Ainda há o que ser dito sobre auxílio emergencial e renda mínima?
Em alguns momentos, as transferências diretas de renda demarcam os limites entre garantir ou não condições de sobrevivência. No entanto, além do papel óbvio de socorro aos que mais precisam, políticas dessa natureza também permitem o estabelecimento de uma espécie de consenso implícito em torno da aceitação de uma fratura social entre os que precisam da garantia do mínimo e os que são “livres” para acumular o máximo
Em meio às discussões em torno da provável “segunda onda” do auxílio emergencial, é possível notar que a tragédia social que nos atormenta, há mais de um ano, alcançou um nível que já nos permite enxergar alguns quase-consensos em torno dos quais tem sido pensado o combate à pandemia e às suas consequências. Um deles pode ser politicamente traduzido pelo entusiasmo de certos setores da elite global pela adoção de uma renda mínima capaz de socorrer os mais pobres. Há versões dessa proposta que carregam o nome “universal”, o que significa que a transferência direta deveria ser garantida a todas e todos indistintamente.
Em seu clássico Utopia, Thomas More afirma, pela boca de Rafael Hitlodeu, que a justiça da Inglaterra criava dois outros problemas ao prender os que roubavam para ter o que comer: para os indivíduos, a prisão traria “pavorosos tormentos”; para o Estado, traria o peso da responsabilidade pela vigília redobrada. Por isso, ele se perguntava: “não seria melhor garantir a existência a todos os membros da sociedade, a fim de que ninguém se visse na necessidade de roubar, primeiro, e de morrer, depois?”. Ainda em 1526, Johannes Ludovicus Vives, professor em Louvain, produziu o que pode ser tido como um esboço de proposta inaugural de programas de transferência de renda, conhecida como De Subventione Pauperum.
Quase cinco séculos depois de More e do professor Vives, a defesa de mecanismos de transferência de renda aos mais pobres tem crescido marcadamente entre milionários e grandes empresários globais. Esse movimento se intensificou com a pandemia. Alguns personagens têm, recentemente, dividido os holofotes com lideranças de organismos multilaterais no Brasil e no mundo na defesa da implantação dessa forma de redistribuição como recurso para lidar com os males do capitalismo, agravados pelo cenário pandêmico. Não está equivocado quem diz que um dos aspectos que unem personalidades como Mark Zuckerberg (fundador do Facebook), Elon Musk (fundador da Tesla e da SpaceX), Bill Gates (fundador da Microsoft), Klaus Schwab (fundador do Fórum Econômico Mundial), Sam Altman, (presidente da empresa que investe no Airbnb, Reddit e Dropbox) e Stewart Butterfield (co-fundador do Flickr e do Slack) é a defesa de uma renda mínima.
Não quero discutir quais os melhores caminhos e os melhores contornos capazes de tornar esse tipo de mecanismo mais eficaz e eticamente mais defensável. Qualquer esforço político que aponte para a solução ou diminuição da barbárie social deve ser incentivada. Não há efeito colateral econômico que não se justifique quando o resultado concreto é a melhoria das condições de vida daqueles que mais sofrem. Por isso, é preciso que fique claro que não se trata de negar o papel decisivo de socorro imediato que possuem as políticas de transferência direta de renda. É, no mínimo, sinal de ressecamento social e de alguma brutalidade não reconhecer a diferença entre ter ou não ter como comprar comida, de ter ou não ter como pagar o aluguel, de ter ou não ter onde dormir e se proteger do frio ou do calor intenso. Em alguns momentos, as transferências diretas de renda demarcam os limites entre garantir ou não condições de sobrevivência. Para boa parte dos beneficiários desses programas, é de vida ou morte que estamos falando.
No entanto, além do papel óbvio de socorro aos que mais precisam, políticas dessa natureza também permitem o estabelecimento de uma espécie de consenso implícito em torno da aceitação de uma fratura social entre os que precisam da garantia do mínimo e os que são “livres” para acumular o máximo.
Uma das formas de traduzir a defesa quase-consensual dessas políticas de transferência de renda, cada vez mais comum mesmo entre bilionários, é que um dos papéis do Estado seria garantir, aos mais pobres, o mínimo. Entretanto, é um efeito facilmente verificável que tudo se passa como se a garantia do mínimo para muitos fosse um salvo conduto para o acúmulo ilimitado de poucos.
Vale sempre lembrar que, sobretudo nas grandes cidades, é comum observar exemplos em que essa garantia tem sido uma forma de fazer com que os sujeitos mais pobres tenham condições para – uma vez garantido o café da manhã, o almoço e o jantar – se venderem para um trabalho precário qualquer. Nesses casos, o mínimo que garante a vida tem sido também, com raras e louváveis exceções, uma forma de fazer girar uma roda em que precarização e empreendedorismo tornam-se duas palavras para um mesmo fenômeno social concreto. A desempregada que, por falta de opção, vende bolo de pote não raro se enxerga como empreendedora, como alguém que olha para o futuro alimentando um sonho de ter uma rede de lojas que vendem bolos de pote. Há inúmeros exemplos que seguem esse padrão.
Aqui deve-se ter cuidado. É preciso sempre olhar com solidariedade para esses esforços genuínos que os mais pobres fazem para lutar contra a própria privação. Não se pode jamais, em nome do que poderíamos chamar de ampliação das expectativas de vida boa, responsabilizar os oprimidos pela opressão de que são vítimas. Luta-se com as ferramentas que se tem e não com as que gostaríamos de ter.
De todo modo, para quem enxerga as mazelas do presente como algo que deve ser superado em um futuro ainda por construir, não me parece de pouco valor perguntar pelos limites de um quase-consenso construído, e fortalecido durante a pandemia, em torno de políticas de transferência de renda que visam garantir o básico.
É preciso se perguntar pelo não-dito, por aquilo que está implícito no discurso de uma parte daqueles que fazem a ampla defesa da garantia do mínimo, mais precisamente, entre os adeptos do topo da pirâmide social. Não fazer isso pode ser uma forma de fechar os olhos, mais uma vez, para um pressuposto que opera de modo concreto, embora silencioso, e que resulta em uma espécie de legitimação da existência de cidadãos de primeira e de segunda classe.
Por que aqueles que estão em situação de privação profunda precisam ser socorridos com o básico? Aliás, quem decide qual é esse básico? Por que esse quase-consenso em torno das políticas públicas de transferência de renda mira na garantia do mínimo? Seria o caso de aceitarmos, mesmo que não explicitamente, que haveria algo como, de um lado, um grupo de cidadãos que precisam do mínimo e, de outro, um grupo que pode acumular sem limites? Se entre os bilionários de bom coração essas não são questões centrais, talvez reste aos que não pertencem a esse grupo se perguntarem pelo alcance político e social desse quase-consenso.
Quando sedimenta-se um espírito social guiado pelo mínimo, tudo que ultrapassa esse nível tende a soar como dádiva, o que em termos políticos é frequentemente experienciado pelos mais pobres como dívida de gratidão, geralmente paga com votos. Entretanto, no momento em que as estruturas dos quase-consensos são ameaçadas, a esperança de alcançar o mínimo pode se transformar em sentimento de raiva, traição ou revolta.
Hélio Alexandre da Silva é professor de Ética e Filosofia Política – Unesp/Franca