Amor, segurança e demografia
Com medo da “ameaça demográfica”, governo israelense cancelou a autorização que tinham cidadãos ou cidadãs palestinos, casados com árabes israelenses, de viver em Israel, tornando-os ilegais em sua própria casaMeron Rapoport
Murad El-Sana, um palestino nascido em Israel, em Laskia, cidade de beduínos próxima a Beersheva, não tinha qualquer segunda intenção de ordem política quando descobriu Abeer, uma palestina nascida em Belém. Ambos estudavam na Universidade de McGill, no Canadá, no âmbito de um programa especial denominado “Construir a Paz” no Oriente Médio. Foi quando se apaixonaram. Nem um, nem outro imaginava que alguma coisa pudesse interferir em sua felicidade. “Eu sabia que Abeer não era uma criminosa, assim como eu próprio não o sou”, explica Murad. “Nem tinha pensado no fato de ela ser palestina e eu, israelense. Apenas a amava, era só isso.”
Três anos após se terem conhecido do outro lado do Atlântico, Murad, formado em Direito, e Abeer, professora universitária, casaram-se em Jerusalém, em fevereiro de 2003. Porém, no dia 12 de maio desse ano, o governo israelense decidiu cancelar a autorização que tinham cidadãos ou cidadãs palestinos, casados com árabes israelenses, de viver em Israel. Dois meses e meio depois, o Parlamento transformava aquela decisão em lei. Abeer, que se instalara em Beersheva para morar com seu marido, tornava-se ilegal em sua própria casa. “Foram os tempos mais duros de nossas vidas”, conta Murad. “A ameaça de detenção pairava sobre nossas cabeças, como uma espada. Abeer não podia lecionar na Universidade nem podia receber a assistência normal. Para evitar que nos localizassem, não podíamos dar nosso endereço a ninguém.”
Infração a um direito sagrado
O Estado de Israel responde que teve que infringir esse direito sagrado por motivos de segurança. São raras, no exterior, as pessoas que aceitam esse argumento
A lei que transformou a vida da família El-Sana num inferno chama-se Lei sobre a Cidadania e Entrada em Israel. A comunidade internacional, inclusive a Comissão Européia, classificou-a de racista e discriminatória. Ela viola um dos direitos fundamentais de todos os seres humanos: o de amar quem se deseja e o de criar uma família. O Estado de Israel responde que teve que infringir esse direito sagrado por motivos de segurança. São raras, no exterior, as pessoas que aceitam esse argumento. E, mesmo em Israel, muita gente o desaprova.
Na realidade, de que se trata? Há anos que os casamentos entre palestinos nascidos em Israel e palestinos nascidos na Cisjordânia ou em Gaza constituem um fenômeno banal. Uns e outros pertencem ao mesmo povo, partilham da mesma cultura e, em muitos casos, têm as mesmas raízes familiares – o que representa um dado importante, pois, na Palestina, existe a tradição de se casarem membros de um mesmo clã. Até agora, um cidadão, ou cidadã, palestino casado com uma, ou um, israelense se via forçado a percorrer longos trâmites burocráticos – bem mais longos do que para o caso de qualquer outro estrangeiro – para obter a autorização de residência permanente, e até a cidadania israelense.
Entre 1993 e 2001, o Ministério do Interior israelense registrou 22.414 pedidos de “reunificação de famílias”, dos quais 16.007 receberam uma resposta positiva. Na ausência de dados estatísticos sobre o número de crianças envolvidas, é possível calcular que um total de 100 mil palestinos tenha recebido a autorização para viver em Israel. Um número relativamente alto, considerando-se que a população israelense é de cerca de seis milhões de pessoas.
Vida familiar fora da lei
Entre 1993 e 2001, o Ministério do Interior israelense registrou 22.414 pedidos de “reunificação de famílias”, dos quais 16.007 receberam uma resposta positiva
A nova lei representa uma guinada brutal. “O Ministério do Interior não irá conceder cidadania a um residente da região”, explicita, referindo-se à Judéia e Samaria, ou seja, à Cisjordânia e à Faixa de Gaza. No entanto, “quem reside nas comunidades israelenses da região”, ou seja, os colonos, não é considerado pelo texto como “residente da região”! Essas definições tanto servem para o Ministério do Interior, quanto para os comandantes militares proibirem a concessão de residência permanente aos “residentes da região”.
Concretamente, não existem esperanças para Abeer El-Sana – nem para dezenas de milhares de outros palestinos, inclusive milhares de crianças – de conseguir uma vida em comum familiar dentro da lei. A proibição só pode ser contornada em duas únicas circunstâncias: para pessoas que venham trabalhar ou se tratar em Israel; e para os “residentes” que “o Ministério do Interior esteja convencido de que se identificam com o Estado de Israel e seus objetivos (…) e tenham realizado alguma ação significativa no sentido de melhorar a segurança” – em outras palavras, delatores palestinos, a quem se oferecerá também a cidadania israelense.
Oficialmente, a lei obedece a exigências de segurança. As notas esclarecedoras explicam que ocorreu “um aumento acirrado no conflito” de palestinos que obtiveram documentos israelenses graças à reunificação das famílias e, conseqüentemente, para a segurança de Israel, convém bloquear essa via de acesso ao país. Questionado pela organização Adala, entidade legal que defende os direitos da minoria árabe em Israel, o governo citou seis casos em que palestinos naturalizados participaram de ações terroristas. Mais tarde, esse número passou para 21. O número, replicou a Adala, representa apenas 0,02% dos palestinos envolvidos. E é bem inferior ao número de delatores palestinos envolvidos em atentados terroristas: por exemplo, o homem que transportou o suicida até o restaurante Maxim, em Haifa1 , era filho de um deles…
“Ameaça demográfica”
Israel tem motivos para pedir a seus cidadãos árabes que não façam a guerra, mas dificilmente lhes pode pedir que não façam amor
Na verdade, a lei se explica por outros motivos. A começar pela “ameaça demográfica”, como admitiu claramente, antes da votação da lei, Gideon Ezra, ex-diretor-adjunto do Serviço de Segurança Interna (Shabak) e ministro sem pasta: “O Estado de Israel não está preparado para aceitar um ?direito de retorno? dissimulado e ninguém quer que nosso Estado deixe de ser um Estado judeu.”
Eis por que Israel desrespeita esse direito fundamental – o direito a amar e constituir família. E homens e mulheres arcam com as conseqüências. Nos dois últimos anos, Mahmud Salwe só saiu de seu vilarejo de Um-Ghanio, perto de Afula, por duas vezes: receia ser preso e separado de sua mulher e de seus quatro filhos. A advogada Yoahana Lerman, que vem acompanhando esses problemas, conta que uma de suas clientes fez um aborto por medo de que seu bebê não desfrutasse de direitos legais. “Recuso-me a pensar no que irá acontecer se essa lei não for modificada”, diz Murad El-Sana, que também trabalha na organização Adala. “Seria um desastre!”
A Adala, assim como outras entidades, entraram com um recurso junto à Corte Suprema, exigindo que a lei seja revogada por ferir os direitos humanos. A Corte decidiu realizar um debate com um quorum de 13 juízes, sinal de que considera a questão fundamental. “O amor não conhece fronteiras e as despreza”, diz o recurso da Adala. “É por isso que esta lei não prevalecerá. (…) Porque homens e mulheres continuarão se apaixonando, se casando e constituindo famílias” Israel tem motivos para pedir a seus cidadãos árabes que não façam a guerra, mas dificilmente lhes