A visão corrosiva dos artistas israelenses
Raros são os países onde o impacto da história é a tal ponto inseparável de sua evolução artística. Hoje a arte de Israel reflete a desconstrução do mito sionista e o desgosto destes artistas diante da mortandade e do conflito interminável a que assistemItzhak Goldberg
Se a expressão artística israelense guarda uma especificidade própria é porque muitas vezes distinguem-se nela sinais de tensão e nervosismo, que lembram a situação política daquele do país. Ainda que a sociedade esteja dividida pelo conflito palestino, sua arte parece ignorar esta linha de cisão. Tudo leva a pensar que a quase totalidade dos artistas fez sua escolha praticamente depois da guerra do Líbano (1982), o que suscitou um traumatismo persistente na opinião pública. Inúmeras exposições, às vezes, com a participação de artistas palestinos são atos simbólicos que tentam travar um diálogo com a ajuda da linguagem artística, sobretudo com gestos que traduzem plasticamente a atualidade perturbadora de uma sociedade em que a violência é quotidiana.
Ainda que todos os criadores não assumam a declaração do pintor Moshé Gershuni em 1977 (“O único problema da arte israelense é o problema palestino”), é claro que um artista israelense, apenas raramente, abstrai esse contexto. Às vezes, tem-se a impressão que nenhuma mancha de tinta sobre a tela, nenhum traço de lápis é anódino, nunca está distante do debate que abala essa sociedade. Um exemplo entre outros é a exposição que, em novembro de 2003, reuniu, no Museu Nacional de Israel, em Jerusalém, David Reeb e Alex Levac, dois israelenses1. Alex Levac fotografa, há anos, cenas que descrevem as condições da vida quotidiana dos palestinos. David Reeb realiza telas de tamanho imponente, feitas de modo realista, como constatação em tamanho natural de uma realidade trágica. Os espectadores desfilam pelas salas imensas em silêncio, sem comentários.
Porém, poderíamos perguntar, em que essa situação difere das que caracterizam outras sociedades, engajadas em uma guerra latente ou aberta? A resposta é dupla. Por um lado, basta lembrar o silencio artístico que pairou sob a França em uma das últimas guerras coloniais, a da Argélia, para constatar que a reação “a quente” não é sempre a regra. Por outro lado, a problemática dos artistas israelenses não limita unicamente ao conflito armado, ela também coloca, inevitavelmente, a questão das relações entre o destino do povo judeu e Israel-Palestina.
Posição crítica e militante
Às vezes, tem-se a impressão que nenhuma mancha de tinta sobre a tela, nenhum traço de lápis é anódino, nunca está distante do debate que abala essa sociedade
Certamente, não se trata de sugerir que cada vez que um pintor ou um escultor israelense engaja-se na criação, o faça sempre com a vontade de interrogar as “raízes” ou a noção controversa de pertinência a essa terra. Não se pode, entretanto, negar que a posição crítica, às vezes militante, da arte israelense ultrapassa o “simples” diálogo com a realidade e, mais profundamente, interroga-se sobre as componentes judaicas da nação na imbricação da questão palestina e da questão judaica.
Diante das exposições explicitamente políticas, outras manifestações de imenso sucesso têm se difundido há alguns anos. Todas elas têm um ponto comum: o de carregarem forte sensação de nostalgia, como a do Museu de Arte Moderna de Tel Aviv (dezembro 2003 onde centenas de clichês fotográficos permitiam ao público local dirigir um olhar sequioso para a época ultapassada dos pioneiros2 . Ao longo do percurso, os visitantes paravam e trocavam confidências. Alguns, os mais velhos, mostravam aos jovens que os acompanhavam, apontando para uma foto às vezes amarelada, um lugar que eles conheceram outrora. Como um caminho estreito que atravessava as colinas de areia e se tornou a principal artéria de Tel-Aviv. Como a construção branca, no estilo otomano, atualmente derrubada e que por muitas décadas foi um cinema. A praia deserta na qual foram construídos os Hiltons e os Sheratons.
Nesse caso, ainda, aparentemente, nada de novo. Mesmo se a nostalgia “não é mais o que era”, a atração por um passado mais sereno, pré-industrial, ecológico é um fenômeno ocidental, talvez, mundial. A especificidade da nostalgia “à israelense” é que a volta ao passado tem um duplo recorte. Ou funciona como evocação de um período santificado na memória desse país, a época dos pioneiros, modelo histórico de heroísmo e de pureza. Ou, desmistificada, desconstruída, é empregada com pouca adequação, com uma vontade de revisitar seu aspecto ideológico em um processo que se pode chamar de “retorno ao retorno”. Em outros termos, a nostalgia torna-se ou uma terapia de grupo que permite escapar temporariamente de uma realidade dificilmente suportável, ou seja, uma terapia de choque que obriga dirigir um olhar duro, às vezes, saudável sobre o passado e, ao mesmo tempo, sobre o futuro.
O “próximo ano em Jerusaém”
A posição crítica, às vezes militante, da arte israelense interroga-se sobre as componentes judaicas da nação na imbricação da questão palestina e da questão judaica
Raros são os países onde o impacto da história é a tal ponto inseparável de sua evolução artística. Paradoxalmente, constata-se a evidência de que a criação plástica, em Israel, teve como alvo, principalmente, a idéia de retorno. Essa situação inscreve-se no sonho de volta a Sião, a promessa que atravessou os dois mil anos da Diáspora, onde se interpenetram o território da realidade, espaço funcional no qual os judeus viviam e o território do imaginário, espaço “prometido” para onde se levam todos os desejos e todas as aspirações, o do “próximo ano em Jerusalém”…
Inseparável dessa volta sonhada do povo judeu para uma terra prometida, a arte do início de século esqueceu, às vezes, as realidades locais, a presença dos palestinos e seu sentimento de exclusão e invasão. De origem européia, esses que chegam figuram em suas telas paisagens bucólicas, um paraíso fabricado, um estereótipo que apresenta inúmeros pontos comuns com a pintura orientalista. Entretanto há uma diferença de dimensão: os criadores orientais sempre se colocaram na posição de espectadores, de turistas com bilhete de ida e volta, de preferência, na primeira classe. Para a arte israelense, munida com um bilhete apenas de ida, trata-se muito mais de reencontro do que de volta3.
Assim, os trabalhos de um Reuven Rubin ou de um Nahum Gutman, que mostram os pioneiros em confraternização com os felás em um universo mítico, não conflituoso, onde a esperança reina soberana, podem ser interpretados de duas maneiras. Pode-se ver ali as etapas de uma arte que “inventa-se”, em sincronia com o pensamento sionista, e que se inscreve em um longo processo da inexorável conquista simbólica da pátria do Outro. Porém, pode-se igualmente considerá-la como expressão de um sionismo socialista tingido com o romantismo populista russo, messiânico e utópico. Ingênuos, sem dúvida, esses artistas crêem verdadeiramente em uma sociedade não conflituosal, onde a co-existência de dois povos é não apenas imaginável, mas desejável.
O pós-sionismo artístico
É claro que a desconstrução dos mitos não é privilégio do mundo da arte. Ela faz parte do que se chama de pós-sionismo, um pensamento presente na nova geração de historiadores
Com certeza, é inevitável que essa leitura, no clima em que vivemos, só possa atrair sarcasmos. A partir dos anos 1970, os criadores israelenses fazem dessas imagens fundadoras, desses ícones intocáveis, explicitamente, uma releitura sem qualquer concessão. Por exemplo, A Estrada para Jerusalém (1989) de Abraham Offek é angulosa e tortuosa, o horizonte pesado com nuvens ameaçadoras, muito distante das visões luminosas e otimistas dos arredores de Jerusalém. Nos Idealistas (1978), de Yosl Bergner, os pioneiros com ares de mendigos, mostram claramente a falência do sionismo na versão atual. Aliás, O enterro dos pioneiros, do mesmo ano, é uma imagem terrível de uma Ceia sem esperança de salvação. Mais radical e mais explícito ainda é Yigal Tomarkin que, em 1979, apresenta um “retrato de grupo” dos dirigentes judeus dos anos 1920, vestidos com keffieh, posando sobre o painel que diz: “o sionismo é um sonho, a realidade uma tragédia”. Aqui, aparece contradição terrível e intrincada entre a lei do retorno e o direito ao retorno4.
É claro que a desconstrução dos mitos não é privilégio do mundo da arte. Ela faz parte do que se chama de pós-sionismo, um pensamento cujos representantes mais conhecidos fazem parte da nova geração de historiadores. Seus estudos críticos, essenciais para uma visão mais equilibrada do conflito árabe-israelense, abriram uma brecha que, desde então, transformou-se em uma ruptura para a sociedade em Israel.
Essa mudança de mentalidades leva os artistas contemporâneos a atuarem com visão cada vez mais corrosiva sobre o que, em Israel, se chama, com pudor, de “situação”. Por exemplo, Arnon Ben-David, emoldura uma cópia de plástico da famosa metralhadora israelense Uzi. O título da obra? Arte judaica (1988). Tsibi Geva cobre o mapa israelense com um keffieh, sinal incontestável da identidade palestina: Keffieh (2000). Pinchas Cohen-Gan propõe uma visão desdenhosa a partir dos uniformes do exército: A arte é como o serviço militar (1995). E, finalmente, para encerrar definitivamente esse capítulo da nostalgia, o conservador Gideon Efrat, por ocasião de uma recente exposição no seu centro de arte, reuniu muitas paisagens israelenses consideradas, atualmente, “clássicas” e as encerrou em um cômodo que batizou “débaras5” (despejo).
A lucidez admitida
Arnon Ben-David, emoldura uma cópia de plástico da famosa metralhadora israelense Uzi. O título da obra? Arte judaica (1988)
Algumas obras dessa lista, que mereceria ser mais rica, são explícitas e de uma eficácia pavorosa. O seu olhar sobre a realidade onde qualquer evocação do passado, ou é excluída, ou torna-se grotesco, não tem qualquer ilusão. Essa é sua força e, talvez, seu limite. Não é possível duvidar da sinceridade de seus criadores, de sua vontade de mostrar um profundo desgosto diante à mortandade interminável a que assistem. Contudo, há, por vezes, o sentimento de que essas obras participam do estado de espírito que caracteriza a sociedade
Israelense, desde a oportunidade desperdiçada dos acordos de Oslo: o de que a única lucidez admitida é apenas sinônimo do ceticismo e do fatalismo geral.
É possível que o retorno ao retorno proposto pela geração dos anos 1970 não esteja mais na ordem do dia. É provável que os “avanços” da guerra fratricida não deixam nenhum lugar à projeção do passado sobre o futuro. Porém, se as obras dos “pioneiros” da crítica política parecem, às vezes, perturbadoras como podem ser uma ferida dolorosa, talvez seja porque, diferentemente das da segunda geração, elas contenham uma parte da nostalgia, ainda que seja uma nostalgia da decepção. De modo confuso, vê-se aí, ainda, traços daquilo que, hoje, se dá o nome de mitos e que, em outras circunstâncias, eram apesar de tudo, ideais.
(Trad.: Teresa Van Acker)
1 – Contrôle: David Reeb e Michael Kratzman, Musée National d?Israel em Jerusalém, outubro-dezembro, 2003.
2 – Photographies, 1905-1948, Museu de Arte moderna de Tel-Aviv, Julho-novembro, 2003.
3 – O presente estudo não aborda a arte palestina. Entretanto, pode-se sugerir que nessa assimetria forçada pela história, à noção fundadora israelense de retorno ao retorno, corresponde, nos palestinos, ao retorno sobre a partida, a de 1948. Ver o livro de Elias Sanbar Palestiniens, Images d? une terre et son peuple de 1939 à nos jours. Hazan, Paris.
4 – A lei do retorno: lei adotada pelo Estado de Israel em 1950 e que dá a possibilidade a qualquer judeu no mundo de “retornar” a Israel e obter sua nacionalidade. Direito de retorno: direito reclamado pelos palestinos expulsos em 1948 de retornarem a seus lares (direito reconhecido por uma resoluç