Africanidade musical brasileira
Do samba ao jazz, passando pela bossa nova, muitas de nossas criações beberam na fonte do continente negro. Depois de séculos de sincretismo, subsiste no país uma inspiração musical tipicamente brasileira nos ritmos, nas melodias e nos instrumentos, mas que muito se aproxima do universo dos países da África Ocidental
A música popular brasileira é um orgulho nacional. Até hoje o mundo celebra o samba, a bossa nova e o nosso jazz, inventados por geniais antropófagos como Tom Jobim e Hermeto Pascoal, passando por Paulo Moura e Airto Moreira, para citar apenas alguns.
Em maior ou menor grau, todas essas criações beberam na fonte da africanidade. Africanidade está definida como tudo aquilo que possui “caráter ou qualidade” ou “tem afinidade com a África Negra”. Ou seja, distinta daquela tradição herdada dos escravos que resultou nas manifestações do sincretismo afro-brasileiro, como candomblé, umbanda e capoeira.
O antropólogo e etnomusicólogo Paulo Dias, especialista em cultura afro-brasileira e presidente da associação Cachuera!1 ressalta que a africanidade na música brasileira se deu sempre a partir da presença de africanos no Brasil, e não de uma ligação direta com a África. “Vale lembrar que o que nos unia à África nos tempos da Colônia e do Império eram interesses estritamente comerciais em torno do tráfico escravo”, explica, “e nunca qualquer interesse de ordem cultural.” Dessa forma, foi no contexto pós-abolicionista que se formaram os principais gêneros – lundu, maxixe, choro, samba e, numa escala mais regional, o baiano, o maracatu e o carimbó.
Dias ressalta que atualmente a distância geracional da África se acentua. “O que permanece de africano na musicalidade brasileira vem sendo mantido pela memória, pelos pés e gargantas, congadas, batuques de terreiro, religiões de matriz africana, sambas, bois, quilombos. Um universo vastíssimo, que tem corrido desde sempre em paralelo à cultura dominante, oficial ou dita ‘de mercado’, e só muito recentemente, a partir da década de 1990, começou a aparecer na mídia.”
A burguesia branca nacional também se apropriou, mais ou menos unilateralmente, de seu quinhão dessa tradição. Daí surgiu a Bossa, não tão nova assim, irrigada por outras possibilidades acessíveis apenas para determinado status social, como as requintadas harmonias jazzísticas afro-americanas, que promovem o desligamento quase completo da dança e da corporalidade. “E, vale dizer, da África!”, lembra Dias.
Quem são hoje os sucessores de Jorge Ben, Wilson Simonal, Jair Rodrigues, Clara Nunes, Gilberto Gil (em sua fase “Batmacumba”) e Martinho da Vila, que nos anos 1960 e 1970 celebraram o orgulho da negritude, um pouco influenciados pelo “black is beautiful” do movimento americano em prol dos direitos civis? Onde foi parar a africanidade que impregnava as composições de Pixinguinha e Radamés Gnatalli? E até mesmo os afro-sambas de Baden Powell e Vinícius de Moraes, um músico que buscou o sangue negro como identidade pessoal e se dizia o “branco mais preto do Brasil”?
Bem nos anos 1990, na Bahia, o Olodum, parente próximo de muitos conjuntos de percussão africanos, surgiu para perpetuar essa tradição. E no Recife (PE), outros jovens mostraram que a música pop podia conviver com os estilos tradicionais locais, elaborando uma síntese com o sincretismo do maracatu, o cavalo-marinho e o xangô. O boi-bumbá iluminou as criações do mangue-bit de Chico Science & Nação Zumbi e seguiu impregnando as de Mundo Livre S/A, Mestre Ambrosio e Siba.
E hoje? Para Paulo Dias, a era dos grandes compositores parece encerrada. “Ainda assim, acho que não ‘perdemos’ o veio seminal da africanidade”, diz. “Talvez estejamos atravessando um interregno.” Hoje, a MPB parece ser privilégio de poucos, enquanto a maioria dos jovens curte o gênero “black” no seu i-Pod, cujo repertório inclui essencialmente hits dos americanos Beyoncé, 5 Cent, Eminem, Keanie West, Akon ou Britney Spears. Formatadas por padrões, timbres e programações eletrônicas que lhes conferem um caráter mecânico supostamente destinado a enfatizar sua urbanidade, essas músicas deixam claro que o pop americano também perdeu boa parte da sua africanidade.
Enquanto isso, a africanidade rural do sincretismo, que diz respeito a 400 anos de história afro-brasileira, voltou para os seus recônditos interioranos, seus terreiros e para a sua condição de “música dos excluídos” e de objeto de estudos acadêmicos. Instaurou-se novamente uma ruptura entre a cultura popular tradicional e a música moderna comercial que é ouvida no rádio e nas trilhas de novelas. Há pouco diálogo entre elas e, com isso, a primeira corre o risco de cair no esquecimento. Ainda assim, subsiste uma africanidade musical suburbana, tipicamente brasileira e eminentemente acústica, nos ritmos, nas melodias e nos instrumentos (o balafon, o berimbau, o atabaque, o pandeiro etc.), que muito se aproxima do universo musical dos países da África Ocidental. Presente em todo lugar onde são tocadas músicas afro-brasileiras e ensinadas suas técnicas, ela permanece na informalidade e raramente toma o caminho de um estúdio de gravação.
Do lado de fora da música estritamente mercadológica, pipoca na internet uma pequena multidão de artistas que bebem diretamente do tradicional. Paulo Dias ressalta também “os saraus da periferia, como o da Cooperifa e do Panelafro, em São Paulo”. Segundo ele, “quem tem voz ativa hoje na periferia superpopulosa de São Paulo são os rappers, que se voltam cada vez mais para a África. E alguns deles têm contato direto com o rap africano, uma vez que o hip-hop é um movimento mundial sem precedentes, que une as periferias e as torna centro”.
Não houve na história recente interação relevante entre as culturas do Brasil e da África, como ocorreu, por exemplo, com o reggae jamaicano e a música cubana, que se renovaram no contato com a “terra mãe”.
O Brasil atual pode até cantar em espanhol para escoar sua produ&
ccedil;ão pop no mercado latino, mas mantém-se alheio às criações dos países vizinhos e permanece impermeável à produção africana moderna. Com isso, os jovens que estudam as tradições afro-brasileiras raramente têm acesso às criações de mestres africanos como Franco, Fela Kuti, Ali Farka Touré ou Manu Dibango, que tanto poderiam inspirá-los.
Vale reconhecer que para os “antropófagos” interessados, deglutir a música africana moderna não é tarefa fácil. Afinal, convivem nesse continente 50 nações independentes, nas quais são faladas 1.600 línguas diferentes, e que integram ao menos cinco grupos culturais dominantes. Atualmente, formaram-se focos de intensa produção musical cujas estrelas irradiam suas criações na cena mundial via estúdios de gravação das capitais ocidentais. Entre estas, vale citar os representantes do Mali, Toumani Diabaté – mestre da kora –, Oumou Sangaré, Amadou e Mariam; Baaba Maal (Senegal), Daby Touré (Mauritânia), Femi Kuti (Nigéria), Oliver Mtukudzi (Zimbábue). Seguros da sua tradição, esses artistas não têm medo de incorporar novas tecnologias e influências em seus trabalhos.
Infelizmente, os meios de comunicação de massa e os empresários do show business não vendem a África entre nós. A música africana contemporânea não existe para o grande público. “Nesse contexto”, prossegue Paulo Dias, “o referencial negro [no Brasil] continua sendo de fato a tradição.” E conclui: “Ainda assim, há aqueles que fazem música de resistência; são rappers como Rappin’ Hood ou Gaspar; sambistas como Nei Lopes; compositores como Lenine, entre outros. Talvez não tão geniais como os gigantes de outrora. Mas, vivemos uma outra época”.
*Jean-Yves de Neufville é jornalista, tradutor e pesquisador musical.