Ameaça à distensão asiática
Acreditava-se que a questão coreana estava em vias de ser solucionada e que o realismo prevaleceria nas relações sino-americanas. Mas tudo isso mudou. Desde que George W. Bush tomou posse, as perspectivas de distensão tornaram-se distantesBruce Cumings
Eleito quase por acaso, sem um mandato verdadeiro nem experiência prévia, George W. Bush conseguiu em menos de dois meses tornar imprevisíveis as evoluções estratégicas na Ásia Oriental. Envolvendo-se em processos muito sensíveis com pouca sutileza, congelou as negociações com a Coréia do Norte e endureceu consideravelmente o tom em relação à China, agora qualificada ora de “rival”, ora de “adversário estratégico”. Além do mais, ao anunciar pública e enfaticamente que confere ao Japão um papel de maior destaque na gestão da segurança da região, o novo governo deixou Tóquio em uma situação desconfortável. O Japão conta, é claro, com os Estados Unidos para a sua defesa, mas também deve gerenciar o grande vizinho chinês e não parece, de forma alguma, inclinado em aumentar suas obrigações militares.
A aceleração do programa antimísseis (NMD) obrigará a China a munir-se de mísseis intercontinentais e a aumentar ainda mais seu orçamento de defesa
Esta gestão, no mínimo desconcertante, poderia ser atribuída à inexperiência. Nenhum presidente demonstrou tanta ingenuidade em política exterior desde a década de 20. Poderia dizer-se que desde Richard Nixon e até George Bush, pai, o realismo acabou por prevalecer. Talvez. Porém, em termos imediatos, a nova política norte-americana modifica a situação: a distensão pós-guerra fria, tão recente e frágil, parece perder o rumo e as tensões sino-americanas podem conduzir a uma corrida armamentista na região. Concretamente, a aceleração anunciada do programa antimísseis (National Missile Defense — NMD) e seu braço asiático, Theater Missile Defense (TMD), obrigará a China a munir-se de mísseis intercontinentais de ogivas múltiplas (MIRV) e a aumentar ainda mais seu orçamento de defesa (que cresceu quase 18% em 2001).
Última fronteira da guerra fria
Numa situação de tensão crescente, os incidentes graves, como o de 2 de abril de 2001 — choque de um caça chinês com um avião de espionagem norte-americano (EP-3) seguida da retenção deste último e de sua tripulação por Pequim — podem se repetir. Estas questões não estão formalmente relacionadas, mas fazem parte de uma mesma equação estratégica, entre outras tantas, já que o governo norte-americano justifica os programas antimísseis — NMD e TMD — a partir da ameaça que os mísseis balísticos coreanos poderiam exercer sobre a estabilidade regional.
O governo norte-americano justifica os programas antimísseis a partir da ameaça que os mísseis coreanos poderiam exercer sobre a estabilidade regional
É justo conferir ao governo Clinton e aos governantes das duas Coréias o mérito de terem feito mais para diminuir as tensões na península do que todos os seus predecessores fizeram desde 1945. A mudança da política norte-americana a partir de 1994 foi decisiva. Depois de uma crise aguda em torno do programa nuclear da Coréia do Norte — que quase se transformou em conflito militar aberto — o presidente William Clinton estabeleceu negociações com a Coréia do Norte, o que estabilizou e diminuiu significativamente a tensão na península. Esta abertura permitiu ao presidente e Prêmio Nobel da Coréia do Sul, Kim Dae-jung, aprofundar sua política conhecida por “raio de sol” (Sunshine Policy). Em junho de 2000, uma primeira conferência entre os dirigentes das duas Coréias ocorreu em Pyongyang. A última fronteira da guerra fria parecia estar, enfim, desaparecendo.
Trapalhadas e contradições
A mudança de rumo do governo Bush compromete essas perspectivas. E torna frágil a posição de Kim Dae-jung em um momento muito delicado, quando é contestado pela direita por ter ido longe demais na abertura e tem apenas dois anos de mandato para atingir seus objetivos. Kim Dae-jung foi o primeiro dignitário estrangeiro a ser recebido pelo presidente Bush, em Washington.
A partir de 1994, Clinton estabeleceu negociações com a Coréia do Norte, o que estabilizou e diminuiu significati- vamente a tensão na península
Na véspera de sua visita, no início de março, ele havia pensado que os Estados Unidos iriam continuar, ainda que prudentemente, o diálogo com o Norte iniciado pelo governo anterior. O secretário de Estado, Colin Powell, havia, na realidade, afirmado publicamente que os contatos sobre o tema nuclear e os mísseis balísticos continuariam. Pouco depois, a direita do Partido Republicano denunciava Colin Powell com veemência. E, quando da visita de Kim Dae-jung, o próprio presidente norte-americano contradisse seu ministro, lançando dúvidas em relação à manutenção dos contatos.
Deslizes e erros freqüentes
Isso foi um desastre diplomático para o presidente da Coréia do Sul, que esperava receber seu homólogo do Norte, Kim Jong-il em Seul, na primavera de 2001. Os conselheiros de Kim Dae-jung manifestaram publicamente seu embaraço. Porém, segundo testemunhas diretas, em conversas privadas eles teriam criticado Bush por suas “táticas inadmissíveis”.1 Agora, a Política do Raio de Sol está ameaçada e anos de pacientes negociações correm o risco de se perderem.2 No início de abril, Pyongyang cancelou uma reunião ministerial que deveria ocorrer no mesmo mês em Seul.
Pouco depois da visita de Kim Dae-jung, o presidente Bush afirmou que a Coréia do Norte estava violando compromissos assumidos com os Estados Unidos. Porém, na realidade, o único acordo realmente importante, era o de 1994, que interrompia a atividade do único reator nuclear conhecido da Coréia do Norte e que ainda estava em vigor. O que os assessores de Bush tiveram que reconhecer alguns dias depois. Para explicar seu erro, invocaram seus freqüentes deslizes semânticos. Isso não mudou fundamentalmente nada, pois agora o governo vai se empenhar em uma “revisão aprofundada” da política coreana antes de decidir a atitude a tomar.
A viagem que não aconteceu
A mudança de rumo do governo Bush torna frágil a posição de Kim Dae-jung quando ele é contestado pela direita por ter ido longe demais na abertura
Contudo, há dois anos, a tal revisão — aprofundada e inédita — já havia sido feita por especialistas sob a direção de William Perry, ex-secretário de Defesa e, além disso, membro do partido de Bush.3 O trabalho teve a duração de seis meses e concluiu que seria necessário ir mais longe nas negociações com Pyongyang. Seu resultado foi um acordo provisório sobre os mísseis norte-coreanos profundamente favorável aos Estados Unidos e ao conjunto da região da Ásia do Pacífico.4 Na época, a Coréia do Norte parecia disposta a pôr fim à construção, ao desenvolvimento e à venda de todos os mísseis de alcance de mais de trezentas milhas (quinhentos quilômetros). Parecia que se avançava passo a passo na direção de uma regulamentação dos dois grandes temas estratégicos norte-coreanos: o nuclear e os mísseis.
Além disso, os negociadores norte-americanos estavam convencidos de que Kim Jong-il teria aceitado incluir a Coréia do Norte no Regime de Controle da Tecnologia de Mísseis (Missile Technology Control Regime — MTCR, mecanismo institucional multilateral limitador e controlador do desenvolvimento e da proliferação de mísseis balísticos), e por pouco o presidente Clinton não visitou a Coréia do Norte quase no final de seu mandato. Ele queria ir a Pyongyang, já havia preparado sua bagagem. Mas como salientou depois seu assessor Sandy Berger, seria uma má idéia ir em novembro de 2000 sem saber se “uma crise constitucional grave se produziria” nos Estado Unidos. Depois do julgamento da Corte Suprema que deu a vitória a Bush, já era tarde demais.
A China como pano de fundo
Há dois anos, parecia que se avançava na direção de uma regulamentação dos dois grandes temas estratégicos norte-coreanos: o nuclear e os mísseis
Ao ter integrado o MTCR, a Coréia do Norte teria aceitado limitar o alcance de seus mísseis a 180 milhas (288 quilômetros). O que teria eliminado qualquer eventual ameaça sobre o Japão e, em contrapartida, os Estados Unidos teriam fornecido um bilhão de dólares em ajuda alimentar ao regime de Pyongyang. Em termos claros, um bilhão de dólares e uma visita presidencial eram o preço a pagar para que a ameaça dos mísseis norte-coreanos desaparecesse.
Seria um preço muito alto? Sabe-se que o programa antimísseis NMD, oficialmente dirigido contra a Coréia do Norte, já custou sessenta bilhões de dólares e que, durante a presidência de Bush, este custo corre o risco de não ter qualquer limite.5 Permanece a questão da verificação dos acordos. Ainda neste ponto, especialistas norte-americanos afirmam, em círculos privados, que os Estados Unidos já podem realizar todas as verificações necessárias sem inspeção in situ. O próprio William Perry afirmou isso. Quanto aos estoques de mísseis existentes, trata-se de encontrar uma contrapartida econômica eficaz para neutralizá-los.
Então, por que congelar as conversações? Além das incoerências da nova equipe, há a China como pano de fundo. Evidências apontam que o sistema TMD antimísseis, em estudo nos Estados Unidos, é mais direcionado à China do que à Coréia do Norte. Ora, esse país dispõe de limitado arsenal nuclear — vinte mísseis intercontinentais com uma ogiva e construídos com tecnologia obsoleta. É claro que Pequim está desenvolvendo meios mais aperfeiçoados, inclusive mísseis de pequeno alcance. Mas a perspectiva do sistema TMD (de defesa antimísseis) norte-americano na Ásia só contribui para a aceleração desta tendência.
Helms, o “senador de Taiwan”
Em termos claros, um bilhão de dólares e uma visita de William Clinton eram o preço a pagar para que a ameaça dos mísseis norte-coreanos desaparecesse
A China, por sua vez, sem dúvida desenvolverá mísseis intercontinentais de ogivas múltiplas, como fizeram os Estados Unidos e a URSS, na década de 70. Será então uma nova corrida armamentista. Enquanto William Clinton havia declarado uma “parceria estratégica” com a China, o governo Bush a vê como rival ou adversária. Condoleeza Rice, assessora de segurança nacional, a vê como “potência ascendente”, comparável à Alemanha ou o Japão de antes da Segunda Guerra Mundial. Outros, inclusive o presidente Bush, a qualificaram de “adversária estratégica”. O programa NMD vai transformar estas declarações em profecias auto-realizatórias.6
A tensão entre os dois países bem poderia ter se transformado em uma crise de fato se o governo norte-americano não tivesse, no fim de abril, desistido de vender a Taiwan o sistema de defesa Aegis (radar e mísseis antimísseis). Este permitiria uma melhoria qualitativa da capacidade de defesa de Taiwan. Jesse Helms, o ultra-direitista presidente da Comissão de Negócios Estrangeiros do Senado, nos Estados Unidos, conhecido como “senador de Taiwan”, trabalha atualmente sobre um estudo que, segundo informações vazadas e divulgadas pela imprensa, recomenda a venda a Taiwan de todo um aparato de sistemas de armas de alta tecnologia para “afastar a ameaça chinesa”.7 O conteúdo do relatório foi divulgado pelo Washington Times, jornal da organização Moon em Washington.8
Gastos exorbitantes com defesa
O programa antimísseis NMD já custou sessenta bilhões de dólares e, durante a presidência de Bush, este custo corre o risco de não ter qualquer limite
Por seu lado, os dirigentes continentais divulgaram que a venda do sistema Aegis provocaria “uma grave crise” nas relações bilaterais.9 Eles temiam que realmente a próxima etapa fosse a integração da ilha à rede anti-balística norte-americana na região. E sabem que o último presidente que vendeu armas sofisticadas a Taiwan não foi ninguém menos do que Bush, pai, em 1992.
Uma das questões essenciais postas por esta situação é a dos objetivos da política norte-americana na região. Apesar da derrocada da União Soviética, há dez anos, os Estados Unidos continuam a gastar somas exorbitantes com a defesa: 280 bilhões de dólares em 2000, ou seja mais do que todos os orçamentos reunidos de todos os seus possíveis rivais. Na Ásia, cem mil soldados norte-americanos foram deslocados para o Japão e para a Coréia do Sul, com um orçamento estimado em 42 bilhões de dólares. E não estão lá apenas por causa da Coréia do Norte.
Uma dinâmica perigosa
Os norte-coreanos sabem que o último presidente dos EUA que vendeu armas sofisticadas a Taiwan não foi ninguém menos do que Bush, pai, em 1992
Essa força expedicionária é a face contemporânea da estratégia norte-americana estabelecida desde o fim da década de 40 para a Ásia Oriental, que tinha uma dupla finalidade: conter o comunismo e, mais sutilmente, limitar as margens de manobra do novo aliado japonês. O primeiro objetivo foi atingido em 1991. O segundo evoluiu com o tempo, ainda que o Japão seja, ainda, um Estado semi-soberano dependente dos Estados Unidos para sua defesa, informação e controle das vias marítimas indispensáveis ao seu abastecimento econômico. Apesar da aliança estratégica, tensões são recorrentes entre os dois países. Por exemplo, em Okinawa, onde uma parte importante da população deseja uma retirada norte-americana, ou por ocasião do acidente de 9 de fevereiro último, quando o submarino USS Greenville abateu um navio japonês no litoral do Havaí, o que custou a vida de nove turistas japoneses, entre os quais quatro crianças (os Estados Unidos esperaram duas semanas para se desculparem).
A região entrou em uma dinâmica perigosa. Entre os grandes atores, apenas o presidente Kim Dae-jung destacou-se. A conquista das negociações com o Norte ao longo dos três últimos anos cabem a ele. Nesse período ele desenvolveu, também, excelentes relações com o Japão e com a China. Com os resultados ambíguos da eleição norte-americana toda esta construção fica ameaçada, uma estratégia conquistada e possível para a distensão da região está em vias de perder o rumo. Os problemas apenas começam.
(Trad.: Teresa Van Acker)
1 – Declaração dada ao autor por um parlamentar coreano.
2 – Ler, de Selig Harrison, “Uma aproximação incerta”, Le Monde Diplomatique, janeiro de 2001.
3 – Segundo membros do grupo, em conversa tida em maio de 1999, o estudo já estaria em andamento desde o outono de 1998. Suas conclusões implicariam na mais importante mudança na política norte-americana desde a guerra da Coréia.
4 – Ler o artigo de Michael Gordon sobre o assunto no New York Times, 6 de março de 2001.
5 – The