Andropov, precursor da glasnost
Num livro que acaba de ser publicado, numa co-edição entre o ’Monde Diplomatique’ e a editora Fayard, Moshe Lewin revela a primeira grande tentativa de reforma radical do sistema soviético, conduzida por Iuri Andropov, que sucedeu a BrejnevMoshe Lewin
Iuri Andropov, que conhecia pessoalmente alguns dissidentes (entre eles, Roy Medvedev), havia estudado sua personalidade. Lera suas obras e quase sempre gostara delas. Porém, sua missão de chefe da segurança política ia muito além disso. Ele calculava em 8,5 milhões o número de pessoas capazes de passar à ação na primeira oportunidade. Esse potencial dava a alguns dissidentes eminentes a possibilidade de desempenharem o papel de catalisadores e aglutinadores.
Na visão de Andropov, era indispensável recorrer a métodos policiais diante de tais núcleos, ainda mais que um número nada desprezível de dissidentes se dizia abertamente “do outro lado”. Ainda assim, estava convencido, em última análise, de que o elemento decisivo residia na capacidade do sistema se mostrar competitivo. Ora, a distância entre as necessidades crescentes e os recursos em constante diminuição (inclusive os recursos intelectuais – bastante limitados – dos dirigentes) era cada vez maior. Isso valia não apenas para a economia, mas também para as bases políticas do sistema.
Uma comparação patética
Uma comparação feita em 1968, analisando a economia, nível de vida etc., mostrou que os soviéticos só superavam os EUA no setor carbonífero-siderúrgico
Em 1982/1983, para ter uma chance de sucesso, os dirigentes deveriam, paradoxalmente, reconhecer não apenas que o sistema estava doente – o que Iuri Andropov e Alexei Kossigin (falecido em 1980) já sabiam há algum tempo -, mas que muitos de seus órgãos vitais já estavam mortos.
O economista Vasily S. Nemcinov já havia previsto, ainda em 1965, que as coisas estavam indo mal, quando criticava “um sistema mecânico, calcificado, em que todos os parâmetros essenciais são previamente fixados, de tal forma que o sistema fica paralisado de cima a baixo”. Quando uma pessoa é declarada morta, ninguém crê em uma ressurreição possível. Mas quando se trata de um modo de governo, a possibilidade de quebrá-lo e reconstruí-lo é plausível.
É evidente que Kossigin ou Andropov conheciam a situação melhor do que qualquer historiador ocidental, especialmente graças à leitura de relatórios dos quais só pudemos ter conhecimento uns 25 anos depois. Entre eles, uma obra sólida, não publicada, encomendada por Kossigin, então primeiro-ministro, junto à seção de economia da Academia de Ciências. Três anos após os alertas de Nemcinov, os acadêmicos entregaram-se a uma comparação sistemática entre os Estados Unidos e a URSS, do ponto de vista das estruturas econômicas, do nível de vida, dos progressos tecnológicos, dos estimulantes materiais, da administração e das orientações de investimentos. A sentença foi a seguinte: a URSS era derrotada em todos os campos, com exceção do setor do carbonífero-siderúrgico, que era o orgulho do país, mas refletia seu atraso – era um setor com referências ao século passado. A mensagem era clara, assim como a velha inscrição em aramaico nas paredes do palácio de Baltazar, na Babilônia. Só que não dizia mais mneh, mneh thel ufarsin (Refletiu, refletiu, decidiu e venceu), porém mneh, mneh… USA (Refletiu, refletiu… e os Estados Unidos venceram). Portanto, a ameaça não vinha mais de Deus, mas dos poderosos Estados Unidos. Não havia um minuto a perder para transformar radicalmente o sistema.
Mudando a correlação de forças
A causa da estagnação estava em um Politburo literalmente morto, reunido em torno de um Brejnev com o cérebro paralisado – um impasse humilhante
A causa da estagnação – e também seu principal sintoma – estava em um Politburo literalmente morto, reunido em torno de um Brejnev com o cérebro paralisado, um impasse humilhante exposto a todo o planeta. Não era possível afastar Brejnev, ao contrário do que ocorrera com Kruchev, pois não havia maioria para escolher um novo líder. Um outro aspecto da situação era a corrupção tentacular da qual alguns membros da família Brejnev participavam de forma ostensiva. O florescimento de redes mafiosas, das quais muitos altos funcionários do Partido eram associados, era outro fenômeno do qual o país – mas não os dirigentes – havia tomado consciência. Nunca havia atingido tamanhas proporções.
No preciso momento em que o país compreendeu que a KGB se preparava para atacar vigorosamente esse flagelo, e quando a armadilha preparada para a família Brejnev e outros pesos-pesados do regime se armava, um escândalo ressoou no universo político: em 19 de janeiro de 1982, o principal adjunto de Andropov, Semen Cvigun, a sombra de Brejnev sobre Andropov, se suicidou. Outros escândalos do mesmo gênero ocorreram. Alguns dias mais tarde, Mikhail Suslov, o segundo homem do Politburo, um conservador linha-dura, morreu de morte natural. Esse desaparecimento é a chave da mudança na correlação de forças no Politburo, em detrimento do “marasmo”.
Aproximação com a intelligentsia
Um outro aspecto da situação eram as redes mafiosas e a corrupção tentacular, da qual alguns membros da família Brejnev participavam de forma ostensiva
Quando esses dois homens desapareceram, Andropov lançou mão dos arquivos da corrupção e começou a procurar mais fundo. O que desequilibrou bastante a capacidade do “marasmo” de preservar em seu favor o equilíbrio do Politburo e do Comitê Central. E foi assim que o atípico chefe da KGB, Andropov, se tornou secretário-geral, quase acidentalmente. Só teria mais quinze meses no poder (o que também foi por acaso), mas esse curto período suscitou problemas interessantes.
A paralisia do sistema, num momento em que ninguém detinha, de fato, o timão, não impediu que eventualmente surgisse um verdadeiro piloto, capaz de impor uma mudança de rumo, começando por virar a cúpula pelo avesso. Incontestavelmente o acaso teve, no início, a sua importância.
Mas é digna de nota a velocidade pela qual o “marasmo” pôde ser esvaziado por meio de um expurgo enérgico de seus pontos de apoio dentro do aparelho do Partido. Novas iniciativas foram possíveis graças à chegada de novos quadros de dirigentes e foi exatamente isso o que ocorreu com Andropov.
Um de seus colaboradores mais próximos na KGB, Vjaceslav Kevorkov, que ocupou um cargo de destaque na contra-espionagem, nos deixou alguns outros traços da personagem. Segundo ele, Andropov pensava na possibilidade de fazer um acordo com a intelligentsia para que o auxiliasse a reformar o sistema. Seu modelo era visivelmente Anatoli Lunatcharsky que, na época de Lênin, havia sabido comunicar-se e cooperar com aquele grupo social. Andropov compreendera perfeitamente que a principal doença do Partido era a debilidade intelectual de seus quadros e de seus altos dirigentes.
Ridicularizando as elites
A morte de Semen Cvigun, a “sombra” de Brejnev, e de Mikhail Suslov, um conservador linha-dura, é a chave da mudança na correlação de forças no Politburo
Tudo o que se escreveu sobre sua adesão ao “brejnevismo” revela má-fé. Uma coisa é certa: seu posto estava à mercê de uma decisão de Brejnev. Kervorkov cita a opinião de seu chefe: “Quase nenhum dos atuais dirigentes do Partido ou do Estado pertence à classe dos homens políticos de talento, que poderiam fazer frente às dificuldades que país enfrenta.” Para ele, de qualquer modo, Andropov pertence a essa classe e conclui seu livro com esta frase: “Andropov foi, sem nenhuma dúvida, o último homem de Estado que acreditava na vitalidade do sistema soviético, mas não na que herdou ao chegar ao poder; ele acreditava apenas naquela do sistema que pretendia criar através de reformas radicais.”
Esse depoimento, assim como outros, parece comprovar que um político inteligente como Andropov compreendia que o sistema deveria ser reconstruído, pois suas bases econômicas e políticas já estavam em um estado lamentável. Reconstruí-lo só poderia significar sua substituição, com fases de transição, por outra coisa. Pensaria ele, realmente, nesses termos? Independentemente do fato de que seus arquivos pessoais continuam inacessíveis, as decisões que tomou ou pretendia tomar permitem responder afirmativamente.
Ele chegou ao poder de uma forma rápida e suave. Começou agindo com muita prudência, mas logo o país compreendeu que coisas sérias vinham sendo preparadas no Kremlin. As primeiras iniciativas foram as que todo mundo esperava: Andropov quis restaurar a disciplina nos locais de trabalho. Além dos trabalhadores, tratava-se de educar as elites, que não brilhavam pela ética no trabalho. Ele ridicularizava seu gosto exagerado por luxuosas datchas e outros prazeres da vida (ele próprio era conhecido pela vida simples que levava), e quando isso passou a ser público, sua popularidade aumentou. O país tem um chefe, e isso se percebe.
Ciência, e não ideologia vazia
A paralisia do sistema não impediu que surgisse um verdadeiro piloto, capaz de impor uma mudança de rumo, começando por virar a cúpula pelo avesso
Uma reforma exige preparação e tempo: grupos de reflexão e comissões foram constituídos. Algumas medidas foram provisórias, outras iriam mais longe, até serem irreversíveis. É o caso do expurgo conduzido com firmeza contra um grupo de responsáveis pelo aparelho – dentre os mais retrógrados pilares da equipe anterior.
Outra grande satisfação da intelligentsia: o afastamento de Sergei Trapeznikov, outro protegido de Brejnev, que se considerava o principal ideólogo do Partido. Grande inquisidor do regime, stalinista inveterado, ele perseguia os escritores e professores que defendessem opiniões que não lhe agradassem.
No período de Andropov, o papel de Gorbatchev não parou de crescer. Homens novos chegavam a cargos-chave no aparelho do Partido. Andropov propôs a Vadim Medvedev a chefia do departamento “pesquisa e universidades”. Ora, Medvedev havia sido violentamente criticado por “insubordinação” quando tentara fazer da Academia de Ciências Sociais do Partido, da qual era diretor, um verdadeiro instituto de pesquisa. Andropov o informou que novas abordagens eram indispensáveis para acelerar o progresso técnico e científico e melhorar a situação das ciências sociais, particularmente abandonadas por Trapeznikov: a Academia de Ciências Sociais deveria dedicar-se a verdadeiros trabalhos, ao invés de produzir textos ideológicos totalmente vazios.
A “reabilitação” do setor privado
Andropov ridicularizava o gosto das elites por luxuosas datchas e outros prazeres da vida e, quando isso passou a ser público, sua popularidade aumentou
Vladimir I. Vorotnikov, vice primeiro-ministro da República Federativa da Rússia, foi nomeado primeiro-ministro da República e membro de Politburo em 1983. No seu diário pessoal, diz ter ficado muito impressionado pela inteligência manifestada por Andropov durante as conversas que tiveram. Suas anotações, tomadas durante reuniões do Politburo, revelam um Andropov enérgico e incisivo, que não temia abordar problemas cada vez mais complexos: disciplina nos locais de trabalho e também o funcionamento da economia e pesquisa de um novo modelo; sua maneira de abordar a mudança é muito pragmática; ele espera agir através da progressiva ampliação do campo das reformas.
O primeiro passo importante na área econômica consistiu em deixar as fábricas trabalharem “na base de um completo autofinanciamento” (polnyj hozrascet) levando em consideração custos e benefícios. Porém, Vorotnikov, recém-chegado, ainda pouco informado sobre a cozinha do Politburo, nada diz das comissões que reuniam personagens de alto escalão para preparar essas mudanças. Também não estava a par dos planos de Andropov visando reformar o Partido.
Após suas primeiras iniciativas, Andropov preparava outras. E disse: “Precisamos mudar os mecanismos econômicos e o sistema de planejamento.” Um grupo de estudos ad hoc – que talvez existisse sob outra forma antes de sua chegada ao poder – se pôs a trabalhar. Nesse espaço de tempo, o setor privado, que Nikita Kruchev havia reduzido ou proibido, foi “reabilitado”. E o governo recebeu uma advertência severa: os serviços ministeriais não souberam dar o exemplo da boa organização; fracassaram ao não criarem condições para uma “atmosfera de trabalho altamente produtiva”.
O fim dos “bons velhos tempos”
Se “eleição” não significava mais “nomeação”, a atmosfera de campanha poderia ser bem diferente. Andropov declarou publicamente que queria eleições de verdade
As mudanças empreendidas foram importantes e outras, previsíveis, pareciam estar em gestação. Trechos de relatos das sessões do Politburo (hoje, disponíveis) lançam uma luz ainda mais surpreendente sobre a estratégia em curso de elaboração. Quando a campanha para a reeleição dos grandes organismos do Partido se aproximava, acompanhada pelos habituais relatórios, Andropov declarou subitamente em uma resolução oficial, em agosto de 1983: “As assembléias eleitorais do Partido obedecem a um cenário pré-estabelecido, sem debate sério e franco. As plataformas dos candidatos já estão prontas para serem publicadas; qualquer iniciativa ou crítica é abafada. A partir de agora, nada disso será tolerado.”
Foi uma autêntica bomba. Criticar os líderes do Partido, obcecados por seus interesses, e mostrar que poderiam ser afastados, justamente no momento em que se inicia a campanha para reeleições, criava uma situação absolutamente nova para toda a camada dirigente. A maioria deles era, até então, reeleita por direito adquirido, fosse qual fosse seu cargo.
Portanto, a mudança que se preparava era de envergadura. Se “eleição” não significava mais “nomeação”, a atmosfera de campanha poderia ser bem diferente. Andropov declarou publicamente que queria eleições de verdade. O que significava que o pretenso “Partido” era um cadáver, que não era possível esperar devolver-lhe a vida e a única coisa a fazer era destruí-lo. E foi isso que compreenderam os dirigentes da época. A célebre “estabilidade dos quadros” (a segurança de manter seu cargo a despeito do que fosse feito) estava a ponto de desaparecer e, com ela, a impunidade dos “bons velhos tempos”. O poder confortável e parasita da classe dos chefes do partido-Estado chegava ao fim. Eleições de verdade dentro do Partido significavam o reaparecimento de correntes e a emergência de novos líderes; daí, poderia renascer um partido, qualquer que fosse seu nome. Um partido desses no poder, programando reformas, poderia servir de teste para o país na difícil transição para um novo modelo.
Tudo isso, evidentemente, é a história com os “se”… Andropov, que sofria de uma doença renal incurável, viria a falecer rapidamente, em 1984. Foi substituído por Constantin Tchernenko, um apparatchik sem rosto, também gravemente do
Moshe Lewin nasceu na Polônia, graduou-se na Universidade de Tel Aviv (Israel) e doutorou-se na Sorbonne (Paris). Foi diretor da École des Hautes Études (Paris) e professor da Birmingham University (Reino Unido) e da University of Pennsylvania (EUA). Um dos mais influentes estudiosos da história russa, é autor de Le siècle soviétique (Paris, Fayard / Le Monde Diplomatiuqe, 2003).