Adaptação à era do fogo
O Brasil precisa compreender, a começar dos governos municipais, estaduais e federal, que uma era de extrema necessidade de adaptação climática está se plasmando na realidade
O Brasil arde em chamas. O governo se debate procurando responsáveis para a origem das chamas. Alega que a realidade fere a série histórica, mas essa já foi abolida pelas mudanças climáticas. Estamos dentro da intempestividade e da incerteza radical trazida pela mudança do clima.
No Brasil, foi necessário cutucar a zona de conforto do governo. “Foi preciso a fumaça e a fuligem da Amazônia e do Cerrado invadindo os corredores do palácio presidencial para o governo federal acordar”, disse Altino Machado, jornalista radicado em Rio Branco, que escreve sobre o meio ambiente há quatro décadas à Associated Press.

Crédito: Ibere PERISSE / Projeto Solos / AFP
Brasília foi mergulhada em fumaça da Amazônia, do Cerrado e do Pantanal. Os incêndios atingiram seu nível mais alto em 17 anos. E outra causa – associada à seca – está relacionada ao fenômeno El Niño, que atingiu o Brasil entre 2023 e 2024.
Cidades como Manaus e Nova York mergulharam no fogo de incêndios florestais em 2023. A pluma de fumaça das queimadas canadenses foi identificada da Nova Inglaterra até a Europa. No Havaí uma cidade foi volatizada por chamas que se espalharam em campos de vegetação seca à velocidade de 100 km/hora.
No Brasil, o corredor de fumaça tomou o caminho dos rios voadores da Amazônia e escureceu os céus de cidades do Sudoeste, como São Paulo. O sol ficou vermelho e o poente dourado.
São Paulo revive, com novos componentes, velhas agruras da queima de cana de açúcar, proibida em larga escala há três décadas. Tornados de fogo começam a ser relatados. Tenta-se resolver o suporte aéreo para combate às chamas com meia dúzia de aeronaves, com apoio do governo federal. Em comparação, o Estado de Manitoba, no Canadá, trabalha hoje com sete aviões-tanque e nove helicópteros em contrato de longo prazo.
O número de focos de incêndio registrados nos primeiros oito meses do ano (104.928), segundo o Inpe, é o maior desde 2010 (118 mil) e 75% acima do computado no mesmo período no ano passado (59.925 mil). Ainda de acordo com o instituto, agosto já é o mês de 2024 com mais focos de incêndio para 16 estados.
Será preciso muito investimento para combater incêndios nessa era do fogo. O financiamento total do Departamento Florestal e de Incêndios da Califórnia (Cal Fire) para proteção e prevenção contra incêndios cresceu de US$ 800 milhões em 2005-2006 para cerca de US$ 3,7 bilhões em 2021-2022.
Os incêndios nos Estados Unidos causaram danos anuais que chegaram a US$ 893 bilhões. Esse cálculo abrange: valores imobiliários diminuídos, perda de renda, danos a bacias hidrográficas e aquíferos, pagamentos de seguros, perda de madeira, danos à propriedade e à infraestrutura, custos de eletricidade, custos de evacuação, custos federais de supressão de incêndios florestais, perdas escolares e de aprendizagem relacionadas a incêndios florestais, aumentos de prêmios de seguro e perda de turismo.
Os custos de saúde dos incêndios florestais contabilizados nesta análise incluem mortes e ferimentos diretos por incêndios florestais, custos de exposição de curto e longo prazo à fumaça de incêndios florestais e custos psicológicos. Os incêndios florestais exacerbados pelo clima custam aos EUA entre US$ 394 e US$ 893 bilhões por ano em custos e danos econômicos.
A administração ambiental do Brasil não pode mais negar as trágicas circunstâncias dos incêndios climáticos. Os incêndios paulistas explodem no cenário de 36ºC, solos secos e atmosfera com menos de 20% de umidade.
A ministra do Meio Ambiente Marina Silva, que havia reconhecido a gravidade esperada para o ano de 2024 há meses, comparou os fatos atuais ao Dia do Fogo, ocorrido na Amazônia, quando fazendeiros incendiavam a floresta para ampliar suas propriedades. Não é o caso. Roraima enfrenta incêndios sem precedentes, e vários países amazônicos, incluindo Guiana, Suriname e Venezuela, registraram focos recordes no primeiro trimestre deste ano.
De acordo com dados do governo, o número de incêndios na Floresta Amazônica atingiu o maior nível em duas décadas em julho. “A Floresta Amazônica continua a sentir o efeito da seca severa de 2023 que intensificou a estação seca, provocando incêndios em vastas regiões de vegetação intocada. Os focos de incêndio nessas áreas de floresta primária cresceram 152% em 2023, de acordo com um estudo recente, e recordes de incêndios florestais continuam a ser registrados este ano (2024) em vários países amazônicos”, afirma o periódico Mongabay – agência de notícias sobre conservação e ciência ambiental sem fins lucrativos.
Em áreas sensíveis aos incêndios, como Canadá e Estados Unidos, o preço de seguro contra incêndios tornou-se proibitivo e as seguradoras se retiraram de várias regiões.
É preciso enfrentar a realidade de que fomos arremessados para além dos limites previstos. No Brasil há uma sinergia entre mudanças climáticas, resquícios do El Niño, bloqueio das frentes de umidade do Atlântico, falta de chuvas na Amazônia e redução drástica da umidade continental, além de ventos fortes que espalham rapidamente as chamas.
O rei está nu. O Brasil precisa compreender, a começar dos governos municipais, estaduais e federal, que uma era de extrema necessidade de adaptação climática está se plasmando na realidade. É hora de adaptação, de considerar que a realidade inexorável da ultrapassagem de 1,5ºC da temperatura em média global desde a era industrial está batendo à nossa porta.
A prática da economia, ou deseconomia das mudanças climáticas, precisa ser revisada. Enquanto setores do agronegócio da cana apontam sofrer R$ 1 bilhão de prejuízos no Estado de São Paulo, a conta da perda do Capital Natural que levou a este estado de devastação nunca foi contabilizada.
A contínua perda de florestas no território paulista transformou a região em mar de cana, altamente combustível, que com secura e altas temperaturas conduziram a região a um cenário historicamente não experimentado. Vide as tempestades de poeira do ano passado, imitando os haboob típicos do Sahara, reeditados na terra seca e vermelha do norte do Estado de São Paulo, que perde, ano após ano, sua vitalidade.
O mercado internacional de açúcar se agita. Ao mesmo tempo que empresas pedem subsídios ao governo brasileiro, asseguram a seus acionistas que não haverá perdas.
Ao que tudo indica, a crise do fogo de 2024 ainda não resultará em medidas de mitigação climáticas territoriais, que permitam a continuidade saudável de atividades agrícolas. Seria necessário implementar barreiras florestais, de forma estratégica, visando proporcionar sistemas naturais para manutenção de umidade e barreiras para contenção dos ventos, impedindo o estado de tempestades de poeira que podem se tornar mais frequentes e se alternar com nuvens de fuligem.
O material particulado das queimadas, considerado carcinogênico e provocador de danos para o sistema respiratório e vascular, continua a invadir cidades e residências. A população das cidades paulistas atingidas pela fumaça e seus componentes tóxicos não é orientada a usar máscaras de proteção, assim como também não foi orientada a população da região do Pantanal.
Segundo a pneumologista Isaura Espínola, responsável pelo Programa de Asma Grave e de Difícil Controle do Hospital de Messejana, no Ceará, “os incêndios decorrentes da prática na agricultura e da queima de lixo doméstico e industrial geram fumaça tóxica que prejudica a saúde das pessoas”. A pneumologista também orienta que, se houver fumaça nos arredores, as pessoas devem usar máscaras de proteção e não descuidar da hidratação.
A era do fogo deve ser enfrentada com honestidade pelos governos. Ela é nova. Não é encontrada na série histórica nem prevista nas agendas econômicas. Vamos ter que aprender a nos defender dessa ameaça, que ao redor do mundo vem sendo batizada com novas palavras, como firenado, gigafire – até mesmo fire pandemic.
Carlos Bocuhy é presidente do Instituto Brasileiro de Proteção Ambiental (Proam)