Antes das liberdades, o comércio
Um análise dos princípios bem pouco humanistas que orientam a ação da OMC, e das propostas que as grandes corporações internacionais tentaram impor às sociedades em Seattle.Susan George
A conferência ministerial da Organização Mundial do Comércio (OMC), em Seattle, foi apresentada candidamente como uma simples negociação sobre as trocas internacionais de bens e de serviços onde cada um — é o costume — deverá evidentemente fazer algumas concessões. Não faz muito tempo, também nos tinham garantido que o Acordo Multilateral de Investimentos (AMI) era apenas um simples dispositivo jurídico e técnico sem conseqüências. Que pena! A mensagem não colou e manifestações-monstro acolheram os delegados de 134 países e os lobbistas das multinacionais.
Na Europa, os escândalos da banana e da carne bovina com hormônios bem como as exportações de transgênicos contribuiram para a mobilização de amplos setores da opinião pública contra a tirania de uma organização internacional que pretende estar acima das demais. Mas, como chegamos a este ponto?
No início foi o Acordo Geral sobre Tarifas Aduaneiras e Comércio (GATT- General Agreement on Trade and Tariffs). Desde 1947, os embaixadores dos países membros (“partes contratantes”) desta instituição — essencialmente um fórum de negociações — trabalhavam discretamente no sentido de reduzir os direitos alfandegários sobre as mercadorias. Ao fim da oitava rodada de negociações — a Rodada Uruguai (The Uruguay Round — 1986-1993) —, os esforços desses anos finalmente têm sucesso: em março de 1994, os ministros reunidos em Marrakesh assinam a ata de nascimento da OMC, cujas 800 páginas — que chegam a milhares, se contados os anexos — dão ao comércio mundial um caráter bem mais restritivo do que o frágil GATT.
Na sombra, os lobbistas das empresas transnacionais, presentes há muito tempo junto aos negociadores oficiais, esfregam as mãos: com a OMC eles dispõem, finalmente, do instrumento ideal para realizar a globalização e impor novas regras — as suas — a todas as atividades humanas, definidas doravante como objetos de “comércio”.
A OMC, que ao contrário do GATT tem o estatuto de organização internacional, conta com 134 Estados-membros, aos quais somam-se uns 30 observadores. Comparados aos do Banco Mundial e do FMI, os efetivos de seu secretariado são modestos — cerca de 650 pessoas; ele ocupa, em Genebra, a mesma sede do antigo GATT. Seu novo diretor geral, designado após enfrentamentos ásperos e inconvenientes, chama-se Mike Moore. Daqui há três anos, este neoliberal da Nova Zelândia será substituído por seu preterido concorrente, o tailandês Supachai Panitchpakdi, que exercerá o restante do mandato de seis anos.
Um emaranhado de acordos
À beira do lago Léman (na fronteira da Suíça com a França), a vasta mansão da OMC abriga atualmente o GATT, ainda encarregado da liberalização do comécio das mercadorias, e mais de uma dezena de outros acordos. Entre os mais importantes, o da agricultura e o Acordo Geral sobre o Comércio de Serviços, chamado GATS, que sozinho cobre mais de 160 setores e sub-setores, compreendendo os da educação, da saúde e do meio ambiente [1] . O Trips regula a propriedade intelectual, inclusive a biotecnologia e o patenteamento de microrganismos e de processos microbiológicos. Já o Trims trata dos investimentos “em relação ao comércio”.
Uma das principais missões da OMC, a eliminação das barreiras não tarifárias ao comércio, se realiza em parte graças a dois outros acordos que, de técnicos, não têm mais que a aparência. O das barreiras técnicas ao comércio (TBT) e o das medidas sanitárias e fito-sanitárias (SPS) pretendem “harmonizar” as normas e regras que tratam da proteção do meio ambiente, da saúde pública e dos consumidores. Na prática, esta “harmonização” impõe tetos que, ao longo do tempo, alinham todas as legislações nacionais, sobretudo as mais eficazes, pelo menor denominador comum, e transformam assim o princípio de precaução num fora da lei. Quem recusar a importação de um dado produto, alegando que é perigoso para a saúde ou nocivo ao meio ambiente, deverá apresentar a prova científica dessa afirmação. Não é ao produtor que cabe trazer a prova de que o produto oferecido é inofensivo. Uma das batalhas de fundo entre os países membros da OMC se dará sobre este princípio: a quem cabe o ônus da prova? Quais são o estatuto e os limites da ciência quando persistem as dúvidas?
O famigerado Órgão de Regulação das Disputas (ORD), que coroa o edifício da OMC, constitui a fonte de seu poder, ao mesmo tempo executivo e judiciário. Antigamente, quando o GATT queria punir um país que não respeitava as suas regras do jogo, era preciso que todos os seus membros estivessem de acordo… inclusive o que iria sofrer as sanções. Ou seja, faltava-lhe um pouco de autoridade. A OMC impõe uma lógica inversa e implacável: quando o seu ORD decreta sanções, os membros, incluindo o que pediu a punição, precisam ser unânimes para poder decidir não aplicá-la. Daí, por exemplo, o direito incontestável dos Estados Unidos de penalizar os produtos franceses, como o queijo roquefort, o foie gras e as mostardas de Dijon, impondo-lhes direitos alfandegários proibitivos. Os europeus se negam a importar a carne bovina com hormônios, apesar das injunções da OMC? Tudo bem, porém eles terão que pagar todo ano aos Estados Unidos e ao Canadá o que ambos deixarão de ganhar. Através do chamado jogo de “represálias cruzadas”, esses países escolhem os produtos aos quais deverão aplicar altas taxas, o que pode levar o recalcitrante a refletir um pouco mais sobre a questão.
Romper todas as “proteções”
Os grupos especiais (panels) da OMC, que até o momento resolveram 170 litígios, são designados em condições obscuras. Os nomes dos “experts” que os compõem — e que se reunem a portas fechadas — não são levados a conhecimento público. Sobre um procedimento tão opaco praticamente nada se sabe, a não ser que é surpreendentemente rápido: um conflito é normalmente resolvido em doze, no máximo dezoito meses. O Canadá, primeiro produtor mundial de amianto, espera beneficiar-se de tal celeridade para obrigar os europeus a importar novamente essa substância cancerígena. A decisão do grupo especial deveria ser anunciada no começo de dezembro, justamente na época da abertura da conferência ministerial de Seattle. Curiosamente, o anúncio será feito somente em março de 2000…
Sem mais alertas, a OMC criou assim uma verdadeira corte internacional de “justiça” que dita o direito e estabelece uma jurisprudência na qual as leis nacionais existentes são tratadas como obstáculos ao comércio e que descarta sistematicamente qualquer consideração ambiental, social ou relativa à saúde pública.
Ao fazer isso, ela apenas respeita os grandes princípios que norteiam toda a sua atividade. Por exemplo, a cláusula de “nação mais favorecida” exige igualdade de tratamento entre produtos semelhantes provenientes de diferentes países membros. Baseada nisso, com a decisão sobre o caso da banana, a OMC pôde negar à União Européia o direito a uma política externa. Para a OMC uma banana é apenas uma banana, venha do Equador ou das antigas colônias européias — os países da ACP (África, Caraíbas, Pacífico). Tanto pior para os Acordos de Lomé!
A cláusula do “tratamento nacional” proíbe qualquer discriminação a produtos estrangeiros, especialmente as que se apóiam em avaliações das condições de produção humanas ou ecológicas. Em outras palavras, não devemos ter em conta os “processos e métodos de produção”. Somente as mercadorias fabricadas por prisioneiros fazem exceção à regra. Porém, nem o desenvolvimento durável nem os direitos humanos devem ser invocados, assim como não se deve recompensar ou punir parceiros comerciais em função do respeito que tenham a essas noções. O artigo que trata da “eliminação das restrições quantitativas” impõe sanções sobre quotas e sobre recusas de importar ou exportar. Esta disposição poderia anular numerosos acordos multilaterais sobre o meio ambiente e diversas convenções sociais.
De fato, como impedir o comércio das espécies ameaçadas ou o dos dejetos tóxicos? Como limitar a exportação de cereais mesmo em tempo de penúria alimentar nacional, ou o comércio dos troncos de árvores quando as florestas são devastadas? Os acordos sobre as barreiras técnicas e sobre as medidas sanitárias e fito-sanitárias vêm reforçar este arsenal legal. Vista sob este ângulo, uma quantidade incalculável de normas, regras ou leis nacionais poderão facilmente ser qualificadas como “obstáculos ao comércio”.
Do que nos livramos em Seattle
Aí estão algumas das arapucas que minavam a estrada rumo à instância suprema da OMC, a reunião ministerial de Seattle. As precedentes (Marrakesh em 1994, Cingapura em 1996 e Genebra em 1998) definiram a ordem do dia: a ela caberia revisar os acordos sobre a agricultura, os serviços e, em princípio, a propriedade intelectual. Seattle deveria decidir qual o conteúdo preciso do que pomposamente é chamado, de acordo com o ex-comissário europeu para o Comércio, Sir Leon Brittan, Rodada do Milênio (Millenium Round).
O projeto é concluir este ciclo através de um acordo global pelos próximos três anos. A negociação deverá fazer progredir a liberalização e impedir toda e qualquer volta atrás: é a regra da OMC. Os Estados Unidos também hesitam em reabrir o acordo Trips (o que rege a propriedade intelectual) e a questão controversa dos transgênicos, ainda mais que os países africanos, numa iniciativa sem precedentes junto ao secretariado da OMC, declararam sua oposição ao patenteamento do ser vivo.
Uma batalha sem trégua se anuncia entre, por um lado, o grupo de Cairns — que reúne os países grandes exportadores agrícolas como Argentina, Austrália e Brasil, entre outros — circunstancialmente aliado aos Estados Unidos, e, por outro, a Europa e o Japão, conhecidos pela “super” proteção dada aos seus agricultores. Para o Grupo de Cairns, os produtos agrícolas devem ser regidos pelas leis da concorrência, como qualquer mercadoria. A União Européia, sob pressão da França, quer fazer valer a “multifuncionalidade” da agricultura que protege a diversidade, o meio ambiente da vida rural [2].
Os produtores americanos, por seu lado, encorajam seu governo a “resistir energicamente a toda tentativa de introduzir o conceito de multifuncionalidade [3]”.
Ainda não se sabe em que ordem serão abordados os numerosos domínios cobertos pelo acordo sobre serviços. Entretanto, ao escutarmos a palavra “horizontal”, é preciso imediatamente mostrar as unhas, porque, no jargão da OMC, isso significa que uma medida de liberalização aceita num terreno deve ser estendida a todos. Uma disposição de liberalização aplicada, por exemplo, aos bancos ou às companhias de seguro deveria sê-lo igualmente à educação e à saúde.
Sob o comando dos lobbies empresariais
Se os Estados têm suas prioridades, os meios empresariais também têm as suas. A Coalizão Norte-americana das Indústrias de Serviços (USCSI) destaca a distribuição, as finanças, as tecnologias da informação, as telecomunicações, o turismo e a saúde. Do outro lado, sob o comando do presidente do Banco Barclay, o Grupo Europeu dos Líderes em Serviços (ESLG), dedica-se a 21 setores. Para ajudá-los, a Comissão de Bruxelas colocou em funcionamento um sistema eletrônico que permite “aos negociadores europeus consultar rapidamente a indústria [4] “.
A Coalizão Norte-americana dos Serviços da Energia incita a Sra. Cherlene Barshevsky, representante dos Estados Unidos para o Comércio — e por isso chefe dos negociadores — a acrescentar suas atividades ao acordo sobre os serviços, onde elas ainda não constam. Composta por 27 membros, representando centenas de milhares de dólares, sem falar dos quilowatts, esta coalizão tem chances de sucesso. O Brasil, a França e a Noruega, ainda adeptas do serviço público neste terreno, foram identificados como “possíveis opositores [5] “.
Na véspera das negociações de Seattle, ainda ignorávamos quais outros setores poderiam ser acrescentados à “fixa” ordem do dia (agricultura, serviços, propriedade intelectual). Os europeus queriam ampliar ao máximo a lista: investimento, mercados públicos, “facilitação” do comércio, política da concorrência, meio ambiente, direito trabalhista, tratamento especial para os países do Sul. Tudo lhes serve para estabelecer, acreditam, a melhor relação de forças com Washington e reduzir assim a temida pressão sobre a agricultura.
Prudentes, os negociadores norte-americanos preferiam não incluir o investimento, com medo de despertar o movimento cidadão que ajudou a fazer capotar o AMI em outubro de 1998. De qualquer modo, por meio de um bom acordo sobre os serviços — que prevê o direito de presença comercial-, já serão obtidas muitas vantagens para os investidores. Tampouco queriam eles incluir na pauta o comércio eletrônico: ainda virgem de qualquer regulamentação, esse campo deveria continuar sendo uma área de vegetaçao natural, sem tarifas alfandegárias.
Os mercados das compras de bens e serviços feitas pelos Estados — cerca de 15% do produto nacional bruto (PIB) da maioria dos países — são evidentemente um alvo suculento. Os Estados Unidos gostariam que eles constassem das discussões, mas talvez precisarão contentar-se com um grupo de trabalho, deixando para mais tarde a sua liberalização.
Por outro lado, os EUA mostravam-se intransigentes quanto à inscrição na ordem do dia da iniciativa chamada ATL (“liberalização acelerada das tarifas”), que define oito domínios desconexos onde, segundo eles, a anulação das tarifas deveria rapidamente tornar-se a regra. Ao lado das jóias, brinquedos e equipamentos médicos encontramos — o que é muito mais inquietante — os produtos florestais e os da pesca, itens onde a tarifa zero aceleraria a destruição de riquezas não renováveis. Nessa questão, Washington tinha o apoio do conjunto dos países membros da APEC (Cooperação Econômica Ásia-Pacífico) que, reunidos, representam 60% do comércio mundial. E ninguém deveria se surpreender por esta iniciativa ATL ter dado origem a mais uma coalizão de empresas, incluindo a Dow, a Dupont, a Kodak, a General Electric, a American Forest e a Paper Association [6] .
Milhões de opositores
Nisso tudo, como ficam os países do Sul? A União Européia repete que eles devem ser objeto de cuidados especiais. Enquanto aguardam o efeito destas belas palavras, muitas nações ainda não têm embaixadores na OMC e se queixam de terem feito freqüentes concessões sem nada obter em troca, especialmente nos itens do têxtil e das vestimentas. Sua prioridade é que sejam imediatamente aplicados os compromissos em seu favor adotados na Rodada Uruguai. Oportunamente invocarão outros temas. Eles também desconfiam das veleidades européias e norte-americanas de discutir direta o