África além dos preconceitos
Quatro livros recentes debatem, na França, as causas da pobreza africana. Curiosa divisão entre os autores: o problema principal do continente estaria na “ausência” de desenvolvimento ou nos males provocados por um “progresso” claramente associado a desigualdade?Augusta Conchiglia
Idéias preconcebidas e estereótipos sobre a África Subsaariana nunca desaparecerem da mídia e das publicações especializadas. Neste início do século 21, entretanto, tais clichês têm ganhado novo vigor. Patente, o fracasso das políticas de desenvolvimento impostas às nações da região – em muitos casos, o PIB é hoje inferior ao dos anos 60 – teve o efeito de “descomplexar” os observadores mais arrogantes do continente. Na França, essa tendência manifestou-se abertamente com a efêmera lei sobre “o papel positivo” da colonização [1] e a rejeição cada vez mais assumida de todo “arrependimento” a esse respeito. Um sentimento que traduziria “a vergonha de si mesmo”, como declarou, de maneira peremptória, o presidente Nicolas Sarkozy na noite de sua eleição.
O diagnóstico antecipado pelos “afro-pessimistas” é severo: a África está “falida” e seu futuro está comprometido pelas próximas gerações. A responsabilidade incontestável dos regimes nacionais locais, incompetentes e corrompidos, ofusca, cada vez mais, a responsabilidade, também concreta, dos ocidentais. Sinal dos tempos: um consenso crescente cerca as teorias que apontam as tendências “suicidas” da África. Ensaístas africanos foram, inclusive, os primeiros a teorizar, no início dos anos 90, “a recusa ao desenvolvimento” manifestado pelo continente negro, ou a necessidade de um “ajuste cultural” [2] .
A África seria, então, vítima de si própria? De sua própria história? Os principais responsáveis designados: o funcionamento do Estado, o clientelismo étnico, as práticas de lucro e especulação dos ricos e dos comerciantes que resultam em corrupção e endividamentos insuportáveis. Os “bloqueios sócio-culturais e históricos” explicariam a fenda que se alarga entre a África e o resto do mundo e os comportamentos irracionais “próprios dos povos africanos”, assim como a pouca propensão à acumulação capitalista; o ônus gerado pelo abrangente apoio à família, que reprimiria a poupança e todos os investimentos produtivos. Os povos que dilapidam riquezas naturais contribuem para a desertificação e para o desmatamento, e são incapazes de gerar progresso – o que faz deles eternos dependentes de assistência [3] .
Um estudo multidisciplinar disseca cinqüenta preconceitos sobre o continente
Tais generalizações abusivas, que a mídia freqüentemente, motivaram uma equipe multidisciplinar de especialistas formada por Georges Courade, diretor de pesquisa no Instituto de Pesquisa para o Desenvolvimento (Institut de recherche pour le développement – IRD) [4]. Os pesquisadores dissecaram 50 clichês ou idéias preconcebidas sobre a África, destacando três grandes “posturas e crenças intelectuais” amplamente populares: a primeira, explica Courade, decorre de diversas projeções ocidentais (as maneiras de a África ver e construir uma identidade). A segunda faz uma leitura determinista de dificuldades espaciais, naturais e históricas, explicando a catástrofe africana. A terceira retorna aos obstáculos demográficos e culturais impostos ao progresso material.
No capítulo da identidade, a questão étnica é levantada constantemente para explicar os conflitos e a inviabilidade do Estado-nação. Sem minimizar seu papel no desenvolvimento das guerras, os autores relembram o quanto a etnia é freqüentemente instrumentalizada em torno “de desafios como a conquista do poder central, por mais fraco que ele seja, a renda proveniente da mineração e da atividade petroleira, a partilha do maná do Estado, a questão central do acesso à terra, a atribuição de títulos e de direitos”. Tão significativa quanto tudo isso é a recomposição étnica organizada pelos colonizadores a fim de “dividir para reinar”. O exemplo mais caricatural da manipulação de identidade é o da África do Sul, com o apartheid, cujas seqüelas permanecem vivas.
Contudo, para além dos clichês e das manipulações, a etnia parece afirmada como comunidade política, e atuante no processo de redefinição do projeto democrático [5]. Tal afirmação obriga os Estados a evoluir em direção a modelos menos centralizadores – mas não necessariamente para etno-nações, como, por vezes, se sugere, sob o risco de favorecer uma balcanização tão perigosa quanto desprovida de fundamentos históricos.
Uma outra idéia preconcebida que concerne o Estado é objeto de crítica por parte dos pesquisadores liderados por Courade. O Estado teria dificuldade para se afirmar na África, na medida em que seria, antes de mais nada, um modelo importado do Ocidente. Trata-se de contradição grave: não é o Estado ocidental que está em discussão, mas sim o Estado colonial, que era um Estado “truncado, decapitado de sua cabeça política, situado em metrópoles, sem legitimidade e reduzido localmente ao aparelho administrativo”. Na condição de instrumento de dominação, cujo objetivo principal era “gerar arrecadação de impostos e recrutar mão-de-obra para o trabalho forçado”, o Estado colonial não podia constituir um modelo eficaz para os países que tinham se tornado independentes. Esse modelo gerou um Estado híbrido, neopatrimonial, onde cada titular de uma parcela de autoridade pública “pode privatizá-la em benefício próprio e das pessoas próximas a ele” [6].
Corrupção e riqueza natural exagerada, dois argumentos falsos
Ainda que bastante difundida no subcontinente, a corrupção não pode ser considerada o defeito congênito das sociedades que praticam o “jeitinho”, considera-se também, em resposta a um dos estereótipos mais comuns no continente africano. Os autores observam que “a corrupção, sem dúvida, foi acelerada porque houve um retorno ao posicionamento do serviço público no campo da ideologia liberal, devido às deficiências do Estado e, principalmente, ao empobrecimento maciço da população [7]”. Por outro lado, se na África o desenvolvimento do fenômeno repousa na “sua aceitação das relações clientelistas”, ele também se “prolonga na corrupção política e econômica nascida das relações do mercado e de sua regulação estatal, fenômeno mais universal”.
Uma outra idéia preconcebida, cuja crítica é fundamental para aqueles que refletem sobre políticas transformadoras, reside na convicção de que a abundância de riquezas naturais seria suficiente para o desenvolvimento, caso este fosse mais bem planejado. É inegável que a África dispõe de recursos importantes, por vezes, inexplorados, exportados e freqüentemente saqueados e dilapidados. Paralelamente, está igualmente comprovado que a economia de renda e a valorização de tais riquezas naturais não favorece a diversificação da economia e, menos ainda, uma partilha minimamente eqüitativa dos frutos do crescimento. É, portanto, sobre “os recursos humanos e sobre as sociedades dispostas a inventar, criar, empreender num ambiente social e político reorganizado” que o continente deve se apoiar [8]. É urgente que o conjunto de atores políticos africanos dediquem-se seriamente a refletir sobre “que tipo de desenvolvimento e que gestão de riquezas naturais são desejáveis para seu continente”. Sem tais definições, muitos países permanecerão “estruturalmente não desenvolvíveis”.
Mas na elaboração de estratégias econômicas, as escolhas feitas durante a colonização continuam a pesar. Jean Pierre Foirry, da Universidade de Auvergne, membro do Centro de Estudos e de Pesquisa sobre o Desenvolvimento Internacional (CERDI), observa que a dominação ocidental teve efeitos duradouros: “Um efeito voluntário de especialização regressiva em produtos complementares aos das metrópoles, o que constituiu, sem dúvida, um freio à revolução industrial nesses países. Tanto que é mais necessário falar em pilhagem de matérias-primas do que de comércio equilibrado. Até porque os preços delas não são favoráveis aos produtores locais, e os termos das transações são menos definidos pela oferta e pela demanda do que pelo embate de forças subjacentes”. Ao mesmo tempo, houve um efeito indireto de melhoria da saúde e do abandono dos povoados, conduzindo a reações em cadeia (explosão demográfica e migrações urbanas) difíceis de administrar e cujas conseqüências apareceram no momento da independência.
A equação do desenvolvimento coloca-se em termos diferentes – e freqüentemente mais contestáveis – para Jean-Paul Gourévitch. Esse especialista internacional em recursos humanos e professor na Universidade Paris XII destaca as negligências dos governos locais no que diz respeito, por exemplo, à agricultura: “A África é uma das únicas regiões do mundo a negligenciar seus agricultores, enquanto na Europa, Japão, Estados Unidos e em vários países da América Latina os rendimentos dos agricultores são protegidos e subvencionados, e a terra tem valor”. Por causa do preço extremamente baixo dos produtos agrícolas, “a terra não vale nada, o que gera a desertificação e a urbanização galopante”, acrescenta Gourévitch. A revalorização da terra seria, portanto, “um meio de devolver à África o gosto pelo trabalho, em vez de criar hordas de desempregados e dependentes da assistência social, que são os motores dos problemas nas cidades, onde os sistemas de proteção social são pouco desenvolvidos”.
Polêmica: opção seria adotar o “desenvolvimento” ocidental?
O autor retrata o impasse entre a liberalização exigida dos mercados africanos e a hostilidade, há muito tempo manifestada, pelas instituições financeiras internacionais, em relação a todas as políticas africanas de proteção ou subvenção da produção agrícola local. Gourévitch estima ainda que fatores culturais impediriam a África de se modernizar, contrariamente ao que aconteceu com outros grupos humanos. Segundo ele, os chineses e os indochineses adaptam-se profundamente e sem perder tempo, enquanto entre os africanos o processo se dá de maneira completamente diferente. O sistema continental, caracterizado por “fraca produtividade, baixos rendimentos e forte redistribuição” é, entretanto, insustentável, afirma ele, antes de fazer uma comparação audaciosa: “Enquanto o Ocidente soube se apropriar do pensamento e dos avanços dos outros, a cultura africana não soube integrar a seus valores humanistas a evolução tecnológica nem os imperativos financeiros”. Gourevitch convida, por fim, as elites políticas a tomar consciência da implosão inevitável da identidade africana sob a pressão das imagens que a cultura ocidental difunde e das necessidades que ela cria: “A juventude, impaciente para consumir, não pode mais esperar que lhe cedamos a palavra”.
É justamente contra os riscos e uma aculturação pelo consumo que Cheikh Tidiane Diop recorre a essa mesma juventude. Contrariamente a Gourevitch, Diop — economista formado nas universidades de Dakar, Bourgogne e Franche-Comté — clama alto e forte que o atraso econômico do continente negro não pode ser atribuído à sua identidade, mas principalmente à recusa, tanto da comunidade internacional quanto dos próprios países africanos, em considerar “as lógicas culturais como dimensões essenciais do desenvolvimento”. Uma constatação partilhada por organizações como a ONU, que têm a intenção de corrigir os modelos dominantes, explica Diop. O autor senegalês reivindica o direito a um desenvolvimento equilibrado, que respeite o homem: “Será que estas taxas de crescimento traduzem o índice de felicidade das sociedades?”. Tal ponto de vista é partilhado por Georges Courade, uma vez que ele considera que seja “confortável para os práticos do desenvolvimento, confrontados pelas resistências, recusas e pelas as adaptações legítimas daqueles que supostamente são beneficiados por suas ações, incriminar as mentalidades arcaicas ou retrógradas, em vez de enxergar ou admitir que as ações propostas podem ser inadequadas, contraproducentes ou perigosas para o tipo de público a quem são direcionadas”.
Mais conciliador, Foirry, reconhecendo na cultura africana “valores de futuro sobre os quais ela poderia fundar um modelo de africano de desenvolvimento durável”, julga que a “tensão sobre as tradições e a ausência de uma verdadeira mudança de mentalidade e de comportamentos” é uma das armadilhas que tornam a crise do desenvolvimento “quase insuperável a curto e médio prazos”. Outra armadilha seria a “economia demográfica”: a superpopulação e suas conseqüências sobre a integração do continente e a integração à economia mundial. É necessário romper o ciclo vicioso criado pelo crescimento demográfico intenso que praticamente impede qualquer poupança, assim como gastos e investimentos sociais.
Em vez de “ajuda”, ou “assistência”, que tal direitos e igualdade?
O postulado de uma “demografia suicida” é tratado de maneira diferente no livro de George Courade. Subpovoada, a África tem vivido, desde 1960, durante quatro séculos, um crescimento demográfico “desenfreado” e uma “urbanização galopante”. Esse fenômeno, que deveria se estender ainda por duas gerações, seria, na realidade, conjuntural e necessário a um reequilíbrio histórico. Desde 1992, as taxas de natalidade vêm diminuindo lentamente e o crescimento atual “constitui uma recuperação natural que permitirá à África ocupar novamente o lugar que ocupava no século 16 — com 17% da população mundial” [9]. Para a equipe de Courade, o bônus demográfico poderá até mesmo ser favorável para a África, como foi no caso da Ásia, visto que os menores de 15 anos, que representam 45% da população, correspondem a um número maior de formandos do que havia no passado. O verdadeiro desafio do século 21 não reside, portanto, na explosão demográfica, mas “na busca de um crescimento mundial mais equitativo”.
Outros fatores, notadamente geográficos, explicariam o subdesenvolvimento persistente do continente. Segundo Foirry, “os países africanos acumulam deficiências e desvantagens maiores que a dos outros países pobres, que recentemente conseguiram sair de seu próprio poço de pobreza” [10]. Um em cada três africanos vive em um país sem portos, contra apenas um em cada trinta latino-americanos, e um em cada 50 asiáticos. A África tropical, região mais pobre do continente e que concentra quase a totalidade dos países menos desenvolvidos do mundo, teria, segundo Foirry, desvantagem por sua geografia. Enfrentaria, por tal razão, alguns problemas: alto custo dos transportes e mercados reduzidos, zonas áridas com poucos rios para favorecer irrigação em grande escala, populações agrícolas dispersas e doenças tropicais. Os Estados tropicais, mesmo aqueles que estão entre os mais bem governados, “tropeçam no problema da pobreza”. E os dois fatores estão ligados: “Um país não é pobre somente por que é mal governado; é mal governado por ser também pobre”.
A decolagem da África exige, segundo Foirry, uma revolução longa e difícil. Ela já está em andamento, impulsionada por toda parte pela juventude e populações urbanas que se tornaram majoritárias, mas não será concluída até que os países se tornem democráticos, a dependência em relação à assistência social diminua, as sociedades se “desinformalizem”, e as atividades e empregos modernos sejam suficientes para a formação de uma classe média dinâmica. “Não resta outra coisa senão avançar com todo o ânimo”, afirma Foirry.
Eis uma visão otimista, mas que pode desagradar Cheikh Tidiane Diop por implicar uma “normalização” da África e a renúncia a uma via própri
Augusta Conchiglia é jornalista.