A violência e o abandono em ‘Minha cabeça dói’, de Alê Motta
Romance de estreia da autora tem como protagonista menino que é deixado pelo pai após acidente de carro
Minha cabeça dói, romance de estreia da escritora Alê Motta, já convence no primeiro parágrafo. Afinal, como não prosseguir com enorme curiosidade uma narrativa que começa com “Meu pai me levou para passear naquele carro velho uma única vez, e me abandonou, com o rosto encravado nas ferragens, depois que capotamos. Não esqueço a dor e o cheiro da bebida. Eu tinha onze anos, hoje tenho dezessete”?

Créditos: Altabooks
Se o parágrafo de abertura do livro recém-publicado pela Faria e Silva desnorteia, as páginas seguintes não deixam por menos. O romance conta a história de Otávio, um adolescente que revisita traumas da infância, especialmente aqueles provocados por um pai alcoólatra, agressivo e negligente. Tão negligente que abandona o filho após um acidente e desparece.
Otávio fica com as marcas do ocorrido: as físicas e as emocionais. Permanece no hospital por quase um ano e, por mais que se submeta a cirurgias e a novos procedimentos, não consegue se livrar da indiscreta cicatriz em seu rosto. Quando sai dali, entende que terá que lidar com olhares curiosos ou enojados pelo resto da vida.
Como autodefesa, recorre ao sarcasmo e à raiva. Pensa de forma acelerada e sem meias palavras. Assume que odeia (e não sem motivo) praticamente toda a família e encontra em Lia, a melhor amiga, uma espécie de porto seguro. Por outro lado, mantém a fragilidade de um garoto que, inconscientemente, ainda torce para que o pai retorne – de preferência com uma nova personalidade e muitos pedidos de desculpas.
Quando a mãe encontra um novo marido, Otávio passa a ter conforto financeiro, mas, em momento algum, enxerga Celso como uma figura paterna. Também não vê em Rui, filho do novo marido da mãe, um irmão. Aliás, os sentimentos em relação aos dois são complexos, por vezes conflitantes. E isso não se limita a Celso e Rui. Otávio é um personagem desamparado, aflito e em busca de vingança. Tem bastante ódio e já não luta contra isso.
Minha cabeça dói é uma história sobre descoberta, amadurecimento e violência. A linguagem crua e direta de Alê Motta reforça urgências e evidencia um mundo em que a brutalidade não abre espaço para idealizações.
A escrita minimalista da autora consegue colocar fúria e melancolia em poucas páginas, de maneira sensível e sem deixar nada de fora. Também por isso, leitores e leitoras conseguem mergulhar numa mente que agoniza e se enfurece na mesma proporção.
Assim como fez em Interrompidos e Velhos, ambos publicados pela Reformatório, a escritora mergulha sem medo nas contradições da mente humana e destaca o que há de mais verdadeiro nas feridas provocadas por violências que se perpetuam.
Bruno Inácio é jornalista, mestre em comunicação e autor de “Desprazeres existenciais em colapso” (Patuá), “Desemprego e outras heresias” (Sabiá Livros) e “De repente nenhum som” (Sabiá Livros). É colaborador do Jornal Rascunho e da São Paulo Review e tem textos publicados em veículos como Le Monde Diplomatique, Rolling Stone Brasil e Estado de Minas.