Acesso à internet ainda é entrave ao direito à comunicação
Sem conectividade digital ou com acesso precário, mulheres, negros/as, comunidades rurais e povos tradicionais têm dificuldades cotidianas no acesso à educação, serviços públicos e políticas sociais
“Quase perdia a chance de fazer a matrícula por conta da internet que era péssima. Não era de boa qualidade. Sofri muito!”. O relato de dona Maria Geísa dos Santos, ao tentar efetivar a matrícula escolar da sua filha, disponibilizada exclusivamente pela internet, é emblemático das dificuldades enfrentadas por parte dos/as brasileiros/as que usaram a internet móvel para acessar algum serviço durante a pandemia.
Maria Geísa é trabalhadora rural, moradora do Povoado Bela Vista, no município de Igreja Nova, em Alagoas, e integra um dos grupos aos quais o direito à conectividade ainda não chegou, conforme apontado pela pesquisa “Barreiras e Limitações do acesso à internet e hábitos de uso e navegação na rede, nas classes CDE”, realizada pelo Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (IDEC), em parceria com o Instituto Locomotiva.
Num território diferente do que mora Maria Geísa, vive Rodolfo Gabriel Dória, jovem artesão de pranchas de surfe, que faz malabarismos diários para se conectar. “Nos comércios eu consigo um Wi-fizinho quando vou comprar comida, usando o próprio aplicativo para pagar as contas. Às vezes peço para os comerciantes me darem suas senhas. Quando acho um Wi-Fi aberto, acesso, não importa se é público ou de uma pessoa que deixou seus dados abertos”, conta.
Rodolfo reside na Vila Matos, uma comunidade popular de Salvador, e atualmente produz um documentário sobre a história do surfe na sua região, sendo a internet e o celular fundamentais para o trabalho de pesquisa e produção.
Os relatos de Maria Geísa e Rodolfo evidenciam que, apesar da Organização das Nações Unidas (ONU) reconhecer o acesso à internet como um direito fundamental, do Marco Civil da Internet no Brasil (Lei n° 12.965/2014) definir o serviço de acesso à internet como universal e do mesmo constar na lista de serviços essenciais brasileiros durante a pandemia, sua efetivação está longe de se tornar realidade para a parcela mais pobre, negra e moradora dos grandes centros urbanos e nas comunidades rurais do país.
Foi visando contribuir para a elucidação dessa problemática que três organizações da sociedade civil realizaram a pesquisa “Territórios Livres, Tecnologias Livres”, que entrevistou 274 famílias, de 33 territórios quilombolas e rurais do Nordeste brasileiro. Esse mapeamento revelou que os serviços de acesso à internet nas comunidades quilombolas e rurais, quando têm, são caros e de má qualidade. Quando chove a dificuldade de conexão é enorme e restringe os usos apenas para o consumo de informações em aplicativos como WhatsApp e Facebook.
Essas restrições e limitações são bem conhecidas por usuários dos pacotes de dados no Brasil, que têm o acesso bloqueado de forma seletiva, quando excedem o limite das suas franquias. Conhecida por zero rating, essa é uma prática que pode parecer positiva ao permitir o acesso a determinados aplicativos mesmo sem dados disponíveis, mas fere o chamado princípio de neutralidade da rede, previsto no Marco Civil da Internet, ao dar tratamentos diferenciados aos pacotes de dados. .
Com o objetivo de proteger os usuários dessa prática (que favorece, por exemplo, a circulação de conteúdos de desinformação) e, ao mesmo tempo, garantir o acesso pleno à internet, compreendendo este como um direito, o Intervozes protocolou, ainda no início da pandemia, um requerimento solicitando à Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) que proibisse os bloqueios de internet móvel ou fixa quando usuários chegassem ao final das suas franquias de dados.
O pedido à Anatel considerou o papel essencial dos serviços de internet na pandemia e a necessidade de minimizar eventuais violações de direitos decorrentes do seu bloqueio, como a falta de informação sobre saúde e educação. Quatro meses depois, a agência negou o pedido sob a alegação de que confiava nos compromissos feitos pelas operadoras no tocante à provisão dos serviços de conectividade no período de emergência sanitária.
Essa confiança da Anatel nas operadoras privadas parece não ter sido suficiente para evitar que mais de 50% das famílias brasileiras em 2022 deixassem de adquirir direitos básicos por falta de internet.
“A problemática dos bloqueios de internet e a ação de limitar o acesso dos usuários somente aos aplicativos do grupo Meta (como Facebook e WhatsApp) que, consequentemente, reverbera na falta de acesso às políticas e serviços essenciais, é um problema estrutural vinculado ao modelo de negócios dos planos de internet móvel. Ou seja, a maioria dos consumidores sequer compreende que esse tipo de prática é ilegal”, aponta Luã Cruz, pesquisador do Programa de Telecomunicações e Direitos Digitais do Instituto de Defesa do Consumidor (IDEC).
E quando se fala em negação de direitos por ausência ou limitação de conectividade é preciso caracterizar os cidadãos e cidadãs mais atingidos. De acordo com a pesquisa TIC Domicílios 2020, somente 37% dos usuários/as de internet realizaram algum serviço público usando a rede, sendo que moradores/as das zonas urbanas (39%) acessaram em uma proporção bem maior do que as pessoas da zona rural (16%); as mulheres realizaram menos serviços públicos via internet (33%) do que os homens (40%); pretos (39%) e pardos (31%) também acessaram menos em comparação com os brancos (44%); e apenas 15% das pessoas das classes D e E utilizaram algum serviço público pela internet.
Os três levantamentos aqui apresentados não deixam dúvidas: o acesso precário e restrito à internet constrói sérias barreiras para que mulheres, negros, pobres, moradores das periferias urbanas e zonas rurais e, em especial, povos e comunidades tradicionais, exerçam sua cidadania. Não à toa, a marca da seletividade acompanha essas populações em relação à justiça, moradia e outros direitos, naturalizando o racismo e outras vulnerabilidades em todas as esferas da vida.
Métodos de autoprivação como mais uma camada de violação
Mesmo sendo grave a restrição do direito à saúde, educação e benefícios previdenciários pela internet, os usuários dos pacotes de dados móveis têm dificuldades em reconhecer seus direitos nas redes, o que acaba normalizando práticas recorrentes de hierarquização dos usuários entre cidadãos de “primeira” e “segunda classe”, feitas por operadoras de internet com o aval dos governos.
“O que acontece na realidade é a percepção do consumidor de que os planos são caros e limitados e não há muito o que se fazer, a não ser obedecer à lógica desse modelo, seja pagando por mais pacotes de dados ou adotando medidas de autoprivação para que o pacote atual não acabe tão rápido. Nesse sentido, entendemos que a atuação das autoridades é essencial para alterar esse cenário de abusos, realizando a aplicação de leis, como o Marco Civil da Internet, o Código de Defesa do Consumidor e a Lei de Defesa da Concorrência. Anatel, Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon) e Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) são autoridades competentes para analisar essa situação, mas até o momento preferiram não fazê-lo”, explicou Luã Cruz, do IDEC.
Essas práticas de autoprivação, que são usadas por 63% dos usuários de internet móvel, segundo a pesquisa do IDEC e Instituto Locomotiva, incluem o ato de ligar e desligar o 3G/4G para economizar “créditos”, deixar de acessar um conteúdo, adiar o acesso de algum serviço e ter a preocupação constante de economizar o pacote de dados.
Via Crucis para acessar benefícios e a lógica de plataformas nas políticas sociais
As opções da equipe econômica do Governo Federal para cortar gastos e “dinamizar” serviços públicos, desde o início da gestão de Jair Bolsonaro, são estruturadas sob o desmonte das políticas sociais, nas barreiras impostas ao acesso de serviços públicos, em grande proporção mediados pela internet.
Sob falsos argumentos de celeridade dos processos administrativos, ampliação do acesso e transparência, as políticas sociais também são alvos da especulação das Big Techs, grandes empresas de tecnologia que acumulam capital e denúncias de violações de direitos como proteção de dados e privacidade dos seus usuários/as.
Segundo reportagem de Marina Pita e Leonardo Sakamoto, em 2021, o Governo Federal, por meio do Ministério da Cidadania, manteve conversas com Amazon, Google, Microsoft e Tik Tok sobre mudanças no Cadastro Único de Programas Sociais (CadÚnico), visando criar um sistema de auto inscrição, incorporando serviços das plataformas privadas no cadastramento.
Vale lembrar que o CadÚnico, além de ser uma das principais bases de dados do Brasil, é um organismo fundamental de assistência social, gestão e eficiência das políticas sociais, sobretudo em tempos de crescimento da fome e extrema pobreza. Como escreveu Denise Di Sordi, “o CadÚnico é um sistema de informações globais que permite diagnosticar e acompanhar o crescimento ou redução dos números que medem a pobreza, informações sobre os programas sociais e estabelecer metas de atendimento e, por sua vez, de repasses de verbas aos municípios para a gestão dos programas, através do Índice de Gestão Descentralizada (IGD)”.
Até o momento, a proposta de autocadastramento não foi concretizada, porém seu anúncio preocupa, sendo três as principais ressalvas: 1) o uso das informações dos beneficiários/as no mercado de dados atenta contra a segurança de cidadãos, vide inúmeros vazamentos de dados pessoais ainda sem apuração; 2) a auto inscrição fragiliza a participação dos municípios e da rede de assistência social, atualmente responsáveis por métodos de busca ativa e avaliação global de vulnerabilidades; 3) o cadastro pela internet impõe uma barreira adicional no requerimento de programas sociais dependentes do CadÚnico, uma vez que o público beneficiário das políticas é o que mais sofre com as desigualdades de acesso à internet e tecnologias digitais no país.
“As pessoas perdem muito por falta de informação. Tem muito usuário atendido pela Rede de Saúde Mental que não tem acesso à internet e tivemos casos de pessoas que perderam o prazo de cadastro e auxílio emergencial por não ter créditos, não saber mexer nas plataformas”, conta Helisleide Bonfim, membro da Associação Metamorfose Ambulante de Usuários e Familiares do Sistema de Saúde Mental do Estado da Bahia (Amea) e conselheira municipal da Assistência Social em Salvador e usuária da rede. Se o autocadastramento ainda não foi efetivado, outras mudanças em benefícios sociais, a partir da transposição do seu acesso para a internet, têm provocado a ampliação de vulnerabilidades.
É o caso do Benefício de Prestação Continuada (BPC), política pública destinada aos idosos de baixa renda e pessoas com deficiência, que passou por mudanças por meio da lei 14.176/2021, como a alteração dos critérios de concessão do benefício no que diz respeito à comprovação de renda, a autorização do uso da teleavaliação para fins de avaliação social e a criação de um sistema de média automatizada padrão para avaliação, com recursos de inteligência artificial.
Essas alterações, que expressam um processo de acelerada digitalização do INSS e outros órgãos públicos, dificultam o acesso ao BPC através do canal de teleatendimento 135 e do aplicativo Meu INSS. “Estamos falando de pessoas idosas e/ou com deficiência, com perfil de renda inferior ao salário mínimo, percorrendo uma via crucis e que, não raramente, têm o pedido negado sem sequer entender a razão”, afirma Lilya Rojas, assistente social do INSS e conselheira do Conselho Federal de Serviço Social (CFESS).
Lylia aponta cinco resultados imediatos dessa digitalização: 1) superexposição das pessoas, que por vezes recorrem a terceiros em busca de ajuda; 2) fortalecimento da figura do intermediário e de um mercado para serviço de requerimentos e acesso às plataformas; 3) aumento do indeferimento dos processos, uma vez que as pessoas não conseguem acompanhar os prazos e solicitações do INSS; 4) aumento do tempo de espera, seja por falta de servidor/a para análise, seja por ausência ou divergência de dados nos sistemas; e 5) aumento da judicialização de benefícios, em razão do aumento do indeferimento e tempo de espera.
“O governo impõe uma escolha cruel, optar entre comprar comida, pagar aluguel ou manter uma conta de telefone e pacotes de dados para acompanhar os sistemas governamentais, sem sequer ter compreensão de como são avaliados e como são utilizados seus dados”, denuncia a assistente social.
Essa via crucis é percorrida por Rodolfo Gabriel, de Vila Matos, Salvador, desde o momento que tentou cadastrar o Número de Identificação Social (NIS) do seu irmão, um adolescente com transtorno do espectro autista que pleiteia o BPC.
“A gente tentou fazer o número pela internet e não conseguiu. Conseguimos fazer por telefone depois de uma labuta. Depois da internet e do telefone, eu fiz um atendimento presencialmente, na prefeitura-bairro. Agora só falta o último passo, que é tirar a identidade para entrar na relação de pessoas que estão vivendo na mesma casa e poder declarar a renda”, explica o artesão. Todo esse processo, porém, já dura um ano.
Outros aspectos criticados pelo CFESS, especialmente sobre a teleavaliação, são a dificuldade de garantia da privacidade e sigilo sobre temas sensíveis e a redução da capacidade de avaliação global das situações que vulnerabilizam os requerentes.
“A oferta deste serviço, de forma remota, expõe e compromete o atendimento das pessoas, que deveriam ter atendimento digno, célere e de qualidade. O atendimento avalia aspectos sociais, econômicos, interpessoais. É preciso estabelecer confiança e vínculo, é preciso garantir sigilo. Na teleavaliação nada disso é garantido. As pessoas chegam para o atendimento sem sequer saber o quanto serão expostas. Não é raro que essas pessoas combinem situações de violência ou discriminação. Agora imagina uma mulher vítima de violência doméstica, tendo atendimento remoto ao lado do agressor? Ou um idoso vítima de maus-tratos? Muitas vezes o silêncio, o olhar, o gesto, indica situações não ditas”, narra Lylia Rojas.
Os exemplos aqui mencionados apontam para uma lógica tecnosolucionista, cada dia mais presente na atuação política dos governos. A respeito disso, o pesquisador Tarcízio Silva foi enfático ao afirmar, durante exposição no Fórum da Internet do Brasil, em julho de 2021, que “o Brasil não é um país digitalizado. […] Temos desigualdades de acesso de primeiro nível, acesso aos dispositivos, e desigualdade de segundo nível, de acesso a habilidades necessárias para usar aquele aplicativo. Mas o problema, obviamente, não está na pessoa, no cidadão, mas na escolha desse tipo de política pública que tenta transformar, utilizar o aplicativo em uma solução quando na verdade parece que é uma solução intencional para gerar mais exclusão”.
Ou seja, assim como a responsabilização das restrições nos pacotes de dados móveis é transmitida para os usuários, o Governo Federal segue impondo formas de adesão às políticas públicas pela internet, fazendo crer que esse é o meio mais rápido de alcançar benefícios. Nos dois casos, o resultado imediato e grave é a redução das capacidades da população em exercer sua cidadania.
A conectividade para diversificar a luta por direitos digitais
Em um cenário de privação do direito à saúde, à educação, ao trabalho e renda e às políticas sociais, ampliado pelas desigualdades estruturais no acesso à internet e às tecnologias digitais, sobrepostas por interseccionalidades que acidentam mais mulheres, negros e pobres, a reivindicação por conectividade se amplia como pauta fundamental no âmbito dos direitos digitais.
“Principalmente na pandemia, os movimentos sociais que antes não pautavam na sua centralidade o direito à internet, à comunicação, passam a reivindicar isso. A Conexão Malunga tem atuado junto aos movimentos de mulheres negras, por exemplo, e percebido o esforço de literacia digital, de conhecimento sobre segurança digital e de uma pauta bastante ampla envolvendo direitos sexuais e reprodutivos, acesso à educação, moradia, combate à brutalidade racial. Na pandemia, o acesso à tecnologia ganha o centro”, diz Mariana Gomes, co-fundadora da Conexão Malunga e integrante da Câmara de Universalização do Acesso, instância do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br).
Mariana avalia que o CGI.br é um fórum importante para pautar a ampliação do debate sobre acesso à internet, repensando indicadores, já que o aumento de dispositivos “não se traduz em inclusão digital”, e defende que essa luta não seja descasada do princípio da diversidade, previsto no decálogo do CGI.br (Os Princípios para a Governança da Internet no Brasil), o que significa, dentre outras coisas, ampliar a representação de pessoas não-brancas nesse ambiente.
Nessa perspectiva, o Movimento da Mulher Trabalhadora Rural do Nordeste (MMTR-NE) que atuou, na década de 1990, na luta por redes de telefonia pública para os assentamentos rurais como mecanismo, inclusive, de apoio à denúncia de violências de gênero, desde setembro de 2021 representa esse segmento no Comitê de usuárias e usuários dos Serviços de Telecomunicações da Anatel (CDUST).
Naiara Santana, diretora de comunicação do MMTR-NE e moradora do Assentamento Vitória da União, em Sergipe, nos conta que estar no CDUST é uma forma de ampliar a denúncia sobre as desigualdades de acesso à conectividade, visibilizando as experiências que ela passa nos assentamentos, quilombos e demais territórios de povos e comunidades tradicionais, populações que raramente aparecem nas pesquisas de acesso.
“No nosso assentamento só pega uma operadora. Na minha casa fizemos duas tentativas de colocar internet, somos quatro pessoas e quando todos acessavam não pegava nem WhatsApp. O preço é muito alto para um serviço sem qualidade”, relata Naiara.
No momento em que o Governo Federal vai à justiça para negar direitos digitais aos estudantes (Lei de Conectividade nas Escolas) e gasta dinheiro público distribuindo pacotes de dados móveis limitadores do acesso à internet (Programa Internet Brasil), movimentos como a Conexão Malunga e o MMTR-NE dão exemplos de coragem na luta pelos direitos digitais no Brasil.
Tâmara Terso é jornalista amefricana, mestra e doutoranda em Comunicação e Cultura Contemporâneas na UFBA, integrante do Conselho Diretor do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social. Coordenadora do Centro de Comunicação, Democracia e Cidadania da UFBA.