Ameaça jihadista em Bangladesh
Marginalizados por seu comprometimento durante a guerra de libertação de 1971, os islâmicos de Bangladesh progressivamente recuperam sua influência. Alguns passaram para a luta armada. Os assassinatos de personalidades ateias e progressistas e o atentado cometido na capital, Daca, no último verão, colocaram a primeira-ministra Dheik Hasina contra a parede
Até recentemente, as violências islâmicas se limitavam aos assassinatos com alvo determinado, mas o fuzilamento que fez mais de vinte mortos num restaurante de Daca, em 1º de julho de 2016, reavivou os questionamentos sobre o futuro de Bangladesh. O atentado colocou em evidência uma ligação entre seus autores, oriundos das classes médias cultas, e a Organização do Estado Islâmico (OEI), que logo reivindicou a operação. Com 169 milhões de habitantes, cuja idade média é de 25 anos, o país, que soma 89% de muçulmanos, atravessa ao mesmo tempo uma crise de identidade e uma crise política, ambas intimamente ligadas. A primeira remete à relação entre o islã e o Estado, assim como às fraturas herdadas da guerra de independência de 1971. A segunda se perpetua com o confronto encarniçado entre o Partido Nacionalista de Bangladesh (BNP), o Jamaat-e-Islami e a Liga Awami, da qual provém a primeira-ministra, Sheikh Hasina. Esta utiliza a luta contra o islamismo para se contrapor a qualquer oposição política.
Para compreender as crises atuais, é preciso se voltar para a história nacional de Bangladesh, curta, mas agitada e violenta (ver cronologia). Em 1947, a divisão do antigo Império Colonial das Índias deu origem à Índia e a um Paquistão bicéfalo, cuja parte oriental rapidamente se sentiu negligenciada pelo poder central, estabelecido no Paquistão Ocidental. Quando os partidários de uma ampla autonomia para o Paquistão Oriental ganharam as eleições legislativas de 1970, os líderes de Islamabad tentaram impedi-los de chegar ao poder. Para reprimir a Liga Awami, de Mujibur Rahman, as forças paquistanesas se apoiaram localmente em milícias, as Razakars, que recrutavam muitos de seus membros em grupos próximos do partido islâmico Jamaat-e-Islami. As campanhas militares, os massacres em massa, as eliminações de intelectuais e os estupros sistemáticos pelas Razakars e seus cúmplices fizeram centenas de milhares de vítimas e deram origem a grandes fluxos de refugiados.1 A intervenção do Exército indiano permitiu a vitória dos separatistas, assim como a criação de Bangladesh, em dezembro de 1971.
Tornado primeiro-ministro de uma democracia secularista (recusando, portanto, qualquer religião de Estado) e socializante, Mujibur Rahman, o “pai da nação”, foi assassinado em 1975, por ocasião de um golpe de Estado militar que levou ao poder o general Ziaur Rahman. Fundador do BNP, este apostou no nacionalismo e na identidade religiosa do país. Ele próprio foi morto em 1981 em um golpe de Estado fomentado por oficiais.
Combatentes vindos do Afeganistão
Passados cinquenta anos, após muitas peripécias que viram civis e militares se suceder no poder, a cena política de Bangladesh, ainda que disponha de um bom número de partidos, permanece estruturada em torno de duas forças principais, dirigidas desde os anos 1990 por “damas de ferro”. À testa do BNP, Khaleda Zia, viúva do general Ziaur Rahman, foi por duas vezes primeira-ministra (1991-1996 e 2001-2006). Líder da Liga Awami, Sheikh Hasina, filha de Mujibur Rahman, é primeira-ministra desde 2009, tendo antes ocupado esse posto de 1996 a 2001. O Jamaat-e-Islami foi proibido no dia seguinte à independência, dada sua implicação durante a guerra de libertação, mas foi pouco a pouco reabilitado pelos militares e cortejado pelo BNP, que formou com ele várias alianças eleitorais e o associou ao exercício do poder.
Em 1972, a Constituição do país proclamou quatro princípios: nacionalismo, socialismo, democracia e secularismo. O termo “secularismo” desapareceu em 1977, e o islã tornou-se religião de Estado em 1988. Em 2011, a Suprema Corte restaurou o secularismo, mas Hasina não ousou questionar novamente a ligação entre o islã e o Estado. A tensão permanente entre os dois grandes partidos e a repressão dos opositores que convocavam para a greve geral levaram o BNP a boicotar as eleições em 2014. A vitória foi então conquistada pela Liga Awami, ao final de uma campanha que fez mais de 150 mortos.
Apesar dessa grande violência política, as autoridades de Bangladesh sempre cultivaram a imagem de um país “muçulmano moderado e democrático”. Essa estratégia visa encorajar a ajuda internacional e os investimentos estrangeiros. Muito ruins no momento seguinte à independência, vários indicadores sociais melhoraram. A mortalidade infantil, por exemplo, passou de 10% em 1990 para 3,3% em 2012; a expectativa de vida atingiu 72 anos, contra 68 anos na Índia;2 e a pobreza diminuiu um pouco, embora alcance ainda quase um quarto da população. Alguns pontos sombrios permanecem: subalimentação em certas regiões, insuficiência quanto a emprego e educação, salários femininos muito baixos.3
No entanto, o crescimento econômico ultrapassa os 6% anuais há uma década. Bangladesh tornou-se o segundo exportador mundial de roupas depois da China. A tragédia do Rana Plaza, imóvel com fábricas de confecção cujo desabamento fez mais de mil mortes em Daca, em 2013, mostrou que preço pagavam os “escravos do têxtil” para que seu país atraísse as grandes marcas internacionais e seus terceirizados.4 Essa busca por investimentos estrangeiros explica também a negação de sucessivos governos diante do crescimento do islamismo violento, que começou a se manifestar nos anos 1990.
O Jamaat-e-Islami e a direção de seu braço estudantil apostaram na “revolução silenciosa”, ou seja, na islamização das instituições, infiltrando-se nelas para transformar a sociedade pelo alto. Mas muitos de seus antigos membros passaram a integrar partidos bem mais radicais, que designam múltiplos alvos: intelectuais, políticos, ONGs, praticantes de cultos e de artes populares.5
De volta do Afeganistão, combatentes criaram um grupo do qual nasceu, em 1998, o Jamaat-ul-Mujahideem Bangladesh (JMB), movimento de segunda geração focalizado na transformação do país em Estado islâmico, enquanto uma de suas filiais, o Jagrata Muslim Janata Bangladesh (JMJB), se inspira no vigilantismo6 dos talibãs. O chefe do JMJB, Bangla Bhai, fez reinar o terror no nordeste, mas é tolerado pelo BNP porque persegue também os comunistas clandestinos.
No entanto, essa atitude mudou quando, em 17 de agosto de 2005, o JMJB levou a efeito uma campanha de atentados à bomba em 63 dos 64 distritos do país. A pressão internacional cresceu, e Khaleda Zia, então primeira-ministra, teve de prender os chefes do JMB e do JMJB. Condenados em 2006, eles foram executados por um governo interino em 2007. No entanto, outras organizações com conexões internacionais surgiram, como o Hizb ut-Tahrir Bangladesh, fundado em 2001 por um professor universitário, e o Ansarullah Bangla Team, surgido em 2007 num local ligado à Al-Qaeda.
A proliferação de grupos radicais responde a percursos históricos diversos, a sociologias variadas, que vão dos meios tradicionalistas das madrasas de inspiração deobandi (o islã rigorista do sul da Ásia) aos estudantes de classe média que bebem nas fontes do jihadismo.
Nesse contexto, o retorno ao poder da Liga Awami, em 2009, e a caça aos criminosos de guerra de 1971, que ela lançou no ano seguinte, avivaram as tensões. É verdade que um tribunal havia sido criado em 1973 para julgar os “crimes de guerra, genocídio e contra a humanidade” cometidos ao longo do conflito. Um ano depois, porém, um acordo tripartite assinado entre a Índia, o Paquistão e Bangladesh para resolver a herança da guerra levou Mujibur Rahman a conceder de fato anistia aos colaboradores das forças paquistanesas oriundos de Bangladesh. Décadas mais tarde, sua filha fez campanha para retomar o processo deles. Criticado pela Anistia Internacional e pelo Human Rights Watch em razão da fragilidade dos direitos concedidos à defesa, o “tribunal internacional” restabelecido em 2009 na realidade só contava com juízes de Bangladesh. Suas primeiras condenações visaram particularmente aos dirigentes do Jamaat-e-Islami comprometidos com os massacres de 1971, entre os quais seu secretário-geral adjunto, Abdul Quader Mollah, enforcado em dezembro de 2013, e seu secretário-geral, Ali Ahsan Mohammad Mojaheed, executado em novembro de 2015, ao mesmo tempo que um líder do BNP, Salahuddin Quader Chowdhury.
O caso de Mollah é significativo: em fevereiro de 2013, a condenação inicial daquele que era chamado de “açougueiro de Mirpur” (um bairro da capital) à prisão perpétua tinha suscitado intensos protestos, dando nascimento ao movimento Shahbag – nome de uma praça do centro de Daca –, que exigia sua execução. Combinando nacionalismo e anti-islamismo, essa mobilização impressionante de uma juventude conectada nas redes sociais, que não deixava de lembrar os movimentos da Primavera Árabe, pedia a interdição do Jamaat-e-Islami. Essa agitação pacífica desencadeou uma resposta à violência dos islâmicos, ela própria duramente reprimida. O movimento Shahbag questionava também um sistema político minado pelos confrontos partidários, pelo autoritarismo e pela corrupção.
Em setembro de 2016, a execução de Mir Quasem Ali, um dos financiadores e dirigentes do Jamaat-e-Islami, além de ex-chefe da milícia Al-Badr, que tinha cooperado com as Razakars e o Exército paquistanês em 1971, gerou protestos de Islamabad. Daca replicou acusando o Paquistão de se imiscuir em seus assuntos internos e defender um criminoso de guerra. Sheikh Hasina se aproveitou disso para boicotar a cúpula da Associação Sul-Asiática para a Cooperação Regional, seguindo assim os passos da Índia e do Afeganistão, que denunciavam os jihadistas paquistaneses que operavam em seu solo após o ataque de um campo militar na Caxemira e o recrudescimento dos atentados em Cabul. O Paquistão teve de anular a cúpula de 2016, do qual era o país anfitrião.
Introdução da Al-Qaeda
Foi no contexto de tensões destes últimos anos que surgiram em Bangladesh os assassinatos programados de personalidades consideradas anti-islâmicas. Mais de vinte anos após o exílio forçado da romancista Taslima Nasreen, o primeiro visado foi, em 2013, Ahmed Rajib Haider, blogueiro que proclamava seu ateísmo. Apesar das prisões, os assassinatos se intensificaram em 2014 e em 2015, enquanto a lista dos alvos aumentava. Depois de blogueiros, editores, intelectuais liberais, militantes gays ou transexuais, foram atingidos todos aqueles que pleiteavam a condenação pelo Estado dos extremistas sunitas: mesquitas xiitas, cristãos, sacerdotes hindus, assim como dois residentes estrangeiros, um italiano e um japonês – cerca de cinquenta vítimas no total. Se por um lado os assassinos eram de Bangladesh, por outro suas ações, fato novo, deram lugar a reivindicações da Al-Qaeda e da OEI.
O crescimento de poder desta última marginalizou a Al-Qaeda, já enfraquecida pela morte de Osama bin Laden, em 2011. Em resposta, o novo chefe da organização, Ayman al-Zawahiri, anunciou em setembro de 2014 a criação da Al-Qaeda em Guerra Santa no Subcontinente Indiano (AQIS). Desde então, Bangladesh tem sido objeto de uma atenção particular. Al-Zawahiri denunciou a traição da independência, cujo verdadeiro objetivo era “o enfraquecimento da oumma [comunidade islâmica] no subcontinente”, e convocou os “irmãos” de Bangladesh para a revolta contra os cruzados e seus cúmplices.7 Enquanto a AQIS (e a organização de Bangladesh Ansar Al-Islam, ligada a ela) reivindicava assassinatos de blogueiros e liberais, a OEI conclamava a estender a luta contra os “apóstatas” ao poder ontem ou hoje: a Liga Awami, mas também o BNP e mesmo o Jamaat-e-Islami – o que diz muito sobre as lutas ferozes entre correntes islâmicas.
A carnificina de 1º de julho suscitou acalorados debates em Bangladesh. Enquanto a Liga Awami e o BNP se acusavam mutuamente, os comentaristas denunciavam sobretudo a política de negação do poder, que recusa a presença da OEI e da Al-Qaeda. Assim, o redator-chefe do Daily Star, jornal que exige com frequência que as autoridades punam os responsáveis, colocou os grandes partidos no mesmo plano: o BNP, por ter jogado com “o éthos político e cultural do país”; a Liga Awami, por ter “constantemente tentado desviar a atenção do perigo islâmico”.8 Todo o problema é saber que forma esse perigo vai assumir: manterá ele, como hoje, uma capacidade de nocividade terrorista? Será possível abalar profundamente um sistema político deletério, usado pelas rivalidades?
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BOX:
Uma história curta, mas agitada
1947.O Reino Unido comanda a divisão de seu império indiano tendo como base as religiões. Criado em 14 de agosto, o Paquistão compreende o Paquistão Ocidental e o Paquistão Oriental, separados por 1.600 quilômetros.
1949. Criação da Liga Awami por Mujibur Rahman, que defende a independência do Paquistão Oriental.
1970. A Liga Awami vence as eleições. Os dirigentes paquistaneses se recusam a reconhecer os resultados.
1971.Mujibur Rahman é preso e o Paquistão Ocidental lança um violento ataque militar.
Dezembro. Os partidários da independência, ajudados pelo Exército indiano, vencem as forças do Paquistão Ocidental. Criação da República Popular de Bangladesh.
1975-1990. Sucessão de golpes de Estado militares.
1991. Março. Khaleda Zia leva à vitória o Partido Nacionalista de Bangladesh (BNP).
1996. A Liga Awami vence as eleições e conduz ao poder Sheikh Hasina Wajed.
2001. O BNP vence as eleições.
2006. 6 de janeiro. A Liga Awami retorna ao poder.
2013. 22 de abril. Eleição de Abdul Hamid (Liga Awami), candidato único, à presidência da República.
24 de abril. O desabamento do Rana Plaza, fábrica têxtil perto de Daca, mata mais de mil pessoas.
2014. 5 de janeiro. A Liga Awami vence as eleições legislativas, marcadas por feroz repressão.
2016. Janeiro. Dois estudantes são condenados à morte pelo assassinato em 2013 do blogueiro ateu Ahmed Rajib Haider.
1º de julho. Um atentado reivindicado pela Organização do Estado Islâmico faz 24 mortos em Daca.
Jean-Luc Racine é diretor de pesquisa emérito do Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS) e pesquisador sênior so Asia Centre, em Paris