Altermundialistas por toda parte
Ninguém mais pode continuar acreditando na fábula da “impotência pública” diante da globalização neoliberal. O movimento está em busca da construção de uma alternativa, identificando os locais de poder e atuando em todos os níveisJacques Nikonoff
Nestes últimos anos as coisas andaram num ritmo bem mais rápido do que as pessoas imaginavam. O sistema da globalização neoliberal começa a rachar por todos os lados, embora não se deva pensar que vai cair como uma fruta madura; um amplo movimento por uma outra globalização vai se formando e crescendo, em escala planetária. Como poderá esse movimento ganhar uma dimensão quantitativa e qualitativamente decisiva, quando se percebe que está ao alcance de todo mundo? Pois é, para esse movimento que se voltam os inúmeros olhares das pessoas que não mais suportam esse mundo injusto e absurdo e procuram alternativas.
O mérito histórico do movimento por uma outra globalização é o de ter empreendido um amplo trabalho de exposição e de desconstrução da ideologia neoliberal, acompanhado – principalmente nos fóruns sociais – por uma intensa produção de alternativas e uma miríade de iniciativas. Essas atividades fazem com que apareça de uma maneira cada vez mais nítida que a globalização é um processo político, ao qual se opõe atualmente outro processo político: o próprio movimento. Emergindo da cortina de fumaça que por longo tempo dissimulou sua verdadeira natureza, a globalização surge, antes de tudo, como um sistema de dominação do Hemisfério Sul pelo Hemisfério Norte, do capitalismo anglo-saxão sobre as outras formas de capitalismo, da riqueza sobre a miséria. A tal ponto que se pode dizer que essa globalização é a própria criação da ideologia neoliberal.
Revolução conservadora
O Consenso de Washington é claramente um projeto político, elaborado de maneira conscienciosa e sistemática
Na realidade, a globalização não caiu do céu; ela nada tem a ver com uma etapa necessária na evolução natural do sistema econômico ou das tecnologias: ela é pura e simplesmente a conseqüência direta de múltiplas opções e decisões, antes de tudo, políticas. É até uma opção estratégica que vem sendo adotada progressivamente, desde 1968, visando redisciplinar os assalariados dos países ocidentais por meio do desemprego, e os povos dos países pobres, pela dívida.
Seria inútil, entretanto, negar a evolução que se produziu sob o efeito de uma dinâmica própria do capitalismo, principalmente nas áreas financeira e tecnológica. Mas essas transformações foram recuperadas e orientadas segundo as estratégias criadas pelos detentores da revolução conservadora iniciada por Ronald Reagan e Margaret Thatcher no início da década de 80. Essas decisões, que contribuíram para a expansão da globalização neoliberal, foram tomadas, além dos governos e das instâncias multilaterais, por investidores institucionais e pelas empresas multinacionais.
Estas últimas compreenderam rapidamente que poderiam reorganizar o trabalho em escala planetária, matando três coelhos de uma só cajadada: enfraquecendo o movimento sindical e as resistências nos países ocidentais, ao reduzir o tamanho das empresas, e deslocando-as para outros países ou regiões para procurar uma maior competitividade; fazendo aumentar seus lucros por meio do arrocho da massa salarial e utilizando-se de diversas formas de isenção fiscal e social – sem falar dos paraísos fiscais; e tentando passar a impressão de que estão participando do desenvolvimento do Hemisfério Sul ao implantarem fábricas nesses países.
O projeto do Consenso de Washington
Os militantes e simpatizantes desse movimento são os únicos a colocar sua reflexão e sua ação em escala planetária, como provam os vários fóruns sociais mundiais
Na realidade, até meados da década de 70 o capitalismo perdera parte do controle sobre determinados países (havia estratégias de equilíbrio entre os dois blocos existentes no movimento dos países não-alinhados) e em certas empresas de países europeus (conseqüência do maio de 68 e dos anos que imediatamente se seguiram). Diminuíram os lucros e a produtividade, aumentaram os salários e as idéias não-capitalistas ganharam espaço em todas as categorias sociais, principalmente entre a juventude. Foi então que os meios patronais e conservadores se organizaram para reassumir o controle, tanto no plano ideológico quanto prático, das empresas, dos meios de comunicação, das instituições internacionais, de alguns partidos políticos e do aparelho do Estado.
Diante da globalização neoliberal, não há como acreditar na “impotência do político” e de nada adianta alimentar diariamente desejos de que, por meio de algum processo de conscientização, a política venha a “retomar o controle da economia”. Na realidade, ela nunca perdeu o controle. O Consenso de Washington é claramente um projeto político, elaborado de maneira conscienciosa e sistemática.
A pertinência das alternativas que venham a ser uma oposição a essa globalização, assim como os meios para chegar a isso – ou seja, a construção do movimento por uma outra globalização enquanto processo político e cultural de emancipação humana -, dependerão da compreensão da natureza exata de tal fenômeno. Esse movimento não deve se limitar a desempenhar um simples papel de “estorvo” para as instâncias multilaterais, os governos, os parlamentares e os dirigentes políticos. Caso se restringisse a um tom “humanitário”, o movimento por uma outra globalização não seria inútil, com certeza, mas se privaria de qualquer perspectiva histórica se ficasse limitado ao presente. Ao adotar o slogan “Um outro mundo é possível”, ele fixou claramente sua ambição: a instauração de uma nova ordem social, econômica, política e democrática mundial. A partir de então, o conteúdo das alternativas – que ainda devem ser aprofundadas – passou a ser inseparável dos meios que lhe poderão dar forma.
Alternativas sistêmicas
Afirmar que as decisões mais importantes são tomadas em âmbito planetário, descartando o papel dos Estados, leva a uma arapuca que deve ser evitada
Nesse contexto, a noção de alternativa deve ficar bem clara. Um exame superficial poderia levar a crer que ela simplesmente retoma, sob outro nome, o que os partidos políticos chamam programa, e os sindicatos, reivindicação. Na realidade, é radicalmente diferente, na medida em que as alternativas propostas têm um caráter sistêmico: são simultaneamente mundiais, antiliberais e globais. Os militantes e simpatizantes desse movimento são os únicos a colocar, de saída, sua reflexão e sua ação em escala planetária, como provam os vários fóruns sociais mundiais. São os únicos a assumir objetivos verdadeiramente antiliberais na busca de uma coerência que conteste aquela da ideologia neoliberal. São os únicos, por fim, que tentam pôr em prática uma abordagem global, ou seja, um combate ao neoliberalismo que vai de comportamentos individuais às políticas das instâncias multilaterais, passando pelas estratégias das empresas.
Em relação a essa questão, é possível antecipar aqui uma outra noção: a de matriz sistêmica das alternativas, para identificar as fontes de poder que produzem e reproduzem a globalização neoliberal e que, justamente por isso, se tornam os alvos do movimento. O objetivo é o de influir sobre as decisões que ali são tomadas, eliminando, gradualmente, a lógica neoliberal e substituindo-a por alternativas formuladas pelo movimento por uma outra globalização. A maioria dessas alternativas – por exemplo, a erradicação dos paraísos fiscais – pode ser elaborada, de uma maneira geral, em seis planos pertinentes à ação: internacional, continental, nacional, infra-nacional, individual e no âmbito da empresa.
A ilusão do multilateraismo
As alternativas – como para a erradicação dos paraísos fiscais – devem ser elaboradas nos planos internacional, continental, nacional, infra-nacional, individual e empresarial
Às vezes, o plano internacional não é isento de ambigüidades. Afirmar que as decisões mais importantes são tomadas em âmbito planetário, por exemplo, descartando o papel dos Estados e considerando essa situação irreversível, leva a uma arapuca que deve ser evitada. Em escala mundial, a capacidade de intervenção dos povos é muito frágil: é impossível exercer a democracia representativa, principalmente o princípio “uma pessoa, um voto”.
Esse é um sistema ideal para os donos do poder, pois a transferência das decisões para um contexto que o povo não pode controlar permite consolidar uma dominação monolítica. No entanto, isso não é motivo para que não seja exercida pressão sobre as instâncias multilaterais, exigindo dos governos, que ali estão representados, que adotem posições políticas em apoio às alternativas do movimento por uma outra globalização. Retomando o exemplo dos paraísos fiscais, é possível que a ONU, a Organização Mundial do Comércio (OMC), o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Mundial e a Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômicos (OCDE) possam agir, cada um a seu modo, no sentido de os erradicar.
O bilateralismo – ou seja, o conjunto das relações entre dois países – representa uma forma singular da questão internacional. É malvisto porque é percebido, em seu princípio, como uma relação necessariamente assimétrica entre dois países, em que o maior irá dominar o menor. Portanto, o multilateralismo, sistema no qual cada país teria direito a um voto, seria preferível. Entretanto, todo mundo sabe que no âmbito da OMC, do FMI ou do Banco Mundial, tudo isso não passa de uma ilusão. Uma nova abordagem do bilateralismo, com base em alternativas do movimento por uma outra globalização, constitui uma perspectiva digna de interesse na medida em que dois países podem estabelecer entre si relações que conduzam à emancipação, de certa maneira, da tutela dos dogmas neoliberais.
Tabus enraizados
Passo a passo, de uma maneira pragmática, devem ser identificadas as margens de manobra concretas dos governos que realmente queiram afrouxar o garrote neoliberal
No plano continental, a construção da União Européia cristaliza todas as questões previamente abordadas, com orientações de inspiração neoliberal que, uma vez transpostas para o direito nacional, se encaixam na legislação dos países envolvidos. Mas, seria isso um fenômeno econômico, tecnológico ou financeiro? Na realidade, trata-se de uma opção política e exclusivamente política. E se o fenômeno foi criado a partir do político, também poderá ser anulado pelo político, ou criado de outra forma. Seria necessário, por acaso, criar as condições de fazer tábula rasa dos valores e objetivos da União Européia – por meio, por exemplo, de uma nova política da “cadeira vazia” – para refundar a Europa? Voltando ao exemplo dos paraísos fiscais, é evidente que a União Européia pode decidir bani-los de seu território.
O plano nacional representa um problema particular, pois, dependendo do discurso adotado, as principais decisões são tomadas em escala mundial e os Estados ficam impotentes. De nada adiantaria que os eleitores de determinado país votassem em candidatos a quem confiariam o mandato de apresentar políticas alternativas. Se a globalização neoliberal representa, de fato, um obstáculo insuperável, então já não se vive numa democracia, porque, sejam quais forem os políticos eleitos, eles se limitarão a apresentar projetos políticos idênticos com diferenças insignificantes.
São esses tabus, profundamente enraizados, que devem ser atacados. Passo a passo, de uma maneira pragmática, devem ser identificadas as margens de manobra concretas dos governos que realmente queiram afrouxar o garrote neoliberal. No que se refere aos paraísos fiscais, o governo francês, assim como todos os outros, tem todas as condições de adotar medidas como, por exemplo, a concessão de mercados públicos como forma de sancionar os bancos e empresas que os utilizam.
Intervenções locais e individuais
Muitos políticos se trancam na lógica de sobrevida local, onde a gestão administrativa da coletividade se sobressai em detrimento do aprofundamento da democracia
No plano infra-nacional (no caso do Brasil, Estados e municípios), as políticas neoliberais levaram à organização de uma concorrência entre coletividades locais e à diminuição de seus recursos. Muitos políticos se trancaram nas lógicas de sobrevivência local, quando a simples gestão administrativa da coletividade se sobressai em detrimento do aprofundamento da democracia. No entanto, essa minimização de sua atuação começa a ser questionada com o surgimento de iniciativas realmente políticas, como os orçamentos participativos, ou a mobilização de coletividades na luta contra o Acordo Geral sobre o Comércio de Serviços (AGCS) ou contra os transgênicos. As comunidades locais e seus respectivos políticos podem intervir politicamente, e com eficiência, mesmo em questões não diretamente vinculadas às suas prerrogativas legais. No caso dos paraísos fiscais, por exemplo, as câmaras e assembléias municipais e estaduais podem suspender suas relações com os bancos que os utilizem e convocar seus concidadãos a fazerem o mesmo.
No plano individual, algumas tendências do movimento por uma outra globalização incentivam as pessoas a agirem de maneira coerente com suas convicções. Inúmeras iniciativas vêm sendo desenvolvidas em campos como, por exemplo, o das opções de consumo, o do uso de softwares “livres” na informática, ou o da poupança. Para deixar de ser uma mera atitude individual e se transformar numa ação coletiva de massa, entretanto, esse tipo de iniciativa deve evitar certos obstáculos. Não deve se apresentar como ensinando a lição às pessoas e deve sempre fazer a distinção entre culpabilidade e responsabilidade. Também não se deve centrar tudo em comportamentos individuais, não levando em consideração as estratégias mundiais da globalização neoliberal. No entanto, e para repisar o mesmo exemplo, o boicote organizado dos bancos que utilizam paraísos fiscais poderia acelerar sua erradicação.
A experiência sindical
No plano individual, algumas tendências do movimento por uma outra globalização incentivam as pessoas a agirem de maneira coerente com suas convicções
No plano das empresas, provavelmente foi a União das Indústrias Metalúrgicas francesa, sindicato patronal vinculado à central sindical nacional, que se antecipou. Avalia que “o movimento de contestação à globalização […] parece ganhar uma repercussão crescente fora do mundo empresarial, com formas de atuação radicalmente novas, mas que, a longo prazo, irão fatalmente repercutir dentro das empresas”. O sindicato acrescenta que o movimento por uma outra globalização deve “ser levado a sério. […] O movimento vem ocorrendo fora das empresas, mas estas, com certeza, irão sofrer as conseqüências e não parecem preparadas para enfrentar tal situação1“.
Em relação a tal aspecto, a crescente participação do movimento sindical nos fóruns sociais e na dinâmica que estes criaram representa um avanço decisivo. O movimento por uma outra globalização não pode ter a pretensão de fazer tábula rasa do passado e apagar quase dois séculos de lutas sindicais, com as quais tem muito a aprender. E, ao contrário, o movimento operário pode recorrer ao movimento por uma outra globalização. Ainda retomando a questão dos paraísos fiscais, a ação dos empregados e de seus sindicatos contra sua empresa -caso ela utilize os paraísos fiscais – é um objetivo realista.
O diálogo de trabalho entre o movimento por uma outra globalização e os parlamentares e dirigentes políticos é uma necessidade concreta. Em primeiro lugar porque nem todos são prepostos do neoliberalismo; muitos deles se encontram, principalmente, desamparados. Esperam por idéias e propostas concretas, aplicáveis aqui e agora. Em segundo lugar, e ao contrário, porque o movimento por uma outra globalização – assim como o movimento operário – tem muito a aprender