‘Açougueira’, de Marina Monteiro: pensamentos afiados e vozes acusatórias
Romance de estreia da autora apresenta linguagem precisa e discute violências enfrentadas diariamente por mulheres
Não é exagero dizer que entre as muitas leituras que fiz em 2024, Açougueira, romance de estreia de Marina Monteiro, está entre as mais impactantes. E não digo isso apenas pelo enredo, mas, sobretudo, pela linguagem.]

Poucas vezes me deparei com uma obra literária capaz de trabalhar as especificidades das vozes de cada personagem como acontece com o livro publicado pela Claraboia. A começar pela protagonista. Suas falas e seus pensamentos são diretos. Afiados. Precisos. Não abrem espaço para o que é prolixo ou desnecessário. Cada palavra está em seu devido lugar. E diz a que veio. Assim como a personagem.
O enredo gira em torno de uma mulher que vive no interior do país e lida, diariamente, com muitos tipos de violência. Encara o desprezo, os comentários machistas e a brutalidade. Muito disso por conta de sua profissão e do seu “temperamento difícil”. É alguém que não abaixa a cabeça e que contesta aqueles que querem definir o que uma mulher pode ou não fazer.
Quando decide se candidatar a uma vaga em um açougue, percebe que aquele é um ambiente hostil. Ela é submetida a testes abusivos, situações constrangedoras e piadas humilhantes. Ainda assim, se mostra capaz de matar um boi bravo, se preciso for.
O dia a dia no trabalho não fica menos absurdo. Os clientes não querem ver uma mulher do outro lado do balcão. Desconfiam de suas habilidades e do seu conhecimento. E não são só eles. Agora mesmo, enquanto escrevo esse texto, o Word tenta me corrigir e sugere “açougueiro” quando escrevo “açougueira”.
Esses desafios cotidianos já seriam suficientes para um ótimo livro, mas Marina Monteiro vai além e aborda o desenrolar do assassinato de um homem. A principal suspeita? A açougueira, é claro.
A partir desse ponto, o romance ganha novos narradores e passa a apresentar testemunhos em um julgamento que parece já definido desde o seu início. Moradores da cidade – cada um com seus vícios de linguagem e formas de preconceito – falam sobre a mulher e a condenam por “não ser feminina o suficiente” ou ser “teimosa” ou “arrogante” ou “indisciplinada” ou “infiel” ou “violenta” ou “possivelmente lésbica”.
Aqui fica evidente que a autora pensou sobre cada um desses personagens por bastante tempo. Embora alguns tenham poucas falas, todos carregam suas próprias histórias e, principalmente, suas próprias vozes. Além disso, compartilham um sentimento de união, como se fizessem parte de um todo – um todo que dá as costas à açougueira.
Assim, o romance de estreia de Marina Monteiro evidencia preconceitos enfrentados diariamente por mulheres, demonstra a hipocrisia do dito cidadão de bem e constrói uma narrativa bem amarrada, em que o enredo e a linguagem têm a mesma importância e originalidade. Uma história polifônica, intimista e incômoda, no melhor sentido da palavra.
Bruno Inácio é jornalista, mestre em comunicação e autor de Desprazeres existenciais em colapso (Patuá), Desemprego e outras heresias (Sabiá Livros) e De repente nenhum som (Sabiá Livros). É colaborador do Jornal Rascunho e da São Paulo Review e tem textos publicados em veículos como Le Monde Diplomatique, Rolling Stone Brasil e Estado de Minas.