AmarElos – o feitiço dos elos
Mescla de conto, poesia e prosa poética, obra de Márcia Meira Basto resgata infância, transição e vida adulta
A palavra de Márcia Meira Basto é visceral, intensa e profunda. É palavra de poeta que descobre o seu lugar na ancestralidade da linguagem, revelando o mundo em bruto, tal como origem. Buraco, cratera, caroço, miolo… essência. É verbo que pesa sobre a alma que o descobre, mas nem por isso perde a leveza e o encantamento poético, sendo capaz de convidar o leitor para contemplar a árvore cósmica, em tudo feminina e inaugural.
O livro AmarElos nos revela uma escritora madura, poeta que compreende a necessidade da palavra, enquanto espaço sagrado para se construir a ficção. No espaço da palavra, a autora conta história para que o tempo não lhe escape e se converta em permanência, em nós. Neste livro, a Infância é o que o filósofo francês Gaston Bachelard nos anuncia: um estado permanente e incurável. Para a autora, o Elo que não se perde e com o qual se pode entregar ao mundo e amá-lo com a força do Mar, do Ouro, do Sangue, do Sagrado, do Tempo, da Dor e, sobretudo, do Amor. Todo o humano a viver nos elementos que se constituem como força imanente, consolidada nos personagens de cada conto que nos foi entregue por Márcia Basto.
A prosa poética dessa autora é como o fazer de feiticeira, alquimia porque não lhe basta o conhecido. Ela experimenta novas receitas com o objetivo de ter o domínio sobre a sua alma inquieta; desejante e ansiosa para salvar o mundo. Mas só o consegue salvar pela palavra que revela, transforma e transmuta as realidades e, assim, funda novos mundos.
O livro que se desdobra em tons de amarelo-vermelho é composto por textos que se apresentam numa textualidade, quase urdidura dos pequenos cotidianos que habitam na memória, tal como se fosse uma manta que agasalha e afaga o leitor. Cada história surge em constelações simbólicas e são projetadas em amarelos de luz – sol, dia, jardim, girassol, semente, laranjas em explosão de afetos. No primitivo dos sentimentos, de uma infância que não se cura, nascem os Amar-Elos, uma promessa para além das montanhas que serpenteiam antigos e novos horizontes.
Sem dúvida, essa obra traz-nos uma autora revestida, brotada da palavra mundo e urgente de significância, pois deseja mais do que o bruto da vida. Com o sal e o sol Márcia batiza a terra, sem nunca nos apontar o caminho da salvação. Somente diz-nos que a falta nos marcará em círculos de fogo, retornando à alma da criação como se fosse um relâmpago surgido das palmas de Deus. Num instante, apenas num instante, entre uma palma e outra, nascem as histórias. Nascemos e morremos. Depois, como cometa que se perdeu no infinito resta o escuro, onde o fogo dança em roda-escarlate. Daí, surgem as palavras que abraçam a vida. A esperança que antecede o encerrar das palmas, o movimento cósmico dos personagens sem rostos, perdidos na ficção de cada um de nós. Os AmarElos também são brancura e solidão. A nossa. Uma espécie de “quasidade” clariceana inspira a Menina, personagem que acende as estrelas e desnuda a face da artista. Esta que cumpre o destino de Ariadne e tece com arte a palavra memória. Como leitora me desfiz e refiz ao ler os contos reunidos em AmarElos, sentindo que o fechar da última página era o abrir das primeiras palmas.
Joana Cavalcanti é escritora, professora no Instituto Europeu de Estudos Superiores – Portugal, doutora em Teoria Literária e coordenadora da Rede Internacional de Escolas Criativas, Amarante. Mora em Portugal, onde desenvolve inúmeros projetos culturais ligados à arte e à literatura.