Antissemitismo, o golpe final
“Incompetente”, “espião russo”, “perigoso radical”… O líder do Partido Trabalhista britânico, Jeremy Corbyn, já foi tudo isso, de acordo com seus adversários. Contudo, apesar de ser tão infundada como as outras, uma acusação parece ter se imposto na mídia dominante: a de antissemitismo. Uma operação para desqualificar de cara qualquer oponente
A polêmica em torno do antissemitismo que infestaria o mundo político britânico ultrapassou as fronteiras do Reino Unido. O parágrafo inicial de um artigo recente do The New York Times combinou o “profundo antissemitismo” do Partido Trabalhista com a profanação de um cemitério judeu na França para sugerir que o ódio aos judeus “constitui o ponto de convergência de famílias políticas geralmente consideradas distantes: a extrema direita, algumas franjas da extrema esquerda, o islamismo radical europeu e diversas frações dos dois principais partidos dos Estados Unidos”.1
A produção editorial do grande jornal norte-americano ilustra, acima de tudo, o modo como a mídia lida com o suposto antissemitismo das forças de esquerda e, em particular, com o Partido Trabalhista de Jeremy Corbyn. Em outubro de 2017, Howard Jacobson, em um artigo desse jornal, descreveu a conferência anual do Partido Trabalhista como uma explosão de ódio, afirmando, por exemplo, que uma das moções votadas questionava a realidade do Holocausto: uma mentira a serviço da qual o The New York Times não hesitou em colocar o prestígio de que ainda desfruta.2
Desde 2015, esse tipo de prática tornou-se rotina na grande mídia britânica – inclusive entre seus representantes mais famosos, como o The Guardian e a BBC, que parecem ter aberto mão de verificar as informações que publicam, desde que se trate de acusar Corbyn. Repetida à vontade, a acusação – cheia de afirmações que não correspondem à realidade – ganhou um caráter de evidência que parte da população nem questiona mais.
Os mesmos métodos são usados em outras partes do mundo para desacreditar líderes políticos de esquerda que, como Corbyn, são conhecidos por apoiar a causa palestina. No primeiro artigo do The New York Times citado, que compara o Partido Trabalhista britânico ao partido do presidente húngaro de extrema direita, Viktor Orbán, o jornalista Patrick Kingsley escreve que a deputada democrata norte-americana Ilhan Omar foi “unanimemente condenada por recorrer a estereótipos antissemitas, sugerindo que a vida política do país estaria sob a influência de lobbies judeus”, antes de imputar-lhe ligações com “círculos islâmicos radicais”. Na verdade, Omar falou sobre o American Israel Public Affairs Committee (Aipac), cuja influência, de notoriedade pública, é regularmente discutida nas colunas do próprio The New York Times. Mas ela não disse uma palavra sequer sobre “lobby judaico”:3 diante disso, o jornal excluiu essa passagem em sua edição on-line, mas não se incomodou em redigir uma errata.
Em que se baseiam exatamente as acusações contra Corbyn e seu partido? Os deputados trabalhistas e os comentaristas progressistas são frequentemente chamados a admitir a ideia de que “o Partido Trabalhista tem um problema de antissemitismo”, sem que, no entanto, seus crimes sejam claramente expostos. Qualquer manifestação de antissemitismo seria naturalmente um problema para o Partido Trabalhista, mas o discurso dominante não se contenta em evocar esta ou aquela frase proferida por um de seus (muitos) militantes de base: ele também sugere que, sob a liderança de Corbyn, o partido teria se tornado “hostil aos judeus” e “institucionalmente antissemita”. Seus líderes formariam uma panelinha animada pelo “ódio dos judeus”, aos quais teriam “declarado guerra” – eles estariam colocando o Reino Unido sob um “perigo existencial”.4 As acusações nunca vêm acompanhadas de comprovação, mas são mais difundidas pela imprensa do que os casos concretos de racismo de Estado que afetam a vida de amplos setores da população.
Acusações e invectivas
A pedra fundamental desse edifício minuciosamente construído foi assentada na primavera de 2016, num momento em que a posição de Corbyn ficava ainda mais fragilizada pelo fato de que o conjunto das mídias alternativas – que desde então se desenvolveu para apoiá-lo diante dos deputados blairistas do partido – ainda engatinhava.5 Na época, a campanha pretendia colocar o novo líder do Partido Trabalhista como responsável por desvios que estavam fora de seu controle (especialmente os comentários antissemitas da deputada Naz Shah, embora eles tivessem sido proferidos antes de Corbyn assumir a direção do partido e de Shah ser eleita para o Parlamento) ou que simplesmente nunca aconteceram – como a suposta contaminação de um círculo do partido na Universidade de Oxford pela hostilidade aos judeus, o que se provou ser uma fantasia.
Já então o tratamento do tema pela mídia caracterizava-se pela recusa em colocar em contexto os incidentes mencionados – fossem eles reais ou não. Em um grupo com mais de meio milhão de membros, preconceitos antissemitas dificilmente vão deixar de existir. Se os mesmos esforços tivessem sido feitos para descobrir manifestações de hostilidade aos judeus na época em que Tony Blair, Gordon Brown e Edward Miliband estavam no controle do partido, não há dúvida de que elas teriam sido encontradas (embora fosse mais difícil achar provas antes do advento das redes sociais).
A questão central, portanto, não é se existem membros antissemitas nas fileiras do Partido Trabalhista, mas mensurar qual é sua representatividade e observar as medidas disciplinares tomadas para enfrentar o problema. Todas as análises sérias dos elementos disponíveis chegaram à mesma conclusão: bolsões de intolerância, reais, envolvem apenas uma pequena proporção dos membros. Mas os esforços empreendidos pela direção do partido para eliminá-los, igualmente reais, em geral não são reconhecidos pelos adversários.
Primeiro Corbyn tentou extinguir a polêmica encomendando um relatório à especialista em direitos civis Shami Chakrabarti, em junho de 2016. Investigação modelo, sensível e minuciosa, ela concluiu que o partido “não está tomado pelo antissemitismo, pela islamofobia ou por qualquer outra forma de racismo”. Mas observa “sinais óbvios (que datam de alguns anos atrás) de comportamentos minoritários caracterizados pelo ódio e pela ignorância”. “Eu ouvi muitas pessoas judias dizendo-se preocupadas porque o antissemitismo não foi suficientemente levado a sério pelo Partido Trabalhista e pela esquerda em geral”,6 escreve Chakrabarti, antes de propor diversas medidas concretas para remediar o problema.
Em um primeiro momento, ninguém tentou refutar a constatação. Porém, meses mais tarde, críticos do Partido Trabalhista voltaram à ofensiva: o relatório não passava de uma tentativa pouco séria de maquiar a situação – embora ninguém se desse ao trabalho de dizer por quê. Algumas semanas depois, uma comissão parlamentar, cujos membros estavam longe de cultivar algum tipo de idolatria corbynista, também não conseguiu estabelecer “nenhuma evidência confiável da ideia de uma prevalência mais acentuada de comportamentos antissemitas dentro do Partido Trabalhista do que nas outras formações políticas” – sempre se esforçando em destacar os erros atribuídos ao Partido Trabalhista.7
Até 2018, os juízes midiáticos de Corbyn achavam que as acusações (baseadas ou não em fatos comprovados) deviam pelo menos referir-se à manifestação de uma hostilidade contra a população judaica. A partir de 2018, eles se desembaraçaram de tal restrição. Em junho, a Executiva Nacional do Partido Trabalhista viu-se instada pelo coro da mídia e dos adversários de Corbyn a adotar a definição mais ampla de antissemitismo formulada pela Aliança Internacional para a Memória do Holocausto (IHRA). A Executiva apresentou diversas emendas para proteger o direito dos trabalhistas a defender os direitos dos palestinos. A ideia de que tais emendas poderiam representar qualquer ameaça para os judeus britânicos era absurda, mas a deputada Margaret Hodge, uma virulenta oponente de Corbyn que encarna a ala à direita do partido, aproveitou a ocasião para lançar uma nova ofensiva, bradando, durante uma sessão na Câmara dos Comuns – pouco acostumada a tais explosões –, que o líder de seu partido não passava de um “bastardo do antissemitismo” e de um “racista”. Seu discurso conseguiu quebrar um tabu: a partir desse momento, líderes políticos e jornalistas passaram a achar normal taxar Corbyn de antissemita sem ter de apresentar nenhuma prova disso.
Após um verão sob fogo aberto, a Executiva Nacional capitulou, adotando o texto da IHRA sem mudar uma vírgula. Alguns dias depois, um militante de extrema direita assassinou onze pessoas em uma sinagoga de Pittsburgh, nos Estados Unidos. O The Guardian não conseguiu mencionar a homenagem feita por Corbyn às vítimas sem descrevê-lo como “o líder trabalhista acusado de permitir que o antissemitismo gangrene o partido”.8 É quase como se o político e o atirador fossem a mesma coisa…
O historiador Geoffrey Alderman recentemente desconstruiu esses excessos. Zeloso defensor de Israel e profundamente divergente das posições pró-palestinas de Corbyn, Alderman, no entanto, descartou a ideia de que o líder trabalhista cultivaria a menor hostilidade aos judeus: “Na verdade, todos os elementos reunidos destacam que Jeremy Corbyn sempre apoiou iniciativas comunitárias judaicas”.9 Ele prossegue, sugerindo que Corbyn “age muitas vezes de forma leviana em relação à sensibilidade judaica”, embora o retrato pintado pelo historiador seja muito diferente do monstro de ódio retratado pela grande mídia. Isso porque, quando o líder trabalhista chega a cometer erros que mereceriam uma crítica legítima, o exagero dos ocorridos pela mídia acaba impedindo uma discussão serena, como ilustra a polêmica em torno de um mural pintado em Londres.
Elaborada em 2012, a obra inspira-se em certas teorias da conspiração que sugerem que um pequeno grupo de banqueiros maçônicos teriam instaurado uma “nova ordem mundial”. Logo teve início um debate na mídia para determinar se a maneira como o artista representou um grupo de banqueiros expressava ou não antissemitismo. Após receber diversas denúncias, Lutfur Rahman, então subprefeito do distrito, pediu à polícia que apagasse a pintura, salientando que o projeto do artista e suas convicções não foram determinantes: “De modo intencional ou não, a imagem dos banqueiros remete à propaganda antissemita que sugere que os judeus dominam as instituições financeiras e políticas”.10
As coisas provavelmente teriam parado por aí se Corbyn não se envolvesse. Quando o artista reclamou no Facebook sobre a destruição de seu trabalho (do qual publicou uma foto), Corbyn postou um comentário perguntando os motivos do subprefeito, sem dizer uma palavra sobre a obra em si. Quase seis anos depois, esse comentário viraria manchete por longas semanas. Até hoje ele é citado como prova esmagadora de seu antissemitismo.
Monstro ou fantasma?
Corbyn devia ter prestado mais atenção ao simbolismo da obra e perceber que ela era pelo menos ambígua. Ele imediatamente pediu desculpas por não ter feito isso. O episódio poderia ter sido uma excelente oportunidade para mostrar como as teses antissemitas podem às vezes ser formuladas de maneira cifrada. Mas críticas fundamentadas como essa se perderam em uma enxurrada de invectivas. A cobertura da mídia levou parte do público a imaginar que o mural era uma peça da mais caricata propaganda nazista, o que apenas Corbyn teria se recusado a perceber. Em suma, seu comentário no Facebook em apoio ao artista foi, de certa forma, equiparado a uma moderna saudação hitlerista.
O Partido Trabalhista teria tentado de tudo para conter a enxurrada de ataques de que foi alvo. Muito compreensivelmente, a tendência de responder de forma sensata a acusações de racismo desprovidas de qualquer fundamento desmotivou os ativistas que queriam lançar uma contraofensiva franca. Outros acharam que, comunicando as medidas tomadas para resolver os problemas observados em suas margens, o partido dissolveria a polêmica. Em vão: é muito difícil que os oponentes de Corbyn abram mão de uma arma capaz de alimentar com tanta facilidade o dilúvio de acusações. O último episódio desse tipo data de fevereiro de 2019, quando um pequeno grupo de deputados trabalhistas da ala à direita do partido se separou. Hostis a Corbyn, eles empenhavam-se em sabotar qualquer iniciativa sua – por isso, estavam certos de que não poderiam concorrer pela sigla nas próximas eleições gerais. Considerando que seria mais esperto bancar os ofendidos pelo antissemitismo de seu líder do que revelar suas inclinações carreiristas, eles colocaram uma moeda na jukebox favorita da mídia: estavam saindo do Partido Trabalhista por causa da intolerância de seu chefe…
Até que ponto o partido sofreu com esses ataques? Corbyn sobreviveu e, de acordo com as pesquisas, não parece ter tido grandes danos. Mas uma energia preciosa tem sido dedicada a repelir os ataques dos adversários. Isso sem falar da confusão que a situação provoca em parte da militância, que agora hesita em formular a menor crítica a Israel.
Paradoxalmente, a acusação do Partido Trabalhista coincide com um ressurgimento real do antissemitismo. Não dentro das formações políticas de esquerda, mas à direita. Teorias da conspiração envolvendo os Illuminati ou o financista George Soros já não são apanágio de trolls delirantes na internet: o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, e diversas personalidades de direita têm se empenhado em promovê-las, o que inspirou ataques a sinagogas nos Estados Unidos. Agora, um desvio parecido ocorre no Reino Unido. Os livros de história devem reservar páginas severas àqueles que soam o alarme contra o fantasma do antissemitismo de esquerda, no mesmo momento em que um monstro muito mais real e ameaçador aparece no horizonte.
Daniel Finn é editor da New Left Review.
1 Patrick Kingsley, “Antisemitism is back, from the left, right and islamist extremes. Why?” [O antissemitismo está de volta, dos extremismos de esquerda, direita e islamista. Por quê?], The New York Times, 4 abr. 2019.
2 Howard Jacobson, “The phony peace between the Labour Party and Jews” [A falsa paz entre o Partido Trabalhista e os judeus], The New York Times, 6 out. 2017.
3 Nathan Thrall, “How the battle over Israel and antisemitism is fracturing American politics” [Como a batalha contra Israel e o antissemitismo estão fraturando a política norte-americana], The New York Times, 28 mar. 2019.
4 The Guardian (18 mar. 2016 e 9 set. 2018), The Daily Mirror (2 set. 2018), The Jewish Chronicle (22 ago. 2018) e The Guardian (26 jul. 2018).
5 Ler Paul Mason, “Élections, club-sandwichs et nids-de-poule au Royaume-Uni” [Eleições, sanduíches e ruas esburacadas no Reino Unido], Le Monde Diplomatique, jun. 2017.
6 “The Shami Chakrabarti Inquiry” [O inquérito de Shami Chakrabarti], Londres, 30 jun. 2016. Disponível em: <https://labour.org.uk>.
7 “Antisemitism in the UK” [Antissemitismo no Reino Unido], House of Commons – Home Affairs Committee, Londres, 16 out. 2016.
8 Harriet Sherwood, “Pittsburgh shooting: Jewish organizations express horror at attack” [Tiroteio de Pittsburgh: organizações judaicas expressam horror diante do ataque], The Guardian, 28 out. 2018.
9 Geoffrey Alderman, “Horrors! Corbyn’s a ‘PM in waiting’ – accept it” [Horror! Corbyn é “primeiro-ministro em potencial” – aceite isso], Jewish Telegraph, Londres, 18 abr. 2019.
10 Marcus Dysch, “Mayor: Tower Hamlets mural ‘to be removed’” [Prefeito: hora de remover o mural de Tower Hamlets], The Jewish Chronicle, 4 out. 2012.