Além da finitude: o sujeito poético de Fernanda Spinelli
Imago é a nova obra da autora paulistana e trata da relação entre o nascimento e o renascimento do ser
‘’Porque eu cantei por todas as ruas, cantei. /Porque também fui jacaré, eu fui. /Jards Macalé, / donzela, libélula, mané.’’
Esse é um dos versos que abre o livro de poemas imago, escrito pela paulista Fernanda Spinelli e publicado pela editora Nauta em 2023. Relacionando temáticas como o ir e vir da rotina, o nascimento e o renascimento e sua pulsão provinda dos sonhos do eu lírico, a autora já questiona a partir da escolha do título da obra, que significa uma projeção de imagem da infância em comparação com a idade adulta. Mas é também através do uso imagético, sonoro, que o sentido desse, digamos, sujeito poético, que teremos uma operação múltipla de sentidos.

Há em Spinelli um caráter de fantasmagoria em suas imagens, cuja manifestação é igual às estações do ano, variando em temporalidades, sons, ritmos e espessuras – a sinestesia na literatura, o toque das sensações que o leitor presencia –, mas que podemos encarar como um desejo que não sabemos ao certo o que é, mas que, em nosso inconsciente, sentimos: o amor, a vida e a morte, perenes.
“clamando pelo frio da morte/chamando, pelo fio, a navalha, /a medida justa que valha/esta colheita/às custas da sorte/é o que coleto do amor/e do sumo do amor’’.
Em diálogo com Manoel de barros, essa lacuna da relação do tempo com a página e o seu exprimir pode significar uma busca pela origem do mito, das lembranças, do passado, mas também do presente, em formato de alegoria. Vejamos a figura do anjo em Spinelli, que na abertura de imago reflete um horário: 5 da manhã, e todos eles se foram pela noite afora, mas um futuro está na espera, seja entre Neosaldina, chá, copo de suco e as recordações das ruas que andou e cantou, mas que, no fundo, não resistem à dor do mundo. Será que esse anjo pode direcionar o leitor e a autora para a desgraça, essa ‘’dor do mundo’’, com iminente ameaça, mas com olhar ambíguo?
Ainda sobre a poesia manoelina, há toques de saudosismo e surrealismo além do tempo e o esgotamento pelo viver, que pode ser conferido em algumas partes dos escritos da autora. “o que ganho, o que perco, /os anos em tubo de ensaio, a organização do baralho /os jogos de encaixe, as danças nos bailes’’. Nesse caso temos a nostalgia, mas como Spinelli se desloca para figuras como Hades, Abel e anjos, o toque onírico, surrealista se sobressai em alguns pontos. Ao longo das páginas, a poesia vaga – como um flâneur – para o imaterial, o que não pertence totalmente a esse mundo. “Com foco e cisma, olhei para cima /e, no céu da abundância, achei a miséria /e, nela, a brecha, /a fissura do caule elementar —/ em cada talo, um cavalo em elevação/ flertará com deus, / até ultrapassar a flecha Moira’’
Com escrita leve, acessível, a obra faz um rumo profundo – o que para alguns, erroneamente, pode não ser sinônimo no estilo de escrita – entre as temáticas e jogos linguísticos, sinalizando na autora um estatuto de tecelã, tanto da música quanto do poema.
Lorraine Ramos Assis é socióloga e crítica literária. Foi publicada em diversas revistas/jornais nacionais e estrangeiros, tais como Jornal Cândido, Cult revista, Relevo, Granuja (México) e Incomunidade (Portugal). Colabora para São Paulo Review e Revista Caliban, além de integrar o corpo de poetas do portal Faziapoesia. Pesquisa sociologia da literatura e gênero, em particular, violência contra a mulher.