A voz do poder patronal
Durante os seis meses que antecederam as eleições, o sindicato patronal francês jogou pesado para virar a mesa: o social-liberalismo do PS incomodava. Agora, com vários representantes no governo eleito, não vê a hora de derrubar os direitos sociaisPaul Lagneau-Ymonet
Em 2001, uma mesa-redonda da universidade de verão do Movimento das Empresas da França (Medef1) teve por tema “A empresa e o empresário podem e devem ser apolíticos e não-partidários?” Ainda em outubro de 2001, num artigo de jornal intitulado “Façamo-nos ouvir em 2002”, Ernest-Antoine Seillière, presidente do Medef, já dava sua resposta: “Que participação os empresários devem ter no debate que se abre em nosso país, com as eleições capitais do começo de 2002? Respondo sem hesitação: a maior possível […]. Fazer ouvir a voz dos empresários na cidade, em nome da sociedade civil à qual pertencemos e da qual somos um elemento essencial. Inspirar e incentivar nossos futuros parlamentares a tomarem energicamente o caminho de um novo começo com coragem e altivez2.”
Durante os meses que precederam as eleições do primeiro semestre de 2002, o Medef preparou sua “irrupção” na campanha, apresentando-a como qualquer coisa de inédito que se tornara necessária por causa da situação política e social, considerada insustentável pelos empresários. As declarações multiplicaram-se para denunciar o “assédio” aos patrões pelos poderes públicos e a “diabolização da empresa” pelos movimentos sindicais e associativos. Para responder ao que apresentava como verdadeiras ameaças, o Medef não parou de invocar um “direito de ingerência dos patrões no debate público”.
Longa história na política
A assessoria de comunicação do Medef impôs a idéia de que a intervenção política e partidária era uma “estréia” na história social e política do país
A campanha de propaganda e agitação foi construída em torno de sete “foruns nacionais”, em sete cidades do interior. Temas escolhidos: “o trabalho em nossa sociedade com o objetivo de devolver-lhe seu lugar em nosso país”; os vínculos entre “o homem, a natureza e a empresa”; “a mentalidade da empresa, indispensável em nossa sociedade, mas ignorada pelo ensino nacional e combatida em nome de ideologias ultrapassadas”; “uma nova arquitetura da proteção social” – uma palestra de Denis Kessler, vice-presidente do Medef e presidente da Federação Francesa das Companhias de Seguros (FFSA); “o aprofundamento da democracia social”; “a atratividade da França num mundo global”; e “a empresa diante dos novos riscos”. Esta “viagem pela França” (foram visitadas, respectivamente, as cidades de Angoulême, Clermont-Ferrand, Lille, Strasbourg, Nantes, Marseille e Marne-la-Vallée) encerrou-se em 15 de janeiro de 2002, em Lyon, com “um congresso excepcional” do Medef. Ali se tornaram públicas “as propostas dos empresários”, reunidas sob o título “Avante as empresas, avante a França!” Os deputados haviam previamente recolhido as propostas que, em seguida, foram enviadas aos candidatos à Presidência da República e à Câmara dos Deputados.
Os serviços de comunicação do Medef conseguiram impor a idéia de que esse tipo de intervenção política e partidária constituía uma “estréia” na história social e política do país3. Entretanto, mesmo sem retroceder ao papel do Comité des Forges do período entre as duas guerras, que torpedeou o Cartel das Esquerdas (1924-1926), a implicação política do patronato francês não data de ontem4. O ancestral do Medef, Conseil National du Patronat Français (CNPF) 5 tinha, em 1972-1974, militado ativamente contra o Programa Comum assinado, na época (junho de 1972), pelo Partido Socialista, pelo Partido Comunista e pelo Movimento dos Radicais de Esquerda. O CNPF apoiou financeiramente os candidatos da direita: “Os patrões da metalurgia financiam a produção e distribuição de 8,8 milhões de exemplares de diversos jornais e revistas […] em 140 circunscrições [eleitorais] ?sensíveis? que corriam o risco de ser conquistadas pelos candidatos da União da Esquerda. Entre essas abundantes publicações, assinalamos […] Monsieur Dupont voit rouge, uma fotonovela de 16 páginas e com tiragem de 4 milhões de exemplares […], e ainda Le Cauchemar ou l?application du Programme commun comme si vous y étiez, outra brochura apocalíptica com 200 mil exemplares impressos. Imprimem-se também dois milhões de cartazes, dois milhões de faixas de cabelo, três milhões de panfletos, bem como diversas obras, entre as quais Le Piège, publicada por Olivier Stirn, Jean-Pierre Soisson e Bernard Stasi, pela editora France Empire, que pertence a Yvon Chotard, um dos dirigentes do CNPF […]. Além disso, promove-se uma ?ação de impregnação junto aos grandes formadores de opinião?, os jornalistas Jean-François Kahn, Jean Ferniot e Roger Priouret, [?] sistematizando ?contatos? com uns vinte deles6.”
“Diálogo social” e “sociedade civil”
O financiamento dos partidos políticos tornou-se público e o programa do Partido Socialista deixou de representar uma ameaça aos interesses patronais
O financiamento dos partidos políticos tornou-se público e o programa do Partido Socialista deixou de representar uma ameaça para os interesses patronais. Isto permite ao Medef adotar uma posição menos explicitamente favorável à direita governamental (deixa de financiá-la de uma maneira direta e deixa de pedir votos para seus candidatos de maneira oficial). Em compensação, a comunicação tornou-se onipresente. O serviço de imprensa do patronato compõe-se de cinco pessoas (quatro mulheres e um homem, o diretor). Quatro foram assessores parlamentares de deputados da direita (entre os quais Alain Juppé, ex-primeiro-ministro).
Tudo é feito para manter constante a cobertura de imprensa: os recursos destinados7, a personalização do discurso pelo duo Seillière-Kessler. Os jornalistas recebem dossiês de imprensa que, além da simples transcrição das alocuções, incluem documentos de reflexão (resumos de notas de análises produzidas por centros de pesquisa próximos dos meios patronais). Esses documentos fornecem aos jornalistas, principalmente se estão apressados, os termos de referência, os dados em números e os nomes de especialistas a quem poderiam recorrer para incrementar seus artigos.
Os meios de comunicação partilham com o Medef o uso de um mesmo lugar comum ideológico explicar o que se passa na intersecção dos campos políticos, sindicais e patronais: a oposição entre Estado e sociedade civil8. Esta última noção permite ao patronato arregimentar os sindicatos mais dispostos sob a bandeira do “diálogo social entre parceiros sociais” e substituir o antagonismo entre Trabalho e Capital pelo combate dos “representantes da sociedade civil” contra um Estado afetado por todas as taras. A referência à “sociedade civil” impede, por outro lado, de descrever as práticas que, como o abandono das funções públicas para entrar no setor privado, mantêm vínculos estreitos entre o alto funcionalismo público e o grande patronato.
O desmonte da Previdência pública
Jornalistas receberam dossiês que, além da transcrição dos discursos, incluíam documentos de reflexão e nomes de especialistas a quem poderiam recorrer
O primeiro objetivo do Medef – influenciar os programas da campanha presidencial – foi alcançado. As semelhanças entre os projetos econômicos do RPR e do PS eram muitas, como duas variações concorrentes sobre temas caros ao patronato: redução das taxas de imposto de renda, privatizações (ou “abertura do capital”), recondução dos dispositivos de subvenção para o emprego das pessoas menos qualificadas (redução das contribuições patronais e extensão dos dispositivos de imposto negativo). O PS não havia inserido a revalorização dos mínimos sociais em seu programa para a [eleição] presidencial; havia feito, como o Rassemblement pour la République (RPR) 9, a promoção de uma aposentadoria “com cardápio”, cada assalariado sendo chamado a “escolher” a idade de sua aposentadoria, 60 anos ou mais, com uma pensão proporcional ao montante acumulado das contribuições10.
Quanto à generalização dos complementos da aposentadoria por capitalização, da qual o patronato é um ardente defensor, o “debate” entre o RPR e o Partido Socialista consistia em saber se a poupança deveria ser individual e em “investimentos éticos” cuja gestão seria assegurada pelos “parceiros sociais”, como o RPR propunha ou se a poupança devia ser coletiva, por meio de fundos de poupança salarial, controlada pelos “representantes dos assalariados” como pretendiam os socialistas.
Um governo de empresários
Os meios de comunicação partilham com o Medef o uso de um mesmo lugar comum ideológico: a oposição entre Estado e sociedade civil
Se a conversão do Partido Socialista a certos preceitos econômicos neoliberais remonta aos anos 1980, as eleições de 2002 foram a ocasião de constatar que [o PS] assumia isso mais abertamente, com um programa “que não é socialista”. Ou as medidas pretendidas eram vantajosas para o patronato (redução do imposto de renda, por exemplo) ou eram acompanhadas de dispositivos igualmente vantajosos para os patrões. O exemplo típico foi a lei sobre a redução da duração da jornada semanal de trabalho (1998-2000) 11. Os empregadores e seus mandatários espernearam contra as “trinta e cinco horas”, mas a maioria recebeu as ajudas financeiras que acompanhavam a medida e aproveitou a oportunidade para intensificar o trabalho e aumentar a “flexibilidade” por meio de acordos de setor de atividade ou de empresa, estipulando, por exemplo, o anuênio como contrapartida das trinta e cinco horas. Por outro lado, esses acordos foram acompanhados de uma “moderação salarial” num período (1998-2000) em que a melhoria da situação do emprego fazia os patrões temerem que o medo do desemprego não fosse mais suficiente para conter as reivindicações em matéria de remuneração.
Depois da reeleição de Jacques Chirac e da vitória esmagadora de seu partido nas eleições legislativas de junho de 2002, o patronato tem boas razões para estar satisfeito com a composição do governo. Nicolas Sarkozy, cujo irmão dirige a União das Indústrias Têxteis, uma das federações do Medef, foi por muito tempo um dos principais intermediários dos interesses patronais no seio do RPR. Renaud Dutreil, secretário de Estado para as pequenas e médias empresas, comércio e artesanato, é o marido da consultora especial de Ernest-Antoine Seillière na CGIP, a holding dos herdeiros Wendel. Francis Mer, ministro da Economia, Finanças e Indústria, dirigiu o grupo siderúrgico Arcelor e era membro ativo do Medef: ele comandava a delegação do patronato por ocasião das negociações sobre a formação profissional, no âmbito da “reestruturação social”.
Ameaças apocalípticas
A referência insinuante à “sociedade civil” permite que não sejam descritas práticas como o abandono das funções públicas para entrar no setor privado
As declarações de intenções e as primeiras medidas do governo retomam as principais reivindicações de Seillière. Em seu discurso de política geral, o primeiro-ministro, Jean-Pierre Raffarin, anunciou que os parceiros sociais “verão reconhecida uma autonomia para definir pela via do acordo, e no respeito aos princípios fundamentais de nosso direito, as regras que determinam as relações de trabalho”. Ora, a promoção de acordos interprofissionais, por setor e por empresa, como meios de regulamentar as relações de trabalho tornou-se, nas duas últimas décadas, desde as leis Auroux (1982), uma exigência do patronato, de tal forma o modo de validação dos acordos lhe é favorável. Aliás, este panegírico do “diálogo social entre parceiros sociais” contribui para deslegitimar a greve como prática sindical.
Em sua alocução pela televisão, no dia 14 de julho12 de 2002, o presidente da República, Jacques Chirac, explicou que a redução das contribuições sociais – principalmente daquelas pagas pelos empregadores – nada tinha de medida “ideológica”: era “uma questão de sobrevivência”. Aí se encontram duas molas da retórica promovida pelo Medef: a despolitização das questões econômicas e a dramatização das disputas de interesses por meio de um vocábulo apocalíptico.
Patrões impõem reivindicações
Depois da reeleição de Chirac e da vitória eleitoral de seu partido, o patronato tem boas razões para estar satisfeito com a composição do governo
As primeiras medidas do governo também se inspiram nas recomendações patronais: o salário mínimo não foi aumentado acima do mínimo legal, a harmonização de seus diferentes níveis se dará em três anos através de um aumento anual de 5% a 6% dos salários mais baixos, o que é positivo, mas será compensado por uma nova redução das contribuições patronais; a redução de 5% de todas as taxas de imposto de renda satisfará principalmente os contribuintes mais abonados. Quanto às 35 horas: depois de acordos por setor ou por empresa, elas poderão render apenas mais 10% aos assalariados, isto é, menos que os 25% estabelecidos na lei.
Dessa forma, o Medef chegou, ao termo de uma campanha conduzida de modo direto e franco, a impor suas reivindicações e sua retórica. As conquistas sociais e os dispositivos legislativos, regulamentares e contratuais que, bem ou mal, asseguravam uma proteção aos assalariados e desempregados, estão, atualmente, em sua linha de mira. O patronato já exige mais. Sempre mais.
(Trad.: Maria Elisabete de Almeida)
1 – N.T.: Confederação sindical patronal.
2 – Ler, de Ernest-Antoine Seillière, “Faisons-nous nous entendre pour 2002”, Le Monde, 26 de outubro de 2001.
3 – “Até agora, os empresários se abstiveram de intervir nos debates eleitorais, deixando o terreno livre para os candidatos e os partidos. Rompemos com essa tradição e faremos ouvir a voz da terra.” Trecho da entrevista de Ernest-Antoine Seillère, “Faisons-nous entendre pour 2002”, Le Monde, 26 de outubro de 2001.
4 – No que se refere às candidaturas à Câmara de Deputados, o presidente do Medef indicou que “[seria preciso] que os empresários, pessoas vindas do setor privado, se engajassem na política. Para permitir-lhes fazer isso, será necessário, quando forem vencidas numa reeleição, dar-lhes o direito de entrar no serviço público porque provaram seu interesse pela coisa pública. Peço ao próximo governo que coloque isso entre suas primeiras medidas. Hoje, os empresários têm medo de fazer política, pois correm o risco do controle fiscal, da inspeção do trabalho… É preciso denunciar esse terrorismo.” (Afirmações feitas durante a universidade de verão do Medef, 30 de agosto de 2002).
5 – N.T.: Conselho Nacional do Patronato Francês.
6 – Ler, de Jean Garrigues, Les patrons et la politique, Paris, ed. Perrin, 2002, pp. 232-233.
7 – O orçamento da universidade de verão do Medef, para o ano de 2001, foi de 2,8 milhões de francos (cerca de 1,63 milhão de reais) para três dias. Em 2002, os conferencistas, dentre os quais o jornalista Alexandre Adler, não teriam sido remunerados.
8 – Sobre os usos da noção de “sociedade civil” pelo Medef, ler, de Paul Lagneau-Ymonet, Refondation sociale et pacification syndicale, Marselha, ed. Agone, 2002.
9 – N.T.: Rassemblement pour la Rep