religiosa, social, mas também no dever do Estado em assegurar de forma ampla, democrática e irrestrita os direitos fundamentais à existência humana.
A presença do Estado se faz pela ausência de política específica para os mais pobres e gera a violência, o abandono e a insegurança social. Certa vez, lemos uma frase atribuída a Frei Beto, de que no Brasil, lutar pelos direitos humanos chegava a ser uma utopia, porque ainda estávamos lutando pelos direitos animais de existir, comer, vestir, habitar e viver em segurança.
Os espectros dos autoritarismos se instalam por meio da barbárie institucionalizada e das violências públicas orquestradas e percebidas nos bens públicos precarizados, nas ações de extinção dos direitos, no silenciamento da oposição e na negligência ou gestão administrativa sectária em alguns gestores. As escolhas políticas autoritárias, neste caso, demarcam as relações de divisão social que uma sociedade deseja manter ou eliminar. Por enquanto, temerosa e lamentavelmente, somente os pobres e os serviços públicos usados pelos pobres estão na mira de extinção do atual governo. É fundamental que as forças democráticas mundiais estejam atentas à atual conjuntura político-social no Brasil; os brasileiros sozinhos, não darão conta de brecar o avanço das ações que vêm promovendo e aprofundando as desigualdades sob o ritmo da condução de um governo ultraliberal que lhes impõe a perda, com velocidade nunca vista em sua história, de direitos e garantias conquistados em pretérito muito próximo.
Arlene Laurenti Ayala é enfermeira. Mestre em Saúde Pública pela Universidade Federal de Santa Catarina e Professora universitária no curso de Enfermagem do Instituto Luterano Bom Jesus/IELUSC
Giane Maria de Souza é professora, servidora pública municipal da área da cultura, mestre em Educação pela Unicamp e doutoranda em História pela Universidade Federal de Santa Catarina.