Antígona e os piratas
Rebeldes e fora da lei estão de cara nova. No cinema, no mercado editorial… e no mundo real. Eles lançam ataques sobre a realidade consensual para desmontar mentiras e propiciar momentos de alegria. Entretanto, se a figura do pirata nos faz sonhar outra vez, qual é a mensagem difundida por suas transgressões?
Na época do Romantismo, o fora da lei fazia sucesso. Lord Byron virou uma estrela com o poema O corsário (1814). Ele forjou uma imagem do pirata pronto para o massacre e para o amor, que tocava toda uma juventude educada, frustrada com o ideal coletivo. Victor Hugo causou sensação com Hernani (1830), cujo herói é um nobre banido que vira um líder de quadrilha ferozmente procurado. François Vidocq (1775-1857), que encontramos no personagem de Vautrin, em várias obras de Honoré de Balzac, é fascinante, não porque se torna chefe da polícia, mas porque é um ex-condenado – tal como Jean Valjean, de Os miseráveis. Tal fascínio também se encontra no espantoso sucesso alcançado pelo autêntico assassino Pierre-François Lacenaire (1803-1836), um dândi escritor que diz ter “abalado as estruturas sociais” e foi cantado por Charles Baudelaire como “um herói da vida moderna”.
Mesmo tipo de empolgação, ainda que em outra escala, pelo personagem de Robert Macaire, o assassino-ladrão-bandido criado por Benjamin Antier que, reinventado pelo ator Frédérick Lemaître em uma paródia dos valores burgueses do melodrama, faz o público se torcer de rir: “Matar dedos-duros e policiais não significa que a gente não tenha sentimentos”. O Macaire de Lemaître, que podemos imaginar pela homenagem feita a ele no filme O boulevard do crime, brilhou, como seus irmãos da ilegalidade, entre as décadas de 1820 e 1840, período marcado por duas revoluções, inicialmente vitoriosas e depois revertidas. Mais amplamente, uma grande parte do século XIX foi assombrada pelo reprovável, por aquele que foi condenado pelas regras da sociedade, mas que é ao mesmo tempo detentor de um estranho saber, o saber dos marginalizados, e carrega aspirações de transformação dessa sociedade.
Isso porque o rebelde em conflito com as autoridades é uma ameaça, ou uma esperança, na rua. Revoltas, ataques, conspirações e insurreições pontuaram o século, em luto pela Revolução Francesa, assaltado pela irrupção das questões sociais. Floresceram as sociedades secretas (ah, a incrível Sociedade dos Vingadores!), e elas não estavam interessadas apenas em discutir, mas em se armar. Seus líderes se encontravam na prisão (Auguste Blanqui, Armand Barbès etc.) e em seguida retomavam a luta. Mas, de derrota em derrota, o imaginário coletivo abandonou os rebeldes para se voltar ao perigoso, à escória (anarquistas, operários, populacho…) com muito menos simpatia. Após a fundação da Associação Internacional dos Trabalhadores, em 1864, e depois da Comuna de Paris, não sobrou quase ninguém além de Arsène Lupin, criado em 1905 por Maurice Leblanc, para despertar grande afeto.
O fora da lei reaparece hoje, herói e arauto. O pirata novamente faz sonhar. No cinema, claro: desde 2003, Piratas do Caribe não para de acumular receitas triunfais. Mas também, o que é mais inesperado, na literatura e na ação. Resta compreender a mensagem dessa transgressão das leis.
Markus Rediker, historiador do Atlântico da Universidade de Pittsburgh, desenvolve em suas obras1 uma leitura da organização da vida comum entre os piratas como a realização de um ideal igualitário, coletivista e democrático. Eles encarnariam uma “história oculta da resistência transnacional”, para além das “definições modernas de raça e nação”, o que se configura em sua recusa da exploração, da autoridade, do Estado, bem como na cultura de “homem sem mestre” que criam.
Segundo Rediker, os piratas, que ousaram imaginar uma vida diferente e tentaram vivê-la, são maravilhosamente românticos e impecavelmente tóxicos, pois seus princípios e sua ação são uma “força motriz da crise revolucionária de 1760-1770”. Mais que isso, eles são fundamentalmente morais, uma vez que a noção de justiça era o fundamento de suas práticas sociais. Embora outros especialistas na flibustaria costumem ser mais reservados e tenham a tendência de relativizar fortemente, ainda que sem negá-lo, o componente “democrático” das tripulações encimadas pela Jolly Roger – a célebre bandeira negra com uma caveira branca –, não deixa de ser verdade que uma declaração como a dada pelo pirata Bellamy em seu julgamento é bravamente rejubilante, se não programática: “Eles nos condenam, esses crápulas, quando a única diferença entre nós é que eles roubam os pobres sob a proteção da lei, ao passo que nós saqueamos os ricos apenas com nossa coragem; você estaria melhor sendo um de nós, em vez de lamber a bunda desses patifes em troca de um emprego!”.2
Talvez a fecundidade e a capacidade de empolgar sejam o mais importante. O ângulo “revolucionário” também é explorado por Peter Lamborn Wilson, mais conhecido pelo pseudônimo Hakim Bey, inventor do conceito de TAZ (Temporary Autonomous Zone, ou Zona Autônoma Temporária), que teve grande influência no surgimento do conceito de ZAD (Zone à Défendre, ou Zona a Defender). Peter Lamborn Wilson fala, em Utopies pirates,3 numa hipotética “República Corsária de Salé”, no Marrocos, onde piratas mouros e “renegados convertidos ao islamismo” teriam criado, em pleno século XVII, um enclave democrático no qual todos poderiam ter acesso ao poder e à riqueza, com igualdade. Seja em Wilson ou em Rediker, a violência é minorada. Claro que há lutas aqui e ali, mas é sempre por uma boa causa: permitir a sobrevivência desses redutos livres de relações salariais e de dominação. O que se destaca é a recusa da economia: o pirata não deseja ficar velho nem rico, prefere uma vida curta, mas boa, como um roqueiro em sua banda. Que brilhe o presente!
Essa visão lança as bases de uma contracultura ativa: assim como os piratas fundaram o “proto-Taz”, seus herdeiros contemporâneos devem promover “ataques bem-sucedidos à realidade consensual”.4 Para expor a mentira, criar momentos alegres, parasitar os pilares da ordem dominante e desfrutar momentos de celebração, nos quais brilhe fugazmente uma liberdade compartilhada. O grupo Anonymous – que, sob a máscara celebrizada pelos quadrinhos V de Vingança, de Alan Moore e David Lloyd, pirateia alegremente todo tipo de site e afirma “Nós somos os 99%” – certamente compartilha desse ideal. Assim como o WikiLeaks, fundado por Julian Assange em 2006, que quer dar visibilidade a vazamentos de informações com o objetivo de expor uma realidade social e política oculta. Os solitários fora da lei da informação, como Edward Snowden e Chelsea Manning, assumem riscos e perigos para revelar a existência de uma espionagem em massa ou os fundamentos da diplomacia norte-americana. Eles mostram, por meio do exemplo, o caminho para um mundo melhor, pela exposição da verdade dos poderosos ao povo…
Isso se liga a outra versão do fora da lei, que voltou como forte “tendência”: a incitação à desobediência civil. O termo é emprestado do breve livreto escrito pelo norte-americano Henry David Thoreau em 1849,5 que apenas em 2017 teve quinze edições publicadas. Thoreau, que se insurgiu sobretudo contra a escravidão, afirma que “não é desejável cultivar o mesmo respeito pela lei e pelo bem”. O cidadão – por quem, em geral, ele não transborda estima – “jamais deveria abdicar por um instante de sua consciência em nome do legislador”: correndo o risco, evidentemente, de ser preso, ou pior. A recusa em obedecer a uma lei injusta é, segundo ele, “revolucionária em essência”.
Esse ponto de vista é muito próximo do de Leon Tolstoi, conhecido principalmente como romancista, mas que exerceu, na segunda parte de sua vida, um poderoso magistério político-espiritual sobre parte do povo russo e muitos intelectuais europeus. Tolstoi está novamente na moda: entre suas publicações atuais, está uma antologia6 escrita na virada de 1905 em defesa da desobediência não violenta, pois “os principais males que sofremos […] provêm exclusivamente de nosso reconhecimento da tirania governamental”, em vez de focar-se no “aperfeiçoamento moral”. Essa era, para Lenin, uma “doutrina inimiga”… O filósofo Frédéric Gros, grande admirador de Thoreau, ecoa tais posições em seu último livro, unanimemente celebrado,7 ao afirmar que “desobedecer é obedecer a outras leis”, como já dizia Antígona, que morreu por isso. A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1793, também formulou esse princípio, à sua maneira: “Quando o governo viola os direitos do povo, a insurreição é, para o povo e para cada porção do povo, o mais sagrado dos direitos e o mais indispensável dos deveres”.
No entanto, das TAZs dos piratas aos heróis por vezes magníficos da desobediência civil, essas novas formas de sociedade secreta, embora contestem a regra jurídica para mudá-la ou refundá-la, não visam derrubar seus fundamentos pela via revolucionária. Suas armas são pacíficas, e é ao sentido moral que elas se dirigem, muito mais que à ação política – a não ser aquela que venha a nascer, espontaneamente, de uma revolta individual, de uma rebelião da alma. Ainda que possamos ver aí uma contribuição para a abertura de outras possibilidades, saudar a coragem e às vezes a repercussão ativa de algumas belas desobediências,8 também podemos recear que esses justiceiros não se enquadrem como praticantes, afastados de outras lutas, da “arte da revolta” (L’Art de la révolte, Fayard, 2015) – ótimo título do ensaio de Geoffroy de Lagasnerie sobre os vazadores de informação, aos quais se dedicam exposições e livros de grande sucesso. A revolta, sinal de eleição, parece agradar fortemente aos próprios alvos a que se dirige: sensibilização de um lado, capitalização da causa de outro?
Vejamos: o Instituto de Tecnologia de Massachusetts, o famoso MIT, criou um prêmio de US$ 250 mil dedicado ao reconhecimento da “desobediência civil”. O vídeo de apresentação do prêmio inicia-se com uma citação de Martin Luther King: “Cada um tem a responsabilidade moral de desobedecer a leis injustas”. Joi Ito, diretor do MIT Media Lab, descreve o eixo da premiação: “Você não mudará o mundo fazendo o que lhe pedem que faça”. O prêmio é parcialmente financiado por Reld Hoffman, cofundador da rede social profissional LinkedIn.
*Évelyne Pieiller é jornalista do Le Monde Diplomatique.