Alemanha Oriental, a história de uma anexação
Mito fundador da União Europeia, o ano de 1989 é, no entanto, um símbolo equivocado. Nesse sentido, na Alemanha Oriental, o acesso às liberdades políticas e ao consumo de massa cobrou um preço alto: o colapso social e uma derrocada econômica frequentemente ignorados no Ocidente
Júbilo, liberdade, um violoncelista virtuoso – Mstislav Rostropovich – tocando ao lado de um muro esburacado, outros possíveis, a promessa de “paisagens florescentes”:1 o evento de 9 de novembro de 1989 costuma ser cantado como uma ode à alegria. Mas há alguns meses veio à tona a discordância entre a grande narrativa da “reunificação” e a violência que se seguiu à chamada revolução pacífica. Pontuações de mais de 20% alcançadas este ano pelo partido de extrema direita Alternative für Deutschland (AfD, Alternativa para a Alemanha) em vários dos Länder da antiga República Democrática Alemã (RDA), a Alemanha Oriental; pesquisas mostrando que “58% dos alemães-orientais sentem que não estão mais protegidos da arbitrariedade estatal do que estavam na RDA” (Die Zeit, 3 out. 2019); sucesso de livros que revelam a década de 1990 do ponto de vista dos “perdedores” – diante de tudo isso, a comemoração da queda do muro assume um tom menos triunfante do que em anos anteriores. Alguma coisa não fecha na bela história de uma generosa Alemanha Ocidental que oferece o marco alemão e a democracia a seu vizinho arruinado por quatro décadas de ditadura comunista.
No outono de 1989, a população da Alemanha Oriental escreveu sua própria história. Sem auxílio externo, manifestações maciças em Berlim, Leipzig e Dresden destituíram o Estado-partido comandado pelo Partido Socialista Unitário da Alemanha (SED), sua polícia política, sua mídia submissa. Nas semanas seguintes à queda do muro, o que a esmagadora maioria dos oponentes do regime desejava não era a unificação, mas uma Alemanha Oriental democrática – 71%, segundo uma pesquisa da Der Spiegel (17 dez. 1989). As palavras de um pastor na colossal manifestação de 4 de novembro de 1989 na Alexanderplatz, em Berlim, refletem esse estado de espírito: “Nós, alemães, temos a responsabilidade histórica de mostrar que um verdadeiro socialismo é possível”.2 Encontramos o mesmo tom na chamada “Por nosso país”, lançada em 28 de novembro e apresentada na televisão nacional pela escritora Christa Wolf. “Ainda temos a oportunidade de desenvolver uma alternativa socialista à RFA [República Federal da Alemanha, a Alemanha Ocidental]”, afirma um texto que recebeu 1,2 milhão de assinaturas – em uma população de 16,6 milhões de habitantes. Reunidos na Mesa Redonda, criada em 7 de dezembro com base nos modelos polonês e húngaro a fim de “preservar a independência” do país e redigir uma constituição, movimentos de oposição e partidos tradicionais esboçaram os contornos de um socialismo democrático e ecológico. A irrupção das forças políticas da Alemanha Ocidental logo neutralizou essa mobilização.
Inicialmente surpreendidos pelos acontecimentos, os dirigentes de Bonn – então capital da Alemanha Ocidental – embarcam na conquista eleitoral do país vizinho. Sua interferência nas eleições legislativas de 18 de março de 1990, a primeira isenta da influência do partido-Estado e da União Soviética, foi tamanha que Egon Bahr, ex-ministro social-democrata e artífice na década de 1970 da aproximação entre as duas Alemanhas, fala delas como as “eleições mais sujas que já vi na vida”.3 Contando com o apoio dos Estados Unidos e a passividade de uma União Soviética enfraquecida, a Alemanha Ocidental, liderada pelo chanceler conservador Helmut Kohl, em poucos meses realizou um golpe impressionante: anexação de um Estado soberano, liquidação integral de sua economia e de suas instituições e transplante de um regime de capitalismo liberal.
No entanto, quatro décadas após a fundação da Alemanha Oriental, em 1949, a população havia forjado uma identidade específica, marcada tanto pelas conquistas socialistas em termos de trabalho, solidariedade, saúde, educação e cultura como por aspectos como a terrível hostilidade contra o Estado-partido autoritário, a retirada para a esfera privada e a atração pelo Ocidente. Os arquitetos da “reunificação” perceberiam um pouco tarde que um povo não pode ser dissolvido com a mesma facilidade com que se fecha um conglomerado estatal.
Para entender quão mal ajambrada é a história oficial, em que praticamente ninguém do lado oriental acredita, precisamos nos livrar do termo que vem sendo utilizado para resumi-la: nunca houve “reunificação”. Sobre esse ponto, as palavras ditas por Wolfgang Schäuble, ministro do Interior da Alemanha Ocidental responsável pelas negociações do tratado de unificação, à delegação da Alemanha Oriental, na primavera de 1990, são inequívocas: “Caros amigos, é a RDA que está entrando na República Federal, não o contrário. […] O que está acontecendo não é a unificação de dois Estados iguais”.4 Em vez de se realizar a aprovação, pelos dois povos alemães reunidos, de uma nova Constituição, de acordo com a Lei Fundamental da Alemanha Ocidental (art. 146) e com a aspiração dos movimentos cívicos, Bonn impôs a anexação pura e simples de seu vizinho, recorrendo para isso a uma disposição obscura usada em 1957 para anexar o Sarre à Alemanha Ocidental. Assinado em 31 de agosto de 1990 e passando a vigorar em 3 de outubro, o contrato de unificação simplesmente estendeu a Lei Fundamental da Alemanha Ocidental a cinco novos Länder criados para a ocasião, apagando com uma canetada todo um país, que a partir de então passaria a ser lembrado apenas por sua inflexível ditadura policial, pelo vestuário fora de moda e pelo automóvel Trabant.
União monetária acelerada
Duas forças desiguais estavam em oposição. Os alemães-orientais queriam as liberdades políticas e a prosperidade, mas sem renunciar às características de sua sociedade. Para Bonn, explica o acadêmico italiano Vladimiro Giacché, autor de um esclarecedor estudo intitulado Le Second Anschluss [A segunda anexação], “a prioridade era a liquidação absoluta da RDA”.5
O primeiro passo era encher, ao mesmo tempo, as urnas e as carteiras, dois objetos amplamente negligenciados pelo Estado-partido da Alemanha Oriental. Quando Kohl propôs, em 6 de fevereiro de 1990, estender para o Leste o marco alemão do Oeste, ele tinha vários objetivos. Um era amarrar firmemente a Alemanha Oriental ao Ocidente, para o caso de o complacente Mikhail Gorbachev ser derrubado em Moscou. Mas, acima de tudo, ele desejava vencer as eleições legislativas previstas na Alemanha Oriental para o dia 18 de março. As pesquisas davam ao recém-criado Partido Social Democrata da Alemanha (SPD) uma larga vantagem sobre a União Democrata Cristã (CDU), que participava havia décadas do governo dominado pelos comunistas. A solução da “integração imediata da economia da RDA no universo econômico e monetário do marco alemão”6 atendia a ambos os objetivos. Inspirada sobretudo nas ideias do especialista em questões monetárias Thilo Sarrazin – que duas décadas depois ficaria famoso com seu livro xenófobo L’Allemagne disparaît [A Alemanha está desaparecendo] –, ela surgiu em janeiro de 1990 no Ministério das Finanças de Bonn. Até então cético, o chanceler Kohl aderiu no início de fevereiro à ideia de uma união monetária acelerada, sem dar a menor bola para a oposição do presidente do Bundesbank – teoricamente independente –, que não teve escolha.
Junto ao público, essa perspectiva atuou como um formidável acelerador de campanha. Com o marco ocidental valendo, na época, 4,4 marcos orientais, a promessa de troca imediata na proporção de um para um entusiasmou os cidadãos do lado oriental, cansados da penúria, e colocou o tema da unificação dos dois Estados no centro da campanha. A CDU e seus aliados compensaram o tempo perdido e ganharam a eleição com mais de 48% dos votos, contra 21% para o SPD e 16% para o Partido do Socialismo Democrático (PDS, derivado do SED). Mas, por trás do “ato de generosidade política da República Federal da Alemanha”, elogiado por Lothar de Maizière, líder da CDU oriental e grande vencedor das eleições, escondia-se uma decisão política: “garantir, por meio do marco, a rápida anexação da RDA à RFA”, como observa Christa Luft, ministra da Economia de dezembro de 1989 a abril de 1990.7
A escolha da demolição social
Com a moeda, toda a economia de mercado foi repentinamente transplantada para a Alemanha Oriental. “Só era possível ceder o marco alemão em troca de uma transformação completa do sistema econômico”, lembra Sarrazin. Os termos do tratado assinado em 18 de maio endossam a mudança de regime. “A união econômica é baseada na economia social de mercado como ordem econômica comum das duas partes contratantes. Tal ordem é determinada, em particular, pela propriedade privada, pela concorrência, pela liberdade de preços e pela livre circulação fundamental da mão de obra, capitais, bens e serviços” (art. 1º §3). Visto que contradizem o liberalismo político, o livre-comércio e “a propriedade de investidores privados em terras e meios de produção”, “as disposições da Constituição da República Democrática Alemã sobre os fundamentos até então socialistas da sociedade e do Estado não serão mais aplicadas” (art. 2º).
Pouco depois da publicação do tratado, em 1º de julho de 1990, e da corrida aos bancos que a seguiu, veio a desilusão dos alemães-orientais. Enquanto os consumidores se lançavam sobre as mercadorias ocidentais, os preços reais dos bens e serviços produzidos no lado oriental saltavam entre 300% e 400%, e as empresas perdiam, de uma vez, toda a competitividade. Elas se viram privadas não apenas de seu mercado doméstico, capturado pelos grupos ocidentais, mas também de seus clientes do Leste, principalmente a União Soviética, que absorviam na época de 60% a 80% das exportações da Alemanha Oriental. Nas próprias palavras do ex-presidente do Bundesbank, Karl Otto Pöhl, o país engoliu “uma dose cavalar, que nenhuma economia seria capaz de suportar”.8 Convencidos das virtudes da sangria, os negociadores de Bonn recusaram-se a adotar qualquer contramedida de apoio (alinhamento progressivo da taxa de câmbio, subsídio da
produção do lado oriental, sobretaxa dos produtos do lado ocidental).
Em uma noite, a Alemanha Oriental realizou a liberalização econômica que a Alemanha Ocidental empreendeu, no pós-guerra, em uma década. Em julho, a produção industrial caiu 43,7% em relação ao ano anterior; em agosto, 51,9%; e, no final de 1991, quase 70%. O número oficial de desempregados subiu de apenas 7.500, em janeiro de 1990, para 1,4 milhão, em janeiro de 1992 – mais que o dobro se forem contados os trabalhadores em desemprego técnico, reconversão ou prestes a se aposentar. Nenhum dos países da Europa central ou do Leste Europeu que saíram da órbita soviética teve um desempenho tão ruim.
A escolha pelo desmonte social foi deliberada: dezenas de relatórios detalhavam quais seriam as consequências. “É melhor fazer a unificação com uma economia arruinada do que ficar mais tempo no bloco soviético com uma economia meio arruinada”, avaliava o teólogo social-democrata Richard Schröder.9 Dizer que suas preces foram ouvidas é pouco. No espírito dos Ossies – os cidadãos do lado oriental –, o anjo exterminador tem um nome: Treuhand, abreviação de Treuhandanstalt, ou “agência fiduciária”. Criada em 1º de março de 1990, ela foi a ferramenta de conversão da antiga Alemanha Oriental para o capitalismo. A Treuhand cumpriu sua missão privatizando ou liquidando quase todo o “patrimônio do povo” – como eram chamadas as empresas e propriedades estatais cuja propriedade a Treuhand recebeu em 1º de julho de 1990. À frente de 8 mil conglomerados e companhias, com seus 32 mil estabelecimentos (de siderúrgicas a colônias de férias, mercearias e cinemas de bairro) e uma superfície fundiária equivalente a 57% da Alemanha Oriental – um império imobiliário –, a instituição, que em uma noite se tornou o maior conglomerado do mundo, decidiu o destino de 4,1 milhões de empregados (45% dos ativos). Quando foi encerrada, em 31 de dezembro de 1994, ela tinha privatizado ou liquidado a maior parte de seu portfólio e podia se orgulhar de um saldo inédito na história econômica contemporânea: a antiga Alemanha Oriental estava desindustrializada, 2,5 milhões de empregos haviam sido destruídos e as perdas estimaram-se em 256 bilhões de marcos – para um ativo líquido inicial estimado, por seu próprio presidente, em outubro de 1990, em 600 bilhões!10 Esse prodígio do liberalismo representa para Luft, a última ministra da Economia da Alemanha Oriental, “a maior destruição de capital produtivo já realizada em tempos de paz”.11 Os pesquisadores Wolfgang Dümcke e Fritz Vilmar veem aí um ponto alto da colonização estrutural sofrida pela Alemanha Oriental:12 investidores e empresas da Alemanha Ocidental compraram 85% das unidades de produção da Alemanha Oriental; os da Alemanha Oriental não adquiriram mais do que 6%.
A ideia de uma guerra-relâmpago contra a economia planificada do país vizinho remonta à década de 1950. Autor, em 2018, de uma pesquisa sobre a Treuhand, o historiador Markus Böick atribui a Ludwig Erhard, ministro da Economia da Alemanha no pós-guerra e guardião do templo ordoliberal, a paternidade intelectual dessa estranha criatura burocrática. Em seu ensaio prospectivo Problèmes économiques de la réunification [Problemas econômicos da reunificação], publicado em 1953, Erhard pedia uma união monetária rápida e apresentava o “modelo, que não era sem alternativas, de uma ‘terapia de choque’”.13
Ironicamente, a Treuhand criada em março de 1990 não se destinava de início a privatizar a economia. Concebida nos círculos dissidentes e nos movimentos cívicos, essa “sociedade fiduciária para a preservação dos direitos dos cidadãos da Alemanha Oriental sobre o patrimônio do povo da RDA” deveria redistribuir as ações das empresas estatais para a população. O sindicato IG Metall propunha transferir a propriedade diretamente para os funcionários. Mas o triunfo dos conservadores nas eleições da Alemanha Oriental de 18 de março mudou o jogo. Duas semanas antes da entrada em vigor da união monetária, no dia 1º de julho, o Volkskammer – o Parlamento da Alemanha Oriental – adotou, em caráter de urgência, uma “lei para a privatização e a organização do patrimônio do povo”. Essa era a ideia de uma união de compromisso entre socialismo e capitalismo, que já desde a queda do muro alimentava o pensamento econômico reformista da Alemanha Oriental. Mas o que venceu foi a “terapia de choque”, pensada meio século antes.
Estruturada em poucas semanas, a Treuhand começou a atuar na base do improviso. Na ausência de uma rede telefônica comum às duas Alemanhas, seus funcionários de Berlim Oriental postavam-se, em horário combinado, nas cabines telefônicas de Berlim Ocidental para conversar com os colegas do lado ocidental.14 Esse aspecto artesanal não impediu que tudo o que a Alemanha Ocidental tinha em termos de profissionais de reestruturação de empresas corresse para cuidar do órgão. Seu primeiro presidente, Reiner Maria Gohlke, ex-diretor-geral da IBM, cedeu o lugar, em agosto de 1990, a Detlev Karsten Rohwedder, presidente do grupo metalúrgico Hoesch. O presidente do conselho fiscal era Jens Odewald, figura próxima do chanceler Kohl e presidente de uma cadeia de lojas de departamento da Alemanha Ocidental, a Kaufhof, que depois adquiriu as lucrativas lojas da Alexanderplatz. No verão de 1990, Bonn supervisionou as operações: o Ministério das Finanças instalou junto à presidência da Treuhand um gabinete cheio de executivos vindos de empresas de consultoria como KPMG, McKinsey e Roland Berger, que avaliaram, sem critérios precisos, quais empresas deveriam ser encaminhadas para recuperação, privatização imediata ou liquidação.15
Companhias decepadas
Uma série de decisões absurdas, somadas ao conluio entre a Treuhand, o governo conservador e o patronato da Alemanha Ocidental, alimentou a convicção – nunca desmentida – de que a Treuhand havia agido inicialmente para eliminar do mercado qualquer competição que pudesse reduzir as margens dos grupos da Alemanha Ocidental. Embora asfixiada e com baixo desempenho, a economia da Alemanha Oriental tinhas algumas empresas de grande importância. Em 2 de outubro de 1990, às vésperas da reunificação, a direção da Treuhand decidiu, por exemplo, fechar a fábrica de equipamento fotográfico Pentacon, em Dresden, que empregava 5.700 pessoas e exportava seu modelo Praktica para muitos países do Ocidente.
Em matéria de ecologia, uma das raras realizações da Alemanha Oriental se chama Sero – é a empresa nacional de reciclagem e reutilização de materiais. Quando os municípios pediram sua transformação em uma rede de empresas municipais, a Treuhand negou, preferindo vendê-la em partes a grupos do lado ocidental. Os incansáveis esforços da agência para destruir a companhia aérea Interflug, amplamente lucrativa, para transferir gratuitamente os direitos de operação de suas linhas e o uso de seu aeroporto para a concorrente alemã-ocidental Lufthansa, chegam a ser caricatos.
Na cidade mineira de Bischofferode, foi difícil vender aos habitantes o princípio da concorrência livre e sem distorções. Em 1990, a Treuhand uniu em uma única entidade todas as minas de potássio e as cedeu ao concorrente ocidental K+S, que imediatamente decidiu interromper sua atividade. “Bischofferode é um exemplo de empresa competitiva fechada por causa da concorrência alemã-ocidental”, explica Dietmar Barstsch, deputado do partido de esquerda Die Linke. “Era necessário mostrar que a RDA tinha acabado, que não havia nela nada de aproveitável.”
Com os cortes de centenas de milhares de empregos, vieram os protestos. Em março de 1991, a luta dos 20 mil trabalhadores têxteis de Chemniz (Saxônia) ameaçados de demissão, dos 25 mil trabalhadores químicos que ocuparam fábricas na Saxônia-Anhalt, dos 60 mil manifestantes que marcharam com o IG Metall, das igrejas evangélicas e dos antigos opositores já não era mais por liberdade política, mas contra o liberalismo econômico. Em 30 de março, um grupo incendiou um escritório da agência da Treuhand em Berlim; no dia seguinte, o diretor da instituição, Rohwedder, foi assassinado. Contratada pela consultoria Roland Berger, Birgit Breuel, membro da CDU e fanática por privatizações, o substituiu prontamente.
Mafiosos de plantão, charlatães e escroques organizados logo entenderam que a Treuhand operava como um distribuidor de dinheiro público aberto a quem quisesse comprar seus ativos. Como o órgão era negligente na verificação de antecedentes criminais e referências de seus clientes, os escândalos se multiplicaram: desvio de subsídios relacionados à venda da refinaria de Leuna em Elf-Aquitaine em 1991; executivos corruptos descobertos em 1993 na agência de Halle; desvio de centenas de milhões de marcos para a alemã-ocidental Bremer Vulkan a fim de recuperar os estaleiros de Rostock e Wismar – 15 mil demissões de cara. As más práticas se sucederam a um ritmo tão intenso que fizeram surgir um termo novo especificamente para designá-las: “criminalidade da unificação” (Vereinigungskriminalität).
Em 1998, uma comissão parlamentar avaliou que o montante dessa corrupção estaria entre 3 bilhões e 6 bilhões de marcos,16 aos quais poderíamos talvez ter o desejo de somar os suntuosos emolumentos dos liquidadores (44 mil marcos de bônus por privatização, 88 mil em caso de superação da meta), além do custo exorbitante dos consultores: em quatro anos de atividade, os colaboradores externos da Treuhand devoraram 1,3 bilhão de marcos, sendo 460 milhões em consultorias somente em 1992.17
“O que estamos perdendo hoje nos perseguirá pelos próximos vinte ou trinta anos”, admitiu em julho de 1990 o diretor da Treuhand.18 Na pequena cidade de Grossdubrau, na Saxônia, ninguém esquece a liquidação da indústria de cerâmica, recomendada pela empresa de consultoria KPMG, apesar de haver compradores sérios interessados. Nas eleições regionais de 1º de setembro de 2019, mais de 45% dos eleitores votaram na AfD. Petra Köpping, ministra social-democrata da Igualdade e Integração do Land da Saxônia, acha que os fatos têm ligação. “Precisamos prestar contas às pessoas, no local, sobre o que se passou na Treuhand”, recomenda, e criar uma Comissão da Verdade.
“Zumbi memorial”
Duas comissões parlamentares de inquérito, uma em 1993-1994 e outra em 1998, iluminaram a ponta do iceberg, apesar da obstrução do Ministério das Finanças, que impediu a consulta dos arquivos e dos contratos. “O governo e a Treuhandanstalt revogaram o direito de controle parlamentar de um modo que nenhum governo democrático legítimo ousava fazer desde 1945”, denunciaram os deputados social-democratas em agosto de 1994.19 Depois o assunto sumiu do debate público. Afinal, quem se importa com os Jammerossies – os “chorões orientais”, como eram chamados no lado ocidental?
Nos últimos anos, porém, o fantasma da Treuhand ressurgiu. “Antes, as pessoas ainda tinham esperança”, diz Köpping. “Elas diziam: ‘Estou tentando me virar, estou fazendo um curso, estou mudando de ramo’. Isso durou muito tempo. Mas, uma vez aposentada, essa geração que se entende como a que se encarregou da construção após a reunificação às vezes acaba com uma pensão de 500 euros. Ela enxerga muito bem que aquilo que fez para mudar o país não é reconhecido.” O historiador Marcus Böick compara a Treuhand a um “zumbi memorial” que cristaliza todas as “dívidas podres” da unificação alemã: a aniquilação industrial, o despovoamento das regiões, as desigualdades e o desemprego em massa em um país onde, ainda mais que em outros lugares, o trabalho era a base do status social. O Die Linke pede uma nova comissão parlamentar de inquérito para acessar documentos mantidos em segredo em 1990. Todos os outros partidos do Bundestag se opõem a isso, com exceção da AfD. É bem possível que os sete arquivistas recentemente contratados para vasculhar os 45 quilômetros de arquivos tenham alguma inveja dos 1.400 funcionários designados para cuidar dos documentos da Stasi…
Enquanto aguardamos suas conclusões, já podemos fazer dois balanços relativos à anexação da Alemanha Oriental. O primeiro pode dar motivos para os dirigentes alemães comemorarem: nos anos 1990, o país recuperou sua posição central; a União Europeia acelerou sua integração política e monetária segundo os princípios do rigor germânico; o Tratado de Maastricht, fruto tardio do tratado de unificação alemão, custou milhões de desempregados à Europa. Já o segundo traz as cores da desilusão. Em troca das liberdades políticas e do desenvolvimento de infraestrutura, a população da Alemanha Oriental foi jogada nas águas do capitalismo com uma pedra amarrada no pescoço. “O paradoxo da unificação”, observava em 1998 o ex-opositor do Estado-partido Edelbert Richter, “é que os alemães-orientais foram integrados na democracia e na economia social de mercado ao mesmo tempo que foram amplamente excluídos do que constitui sua base essencial: o trabalho e a propriedade”.20
Outrora industrial e exportadora, a economia da ex-Alemanha Oriental hoje depende da demanda doméstica e da assistência social concedida pelo Estado federal. Para o patronato, a anexação desencadeou um círculo virtuoso: as transferências públicas para os novos Länder financiaram os bens e serviços produzidos por empresas ocidentais e se transformaram em lucro. “Na verdade”, admitiu em 1996 o ex-prefeito de Hamburgo Henning Voscherau (SPD), “os cinco anos de ‘construção do Leste’21 foram o maior programa de enriquecimento dos alemães-ocidentais já colocado em prática”. É também isso que comemora, todo dia 9 de novembro, a classe proprietária do lado ocidental.
Rachel Knaebel é jornalista (Berlim) e Pierre Rimbert é da redação do Le Monde Diplomatique.
1 Promessa do chanceler Helmut Kohl em 1990.
2 Citado por Sonia Combe, La Loyauté à tout prix. Les floués du “socialisme réel” [Lealdade a qualquer custo. Os engodos do “socialismo real”], Le Bord de l’eau, Lormont, 2019.
3 Citado por Ralph Hartmann, Die Liquidatoren: der Reichskommissar und das wiedergewonnene Vaterland [Os liquidadores: o Reichskommissar e a recuperação da pátria], Ost, Berlin, 2008.
4 Wolfgang Schäuble, Der Vertrag: wie ich über die deutsche Einheit verhandelte [O contrato: como negociei a unificação alemã], DVA, Stuttgart, 1991.
5 Vladimiro Giacché, Le Second Anschluss. L’annexion de la RDA [A segunda anexação. A anexação da Alemanha Oriental], Delga, Paris, 2015.
6 Thilo Sarrazin, “Die Entstehung und Umsetzung des Konzepts der deutschen Wirtschafts- und Währungsunion” [A emergência e implementação do conceito de economia alemã e união monetária]. In: Theo Waigel e Manfred Schell, Tage, die Deutschland und die Welt veränderten [Dias que mudaram a Alemanha e o mundo], Munique, 1994.
7 Christa Luft, Zwischen WEnde und Ende [Entre a volta e o fim], Aufbau, Berlim, 1991.
8 Citado por Vladimiro Giacché, Le Second Anschluss, op. cit.
9 Richard Schröder, Die wichtigsten Irrtümer über die deutsche Einheit [Erros mais importantes da unificação alemã], Herder, Freiburg im Breisgau, 2007.
10 Der Spiegel, Hamburgo, 19 dez. 1994. Considerando a inflação, 1.000 marcos de 1990 equivalem a cerca de 300 euros (R$ 1.300) em 2018.
11 Marcus Böick, Die Treuhand: Idee-Praxis-Erfahrung, 1990-1994 [A Treuhand: ideia de experiência prática], Wallstein Verlag, Göttingen, 2018.
12 Wolfgang Dümcke e Fritz Vilmar (orgs.), Kolonialisierung der DDR: kritische Analysen und Alternativen des Einigungsprozesses [Colonização da RDA: análise crítica e alternativa do processo de unificação], Agenda Verlag, Münster, 1996.
13 Marcus Böick, Die Treuhand, op. cit.
14 Ibidem.
15 “Beschlussempfehlung und Bericht des 2. Untersuchungsausschusses ‘Treuhandanstalt’” [Recomendação de decisão e relatório do segundo Comitê de Investigação da “Treuhandanstalt”], Bundestag, Berlin, 1994.
16 Die Welt, Berlim, 2 out. 2010.
17 Ralph Hartmann, Die Liquidatoren, op. cit.
18 Citado por Marcus Böick, Die Treuhand, op. cit.
19 Dirk Laabs, Der Deutsche Goldrausch: Die wahre Geschichte der Treuhand [A corrida do ouro alemã: a verdadeira história da Treuhand], Pantheon Verlag, Munique, 2012.
20 Citado por Fritz Vilmar e Gislaine Guittard, La Face cachée de l’unification allemande [A face oculta da unificação alemã], L’Atelier, Paris, 1999.
21 Citado por Vladimiro Giacché, Le Second Anschluss, op. cit. A “construção do Leste” (Aufbau Ost) refere-se ao programa de financiamento dos novos Länder.