Análise da obra ‘Entre a vida e a morte, há vários documentos’, de Michael Maia
Um país legaliza e controla uma nova descoberta: “a droga da morte”, que permite que as pessoas tenham a experiência fascinante instantes antes de morrer: rever amigos e parentes falecidos e, até quem sabe, Deus. Essa droga, leva a um surto de mortes e o governo é forçado a regulamentar o uso desse narcótico
“No dia seguinte, ninguém morreu”. Assim José Saramago começa um dos maiores tratados literários sobre a morte, o clássico As Intermitências da Morte. Na obra em questão, a morte é uma espécie de parábola para dissecar as entranhas de nosso sistema capitalista moderno. Michael Maia, um possível grande leitor de Saramago, leva essa proposta até as últimas consequências em Entre a vida e a morte, há vários documentos.

Se na obra do escritor português ninguém morria, no romance de Michael, publicado pela editora Paraquedas, o que acontece é o contrário: o governo legaliza a morte e a realiza através de uma droga que foi produzida em laboratório. Com efeito quase metafísico, a tal droga permite rever amigos, parentes falecidos e, para quem acredita, até mesmo a figura de Deus.
Essa possibilidade singular, diante de um mundo burocrático em que uma pilha de documentos medeia a relação entre os sujeitos, como sugere o título do livro, além de discussões na ONU, testes em pequenas doses até a aplicação irrestrita, acaba por gerar um “Grande Surto”: o surto em que todos querem morrer:
“A passos lentos, mas contínuos, a morte foi chegando em todas as famílias, tornando-se um tema frequente e assíduo em todas as conversas — e ainda mais misterioso do que antes.”
Porém, quando acreditamos que o romance vai se dar no campo das disputas políticas em torno de quem pode ou não morrer, nos deparamos com uma transgressão da própria forma, ao trazer o assunto para o microcosmos em discussões que se espraiam também para a micropolítica. Mais uma vez, entre os “vários documentos”, conhecemos a vida de duas personagens, Luzia e Tânia, um casal em que após um diagnóstico de câncer terminal decide interromper o tratamento e se candidatar ao uso da droga.
Dentro de uma família conservadora (ou seria melhor dizer “tradicional”) na qual o irmão de uma delas trabalha justamente no instituto estatal que recebe e regula as aplicações da droga, o romance se translada para discussões que atingem diretamente aquelas personagens. Algumas perguntas surgem como questionamento: quem tem direito à minha vida? Será que minha família tem direito a decidir por mim quando estou em um momento de dor?
“Liberdade para morrer, liberdade para viver e para lutar”. “Luto pela vida”. Esses são alguns dos lemas que giram em torno das disputas que as personagens travam com e contra o Estado, uma espécie de distopia como a de George Orwell, em 1984, para ter direito a este novo narcótico que, afinal de contas, foi produzido pelo próprio Estado.
O curioso, no entanto, é que para Michael o cerne do assunto não parece estar apenas em viver ou morrer, mas em uma metafísica da existência, ou seja, no fato de que a vida não é apenas uma pretensa liberdade entre vida e morte, mas também, de alguma forma, um direito de quem escolhe não morrer. Assim, a morte e seus momentos derradeiros podem ser vistos como atos de libertação, não exatamente de um “fim” da existência.
A crise existencial com a qual Antônio — o irmão que trabalha na empresa estatal — se depara é a de enfrentar, investir e defender um aparato burocrático que, no fundo, afasta os indivíduos da coletividade da capacidade de discernir entre uma realidade oferecida e uma experiência do que é viver.
A narrativa ágil do romance, repleta de diálogos, escapam de uma obra que possui uma tese, tratando justamente da procura de uma zona de “entre”: nem vida, nem morte satisfarão completamente os sujeitos, apenas uma plena possibilidade material de escolha. Assim, Entre a vida e a morte, há vários documentos é tal qual o Castelo ou a Justiça para Franz Kafka: um lugar que se vislumbra, mas que se torna difícil tocar.
Um tratado sobre suicídio que inclui discussões sobre a garantia de direitos se torna ainda mais difícil quanto falamos de uma relação LGBTQIAPN+. Um romance que captura o aparato burocrático abordado por José Saramago e o amplia para um mundo contemporâneo cada vez mais difuso, confuso, em que os vários documentos são cada vez inacessíveis para uma maioria. Se o negócio da morte entrou na moda, é preciso ainda mais descobrir o que é viver.
Luiz Antonio Ribeiro é editor, crítico literário, doutor e mestre em Memória Social nas áreas de poesia e literatura brasileira e bacharel em Teoria do Teatro pela Unirio – Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. É dramaturgo da companhia Teatro Voador Não Identificado. Em geral, se arrepende do que escreve.