Amazônia: sob a ação do fogo e da motosserra
Em apenas cinco meses, de agosto a dezembro de 2007, o desmatamento da maior floresta tropical do mundo alcançou 7 mil km2 – mais do que toda área nominal dos territórios palestinos. O governo tomou medidas emergenciais, mas a magnitude do problema exige a mobilização de toda a sociedade
As taxas de desmatamento da Amazônia vinham caindo nos últimos anos. Depois do pico de 27.379 km2, de 2003 para 2004, baixaram a 11.240 km2, entre agosto 2006 e agosto 20071. Mas, em janeiro de 2008, o Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) anunciou que “os novos desmatamentos detectados pelo Deter (Sistema de Detecção do Desmatamento em Tempo Real), entre Agosto e Dezembro de 2007, somaram 3.235 km2” 2. Como o sistema Deter captura menos informações do que o Prodes, “o INPE considera que, entre agosto e dezembro de 2007, o desmatamento foi da ordem de 7 000 km2, com uma variação, para mais ou para menos, de 1.400 km2.” A maior parte dessa devastação se concentraria nos estados de Mato Grosso (53,7%), Pará (17,8%) e Rondônia (16%). Embora responda pela menor fatia, Rondônia chama a atenção, já que as informações do Deter indicam um crescimento de mais de 600 % no desmatamento.
Há algumas discrepâncias entre os dados do Deter e os produzidos pelo Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), em particular no que diz respeito ao Mato Grosso, mas, segundo Carlos Nobre, do Inpe, “a ferramenta dá uma idéia aproximada das tendências” e “o alerta é real”3.
A lista dos 36 municípios campeões do desmatamento (19 no Mato Grosso, 12 no Pará, 4 em Rondônia e 1 no Amazonas), que responderiam por 50 % do total, não surpreende quem acompanha a evolução do desmatamento da Amazônia. A maioria está situada na franja sul do bioma, naquilo que está sendo chamado de “Arco do Fogo”. Mas alguns, como Altamira e Brasil Novo, no Pará, Colniza e Juína, no Mato Grosso, Machadinho do Oeste e Pimenta Bueno, em Rondônia, e Lábrea, no Amazonas, nos mostram que o desmatamento também avançou profundamente no interior do bioma. Ainda não aparecem na lista de municípios da calha do Amazonas, onde a exploração madeireira, a pecuária e a incipiente produção de grãos configuram uma frente de desmatamento em rápida expansão.
Os últimos dados colocam o governo brasileiro em situação constrangedora. Com pretensões de conseguir um assento no Conselho de Segurança da ONU, o país é objeto de denúncias de cientistas, que confirmam a gravidade do câmbio climático e anunciam que o desmatamento e a queima da floresta amazônica fazem do território brasileiro o quarto emissor mundial de gases causadores do aquecimento do planeta 4.
Frente a isso, o governo federal tomou uma série de medidas, algumas em curso: mobilização de fiscais do Ibama e 800 agentes da Polícia Federal na Operação Arco de Fogo5, impedimento de qualquer desmatamento nos 36 municípios, embargo dos produtos de áreas onde forem constatadas irregularidades, bloqueio dos financiamentos concedidos pelos bancos oficiais para atividades que gerem desmatamento, monitoramento mensal com aeronaves das áreas embargadas em municípios críticos, recadastramento georeferenciado das propriedades dos 36 municípios, recadastramento geral de propriedades rurais pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).
Manobras dos madeireiros
O contra-ataque não demorou. O governador do Mato Grosso contestou o Ministério do Meio Ambiente e o Inpe. Coerentemente com sua trajetória 6, buscou inocentar os produtores de soja, acusar os assentados do Incra 7 e provar que os dados eram falsos 8. “O Inpe está mentindo a serviço de alguém”, disse. “Queremos saber a serviço de quem” 9.
Continuam tramitando no Congresso as propostas de “flexibilização” do Código Florestal, assim como uma proposta do senador Jonas Pinheiro (DEM-MT) que retira da Amazônia Legal os estados do Maranhão, Mato Grosso e Tocantins. Com a mudança, as propriedades rurais dos três estados não teriam de cumprir o limite de 80% de reserva legal10. E, agora, enquanto organizações de produtores e de madeireiros contestam a ação governamental, o deputado Homero Pereira, integrante da Bancada Ruralista, apresentou um projeto de decreto legislativo contra o decreto presidencial número 6321, que coloca fortes restrições ao desmatamento 11.
De fato, embora as iniciativas do governo federal tenham feito diminuir o ritmo da devastação, esta de forma alguma foi interrompida. Segundo dados consolidados do Inpe, a área desmatada em janeiro de 2008, alcançou 639,1 km2, correspondente a 40% do município de São Paulo 12.
A rede de cumplicidade tácita e o encadeamento existente entre grilagem, exploração madeireira, pecuária, monocultivos, superexploração do trabalho, trabalho escravo, violência e mortes são hoje reconhecidos e bem estudados. Os indivíduos e entidades que defendem a Amazônia terão força suficiente para frear e desmontar essa máquina de destruição? A operação Arco de Fogo veio para ficar ou será, como outras, simples fogo de palha? As medidas inibidoras do desmatamento serão complementadas por políticas que façam da população amazônica, que resiste à destruição, a artesã do seu desenvolvimento? Um governo embalado pelo PAC, um congresso dominado por interesses estreitos e imediatistas, empresas cuja responsabilidade social e ambiental termina quando seu lucro se vê ameaçado e uma sociedade bastante abúlica indicam que temos um longo e difícil caminho a percorrer. O problema é que a motosserra e o fogo estão indo rápido demais.
Em torno da Amazônia se trava uma das batalhas mais importantes da atualidade. Os países mais poderosos, que têm padrões insustentáveis de produção e consumo, e dispõem de enormes recursos financeiros, tecnológicos e militares, não abrem mão da pretensão de controlar a Amazônia. Nesse cenário, carregado de desafios e ameaças, o Brasil tem de enfrentar dilemas que são respondidos de forma distinta por pelo menos quatro campos políticos:
1. O campo comprometido com a ideologia liberal, que renuncia inteiramente a um projeto nacional para o Brasil e à defesa da Amazônia como patrimônio brasileiro;
2. O campo desenvolvimentista, que reconhece a importância de uma presença ativa e planejadora do Estado na região, mas não hesita em reproduzir os padrões insustentáveis de produção e consumo dos países do Norte e vê os povos amazônicos como objeto passivo de seus projetos expansionistas de ocupação da fronteira agrícola e mineradora;
3. Um campo heterogêneo no qual, sob o manto do nacionalismo, se acobertam interesses econômicos e políticos particulares, juntando agrupamentos de extrema-direita, políticos e parlamentares do Norte em disputa pelo controle de recursos públicos, grupos econômicos interessados em manter e aumentar
suas áreas de exploração etc.
4. Um campo contra-hegemônico que, no contexto de um mundo em crise, preconiza um Brasil sustentável e solidário, comprometido com o exercício responsável da soberania nacional e com a defesa do patrimônio de “sociobiodiversidade” acumulado na Amazônia, em consonância com o desafio maior de assegurar a sobrevivência da humanidade e do planeta.
Lá fora, o Brasil já está sendo atingido pelas reações à divulgação, em fevereiro de 2007, do relatório do Painel Inter-Governamental sobre Mudanças Climáticas da ONU (IPCC, na sigla em inglês). Considerado, por conta do desmatamento, o quarto maior emissor de dióxido de carbono (CO2) do mundo, o país voltou a ser alvo de críticas internacionais, vindas daqueles que consideram que os brasileiros não se esforçam o suficiente para garantir a preservação da Amazônia. Enquanto isso, aqui dentro, os pretensos defensores do desenvolvimento da Amazônia a qualquer preço não se constrangem de usar argumentos do tipo “o Brasil só emite 6% dos gases que provocam o efeito estufa” 13 ou de dizer que os países ricos já destruíram suas florestas e agora querem nos impedir de fazer o mesmo para nos desenvolver. A insensibilidade diante da questão ambiental encontra eco até em intelectuais respeitáveis do porte do economista Carlos Lessa, ex-presidente do BNDES, cuja proposta para a região passa pelo desmatamento de pelo menos 300 milhões de hectares (3.000.000 km2) 14.
Evidentemente, os projetos políticos em disputa na Amazônia não se apresentam de forma nítida. Por isso, nos momentos de acirramento das disputas, cresce o nevoeiro ideológico que encobre o discurso e as práticas de alguns dos sujeitos em presença. É assim que se explica o estranho nacionalismo dos representantes de grupos econômicos tradicionalmente associados a grandes corporações transnacionais e ao processo de globalização financeira e produtiva, que se mostram, de uma hora para outra, assustados com a “invasão estrangeira” e a ameaça das ONGs “controladas por estrangeiros”. Por outro lado, já estamos acostumados a escutar a ladainha dos porta-vozes das madeireiras, dos pecuaristas, do agronegócio e de outros grupos econômicos que se dedicam à exploração predatória da Amazônia, para os quais os movimentos sociais, as ONGs e todos os demais setores comprometidos com a busca de alternativas sustentáveis e democráticas não passam de “inimigos do desenvolvimento”.
O Plano de Aceleração do Crescimento (PAC) prevê obras de infra-estrutura urbana (principalmente nas áreas de saneamento básico e habitação) cujas virtudes já foram reconhecidas por instâncias como Fórum Nacional da Reforma Urbana (FNRU). Contudo, com a previsão de grandes investimentos na Amazônia, fica evidente que, no PAC, se condensam também algumas das principais contradições relativas ao desenvolvimento da região. É o caso da construção de três usinas hidrelétricas de enorme impacto socioambiental (Belo Monte, no Pará, e Santo Antônio e Jirau, no rio Madeira, em Rondônia) 15. E do asfaltamento da parte paraense da Cuiabá-Santarém (BR 163) e da Transamazônica (BR 230).
Tais obras ocupam posição de destaque no plano de Integração da Infra-Estrutura Regional da América do Sul (IIRSA) 16. Cabe lembrar o modelo de desenvolvimento a ser beneficiado por elas. Como se deu com Tucuruí, os atuais projetos energéticos são uma forma de o Estado brasileiro subsidiar as transnacionais com energia barata. Ao passo que os investimentos na área de transportes atendem prioritariamente aos grandes produtores de soja do centro-oeste. Enquanto isso, os interesses de amplos segmentos da população local (indígenas, quilombolas, seringueiros, castanheiros, ribeirinhos, colonos e pequenos produtores rurais) são sistematicamente ignorados. A construção social do território brasileiro, tal como tem sido aprofundada nas últimas décadas, hipoteca o futuro, ao gerar sérios riscos de insustentabilidade ambiental e reforçar a desigualdade social, inter-regional e entre países.
No momento em que tomamos consciência da extrema gravidade do cenário desenhado pelo último relatório do IPCC, o Brasil não pode minimizar nem postergar suas responsabilidades na luta pela preservação do planeta e pela sobrevivência da espécie humana. Segundo o físico brasileiro Paulo Artaxo, do Instituto de Física da USP, um dos principais autores de um dos capítulos do relatório do IPCC, “na história, nunca se chegou nem perto de um problema desta envergadura. A primeira e a segunda guerras mundiais são fichinha perto disto” 17. Frente às conseqüências aterradoras do aumento da temperatura global, das taxas de degelo e do nível do mar, não podemos tolerar uma postura egoísta e inconseqüente no tratamento do desmatamento da Amazônia e de sua contribuição para o efeito estufa.
Aliás, a estupidez dessa postura pode ser demonstrada mesmo que optemos pela mais estrita defesa dos interesses econômicos brasileiros. Pois o aquecimento global pode ter um impacto drástico na Amazônia, fazendo com que esta sofra um aumento de temperatura superior à média planetária, o qual, associado ao crescente desmatamento, levaria à transformação de parte da maior floresta tropical do mundo em savana.
Os governos Collor e FHC subordinaram os objetivos ambientais e sociais nacionais aos interesses dos “mercados” – leia-se dos investidores financeiros e dos movimentos de capitais internacionais, devidamente representados pelo FMI. O governo Lula deu alguns passos para reverter essa tendência, mas sem pôr em cheque a cláusula pétrea da fidelidade aos “contratos” que estabelecem a hegemonia do sistema financeiro internacional e sem questionar o modelo primário-exportador. No que diz respeito à Amazônia, o PAC poderia proporcionar uma retomada da intervenção do Estado, pautada por parâmetros socioambientais. Infelizmente, porém, concretizou a reversão dessa tendência, junto com a emergência de novos conflitos de interesses. Em sua maior parte, os vultosos investimentos em infra-estrutura destinam-se a sustentar e aprofundar o atual modelo de desenvolvimento (estribado na exploração madeireira e mineral, na pecuária extensiva e nos monocultivos), que arrisca desencadear processos incontroláveis.
Cobiça internacional
Independentemente da condução dada pelo Estado brasileiro à questão da Amazônia, a procedência de temores relativos à cobiça internacional pela região não pode ser desqualificada como fruto de fantasias de setores ultranacionalistas ou de militares interessados em inventar inimigos externos para melhor justificarem o seu papel interno no contexto pós-guerra fria. Sã
o conhecidos os pronunciamentos de personalidades mundiais que reforçam os cuidados que devemos ter diante da matéria. De Al Gore, ex-vice-presidente americano e candidato derrotado à sucessão de Clinton: “Ao contrário do que os brasileiros pensam, a Amazônia não é deles, mas de todos nós”. De Mikhail Gorbachev: “O Brasil deve delegar parte de seus direitos sobre a Amazônia aos organismos internacionais competentes”. Do falecido François Mitterand, quando ocupava a presidência da França: “O Brasil precisa aceitar uma soberania relativa sobre a Amazônia”.
Há uma lição a tirar dessas declarações nada inocentes. A sustentabilidade da soberania nacional é diretamente proporcional à legitimidade do Estado que deve exercê-la. No caso da Amazônia, não podemos nos furtar a uma análise cuidadosa da imagem projetada pelo país no exterior – onde os brasileiros são muitas vezes associados a aventureiros irresponsáveis que queimam sua maravilhosa floresta. As vacilações do governo brasileiro diante da necessidade inadiável de defender esse excepcional patrimônio, sua permeabilidade a interesses predatórios de grupos dominantes regionais, nacionais e transnacionais, sempre bem representados nas altas esferas do poder, tudo isto gera incerteza quanto à capacidade de o país se afirmar no contexto internacional como legítimo detentor da soberania sobre a região.
Poderosos grupos econômicos
O “desenvolvimento” da Amazônia tem-se caracterizado por políticas, projetos e ações impostos de fora pelo poder central, combinado a poderosos grupos econômicos transnacionais e a grupos privados regionais, que criam riquezas voláteis e empregos precários na região, desestabilizando-a. A lista é longa. Para ficar nas últimas décadas, mencionamos a mineração (o manganês da Serra do Navio; a cassiterita do Amazonas, de Rondônia e do Mato Grosso; o ouro do Pará, de Roraima e do Mato Grosso; o diamante de Rondônia); o complexo hidrelétrico/mineral/siderúrgico (Pólo Carajás); a agroindústria de plantações de árvores para carvão vegetal e papel-celulose (Projeto Jarí); as milhares de madeireiras que avançaram em várias frentes da Amazônia, deixando um rastro de destruição e desemprego em centenas de vilas e cidades criadas em torno delas; as terras raras 18 do noroeste da Amazônia brasileira; a pecuária extensiva; a exportação de animais silvestres e de peixes ornamentais; o extrativismo de madeiras e essências (pau rosa); a pesca industrial no estuário amazônico e na costa atlântica; a Zona Franca de Manaus; os projetos de colonização no Pará, no Mato Grosso e em Rondônia. No período mais recente, assistimos ao avanço da fronteira agrícola, com a expansão da produção de soja, nos cerrados de Mato Grosso, do Maranhão e do Tocantins, e nas áreas de transição com a floresta, no sul do Pará, em Rondônia e em Roraima – expansão esta acompanhada pela abertura de hidrovias e estradas.
Os grandes projetos são concebidos e planejados para cumprir um papel na expansão do capital internacional e nacional na Amazônia. São geralmente blindados por pesquisas, análises, legislação e uma pletora de argumentos sobre sua importância socioeconômica para o desenvolvimento de regiões definidas como abandonadas ou isoladas. É forte a elaboração ideológica que separa tais empreendimentos dos problemas ambientais e sociais a eles associados. Seus apologistas não negam os problemas, mas atribuem a responsabilidade ao Estado, a outros setores produtivos ou à própria população.
É o caso do Porto da Cargill, em Santarém-PA, defendido como se nada tivesse a ver com a concentração da terra, com o desmatamento, com o incentivo à monocultura da soja, com a contaminação da água, com a degradação dos solos. Tudo isso seria problema de alguns sojeiros ou maus agricultores. No caso do complexo siderúrgico de ferro-gusa no eixo Carajás, seus defensores afirmam que a responsabilidade pelo desmatamento, pelo trabalho escravo, pelo carvão ilegal não é um problema das guseiras. Os produtores de carvão ou agricultores que derrubam a mata para transformá-la em carvão é que seriam os responsáveis. Essas barragens ideológicas mascaram a realidade, confundem a sociedade e fragilizam uma reação organizada das populações impactadas.
A maioria dos empreendimentos só foi realizada porque a região dispõe de vastos recursos naturais, renováveis ou não. Duas questões então se colocam: 1) esses recursos devem ser explorados? 2) se o forem, em que condições?
Podemos definir critérios orientadores a serem observados para a tomada de posição em relação a quaisquer projetos na área:
a) Que os projetos sejam objeto de amplos debates em âmbitos regional e nacional;
b) Que não sejam manifestamente contraditórios com a realidade socioambiental amazônica;
c) Que levem em conta as alternativas possíveis;
d) Que sejam analisados numa perspectiva integrada e sistêmica;
e) Que sejam inseridos em estratégias regionais de desenvolvimento;
f) Que os princípios da justiça ambiental e social (quer do ponto de vista regional, nacional ou internacional) sejam rigorosamente respeitados e aplicados;
g) Que as condicionantes ambientais e sociais não sejam subordinadas aos chamados “imperativos econômicos”;
h) Que contribuam para impulsionar a ciência e a tecnologia;
i) Que gerem trabalho e empregos;
j) Que incorporem obrigatoriamente percentual elevado de mão-de-obra local;
k) Que tragam recursos para reinvestimento na região;
l) Que incorporem atividades sociais produtivas para atender às novas demandas que os próprios projetos trazem consigo.
Note-se que não estamos nos iludindo, pois, devido às contradições dos interesses em presença, a verificação de cada um desses critérios seria objeto de acirrada polêmica. Sua utilização exitosa supõe a aquisição de um sólido domínio de informações ambientais, econômicas, sociais e técnicas e o respaldo de setores ponderáveis da população brasileira.
Porém, mais do que tomar como ponto de partida as intenções políticas e os projetos existentes, trata-se de construir alternativas genuínas, endógenas, que possam contrabalançar as propostas dominantes. O ponto de partida é duplo e complementar: 1) as potencialidades oferecidas pela Amazônia enquanto bioma em grande parte preservado; 2) sua população, não como massa indiferenciada, mas em suas múltiplas expressões, histór
ias e estratégias de sobrevivência e reprodução.
Uma proposta alternativa não pode ignorar o enorme potencial da região, atualmente explorado em boa parte de forma predatória e sem que se avalie muito bem a riqueza realmente extraída e gerada: água, minérios, madeira, recursos biológicos e genéticos, áreas agriculturáveis, potencial energético, hidroeletricidade, biomassa, gás, pescados, frutas, essências, recursos fitogenéticos oriundos da agricultura tradicional de várzea e de terra firme, turismo ecológico, nichos de pesquisas científicas etc.
Quanto à população, esta se insere em um território muito diversificado: áreas de conservação integral, florestas nacionais, áreas de uso sustentável, reservas extrativistas, terras indígenas, terras de quilombos, posses antigas de ribeirinhos e agroextrativistas, posses de migrantes das últimas décadas, áreas de colonização, assentamentos, rios, lagos, igarapés, regiões metropolitanas, médias e pequenas cidades, company towns19, cidades garimpeiras, cidades ribeirinhas, agrovilas etc.
As populações tradicionais (indígenas, quilombolas, ribeirinhos, extrativistas etc.), em especial, constituem um patrimônio humano e cultural incalculável para o Brasil. Não devem ser vistas como sobrevivência do passado, pois se adaptam continuamente e, lhes sendo propiciadas condições para tal, habilitam-se como artífices centrais da construção de um projeto amazônico. Tampouco devem ser vistas fora de sua conexão com as cidades. A proximidade e a sensibilidade da maior parte dos habitantes das cidades amazônicas com o seu entorno ainda é grande.
Aliás, há que se destacar o fato de que, hoje, mais de 70% da população da Amazônia vivem em cidades. Isto deve ser compreendido como resultado de dois fatores históricos: de um lado, os conflitos e processos de expropriação que levaram boa parte da população rural a se deslocar; de outro, a ação dos grandes projetos governamentais e privados, nacionais e internacionais, que construíram cidades como suporte para suas atividades.
Vocações da região e de seus moradores
Qualquer projeto de desenvolvimento sustentável para a Amazônia deve levar em conta este conjunto de fatores. Eles apontam, para a região e seus habitantes, as seguintes vocações:
a) De manutenção (preservação e manejo) dos ecossistemas e de suas riquezas, em prol do equilíbrio climático regional e global e da sustentação do planeta no longo prazo (lembremos que a Amazônia abriga o maior estoque mundial de água doce 20 e de recursos fito e biogenéticos);
b) De extração e produção não predatórias, visando, primeiro, o abastecimento dos mercados locais e regionais, de forma a garantir a segurança alimentar e nutricional da própria população amazônica, e, apenas em segundo lugar, o suprimento dos mercados nacional e internacional com produtos da região;
c) De manutenção das culturas, modos de vida e formas de relação das populações com o meio ambiente, em prol da preservação e da valorização da multiplicidade étnica e cultural da humanidade;
d) De produção de conhecimentos indispensáveis para o desenvolvimento de ciência e tecnologia apropriados à Amazônia;
e) De manutenção de paisagens, estilos de vida e expressões culturais que valorizem o potencial turístico da região e enriqueçam a auto-imagem do Brasil;
f) De humanização das aglomerações urbanas, em função de novas estratégias de extração, produção e turismo;
g) De questionamento dos modelos de produção e consumo dominantes, cuja revisão a profunda crise ambiental e humana está tornando imperativa.
Esta lista possui, evidentemente, apenas um caráter indicativo. O destino da Amazônia é um tema que precisa mobilizar o conjunto da sociedade brasileira. E tal mobilização se torna a cada dia mais urgente.
*FASE é uma organização não-governamental voltada para a promoção dos direitos humanos, da gestão democrática e da economia solidária.