“Amor”, de André Sant’Anna: um antídoto contra a falsa sensibilidade
Confira resenha do romance Amor, de André Sant’Anna, que ganha nova edição em 2024 pela editora curitibana Madame Psicose
Philip Roth já anunciou, muito tempo depois de se consagrar como um dos grandes romancistas do século XX, que o romance estaria em vias de desaparecer. Naturalmente que sua declaração gerou dezenas de respostas contrárias à máxima um tanto quanto categórica, um tanto provocativa, um tanto debochada. Um dos escritores que rebateu Roth foi Paul Auster, recentemente falecido, dizendo que o gênero nunca morrerá, pois tem o poder de sempre se reinventar, e essa é a beleza da literatura de forma geral.
Pois bem, trazendo essa questão para nosso terreno atual brasileiro, o que vemos de alguns anos para cá é certa predominância de uma espécie de prosa de cunho edificante, ou seja, linguagem deixada de lado em prol de panfletar em favor de algo que, muitas vezes, está em voga, que dita normas, que inclui personas, porém exclui algo fundamental não só na literatura, mas nas obras de arte como um todo: o fator estético.
Claro que questões sobre a arte estar a favor de algo (no sentido de apenas preocupar-se com mensagem, com bom-mocismo, em ser cool e pertencimento) não é novo em discussões acaloradas em meios diversos; de lives às salas de aula, de escritores às mesas de bar.
Dito isso, entramos agora no que interessa neste texto: o romance Amor, de André Sant’Anna, que ganha nova edição em 2024 pela editora curitibana Madame Psicose. Amor é o primeiro livro de Sant’Anna, publicado originalmente em 1998, de forma independente.
O que se percebe logo de início é que estamos entrando em uma espécie de fluxo contínuo narrativo em que não há necessariamente um personagem, mas sim um painel metonímico em que todos aparecemos. Políticos, pessoas comuns, crianças, popstars, cineastas, escritores, modelos, enfim, fazem parte de um jorro metafórico que compõe um mosaico de diatribes sem fim sobre as mais recônditas mazelas contemporâneas que vemos todos os dias, e as ignoramos.
Uma das belezas da narrativa hiperbólica de Sant’Anna (em alguns momentos lembra o genial Thomas Bernhard) é exatamente a falta de limite, a falta de lirismo, a falta de artificialidade, pois – em Amor – a linguagem é orgânica. Podemos perceber sua construção romanesca como um dos melhores exemplos na literatura brasileira contemporânea do que Eduardo Lourenço (o grande ensaísta e crítico português) chamou de narrativa em blow-up (referência à técnica utilizada na fotografia analógica de ampliação e distorção de imagens), ou seja, a narrativa de Amor não tem necessariamente um assunto específico, mas, por meio da linguagem apurada e direta, trata de tudo ao mesmo tempo, desde a impossibilidade de comunicação entre as pessoas à falta de sentido aparente da vida moderna. Todas as relações entre crianças mortas (que é um eco que perpassa todo o livro), Grace Kelly, o presidente dos Estados Unidos, popstars, cineastas e escritores são uma forma de ampliação da realidade frágil e apavorante na qual todos estamos inseridos.
A reedição de Amor não poderia vir em melhor momento. Vivemos na era da caretice, do bom-mocismo, da arte que busca respostas, e não da linguagem que explora e propõe problemas, desafios, perguntas. Em meio a tudo isso, num cenário catastrófico para quem escreve, publica e edita literatura a sério, a cereja do bolo em Amor é sua musicalidade (lembremos que Sant’Anna é músico!), e o jorro narrativo do livro faz jus à melopeia poundiana. Vida longa ao Amor, que mostra que sim: Paul Auster estava correto.
Daniel Osiecki é editor na Kafka e Vespeiro Edições, com longa passagem pela Kotter. Entre prosa e verso, publicou nove títulos – Atmosfera das grutas (poesia, 2023) e a reedição de Sob o signo da noite (conto, 2024) são os mais recentes. Vive em Curitiba (PR).